Mas, após anos de atualizações e melhorias, será que vale a pena dar uma nova chance ao jogo?
O hype construído
A jornada de Cyberpunk 2077 começou a ser tecida em 2012, com um teaser enigmático que mostrava uma figura misteriosa: uma mulher com implantes cibernéticos semelhantes a lâminas de louva-deus. Apesar da quase total falta de contexto, o trailer capturou instantaneamente a essência do jogo, um universo distópico violento, onde a tecnologia corporal extrema e o controle corporativo moldam a existência humana. A atmosfera sombria e o visual marcante foram suficientes para incendiar a imaginação dos fãs.
O verdadeiro marco, porém, veio em 2018. Foi quando a CD Projekt Red revelou aquilo que todos aguardavam: um trailer de gameplay de 48 minutos, detalhando os primeiros momentos da experiência. A demonstração mergulhava o público no papel de V, o protagonista personalizável, enquanto explorava os becos perigosos de Night City, interagia com personagens complexos e exibia sistemas de combate polidos (pelo menos na versão idealizada). Promessas de escolhas narrativas impactantes, personalização profunda e um mundo aberto repleto de histórias secundárias cativantes consolidaram o jogo como o RPG mais ambicioso da geração.
Para inflamar ainda mais a expectativa, a CD Projekt Red anunciou que o astro hollywoodiano Keanu Reeves daria vida a Johnny Silverhand, um rockstar anarquista e revolucionário, figura já icônica no RPG de mesa Cyberpunk 2020. A revelação gerou frenesi: como um personagem tão complexo, originalmente do universo tabletop, seria integrado à narrativa do jogo? A ausência de detalhes concretos só alimentou a especulação febril. Ficava claro, porém, que Silverhand não seria um NPC comum: suas aparições enigmáticas nos trailers sugeriam um papel central, possivelmente como antagonista ou até "hóspede" na consciência do protagonista. As possibilidades — uma trama simbiótica, dilemas morais, flashbacks interativos — pareciam infinitas.
A desenvolvedora, é importante lembrar, vinha do estrondoso sucesso de The Witcher 3: Wild Hunt, aclamado por crítica e público como um marco dos RPGs. Essa reputação impecável fez com que os jogadores depositassem confiança cega no estúdio. Ninguém questionava se o jogo funcionaria em consoles como PlayStation 4 e Xbox One; a pergunta era "quantos milagres a CD Projekt Red iria realizar?". O mantra era claro: "Eles entregaram The Witcher 3, entregarão Cyberpunk".
A queda cyberpunk
O lançamento de Cyberpunk 2077 em 2020 foi um desastre técnico, especialmente em consoles da 8ª geração. No PlayStation 4 e Xbox One, jogadores enfrentavam framerate caindo a números absurdos, texturas que demoravam minutos para carregar e bugs surrealistas — como NPCs flutuando ou carros surgindo do nada em pleno trânsito. Missões travavam sem aviso, e crashes frequentes transformavam a experiência em um teste de paciência. A frustração era tamanha que plataformas como a PlayStation Store chegaram a retirar o jogo de sua loja, algo raríssimo na indústria.
O mundo aberto, vendido como revolucionário, falhou em cumprir suas promessas. Night City, embora visualmente deslumbrante, era superficial: NPCs repetiam diálogos robotizados, atividades secundárias eram genéricas, e a interatividade com o ambiente limitava-se a ações básicas. A imersão quebrava com glitches constantes, como personagens atravessando paredes ou diálogos tocando sem personagens na tela. A sensação era de um cenário bonito, porém vazio — o oposto do "mundo vivo" prometido.
Mecânicas anunciadas com estardalhaço simplesmente desapareceram na versão final. O sistema de personalização de cyberware, por exemplo, foi reduzido a upgrades numéricos, sem impacto visual ou narrativo. A inteligência artificial, que deveria criar reações realistas em NPCs e inimigos, era primitiva: a polícia surgia do nada como hologramas, ignorando totalmente a física do mundo. Até a condução, mostrada como fluída em trailers, era travada e pouco intuitiva.
No campo narrativo, até Johnny Silverhand sofreu com cortes. Relacionamentos com personagens secundários, como Judy Álvarez, foi vendido como profundo e dinâmico, mas limitavam-se a interações lineares, sem a complexidade de uma conexão real (como a ideia de "namorada" sugerida em prévias), e escolhas que prometiam "consequências devastadoras" raramente mudavam o rumo da história. O silêncio da CD Projekt Red no pós-lançamento e a falta de transparência sobre os problemas consolidaram Cyberpunk 2077 como um símbolo de hype tóxico, onde a ambição desmedida superou a capacidade de execução.
Finalmente, o Verdadeiro Cyberpunk
A redenção de Cyberpunk 2077 começou com uma maratona de correções. Entre 2021 e 2023, a CD Projekt Red lançou mais de 20 atualizações, focadas em erradicar bugs críticos, otimizar performance em consoles antigos e reestruturar sistemas quebrados. Patchs como o 1.5 ("Edgerunners") e o 1.6 trouxeram melhorias visíveis: texturas carregando adequadamente, IA de NPCs menos robótica e missões secundárias finalmente funcionais. Ainda faltava, porém, a reforma prometida — aquela que transformaria o jogo na experiência revolucionária originalmente vendida.
A virada veio com o Update 2.0 (2023), uma overhaul gratuita que redefiniu o jogo. Sistemas de combate foram reinventados: a árvore de habilidades ganhou profundidade tática, a cyberware tornou-se essencial para builds únicas, e a polícia de Night City, passou a perseguir o jogador com veículos e táticas realistas. Dirigir carros, antes uma tortura, tornou-se fluído graças a ajustes na física. Até o sistema de wanted level foi ajustado, dando vida a uma cidade que, finalmente, reagia às ações do jogador.
A cereja do bolo foi Phantom Liberty, a DLC lançada em setembro de 2023. Mais do que uma expansão, era uma releitura narrativa: a história espiã de Idris Elba como Solomon Reed entrelaçou-se à trama principal com thrillers políticos, dilemas morais sombrios e um final inédito que reescrevia o destino de V. Tecnicamente, a DLC aproveitou o Update 2.0 para entregar a Night City que prometeram em 2012 — densa, reativa e cheia de segredos. Missões como "Somewhat Damaged", com sua atmosfera de horror cósmico, mostraram a ambição criativa que faltara no lançamento.
Hoje, Cyberpunk 2077 é um raro caso de redenção pós-lançamento. O jogo não só cumpre suas promessas originais como as supera, com uma versão 2.1 (dezembro 2023) adicionando até um metro funcional e boss fights épicas contra mechs. A jornada caótica de Night City, de símbolo de hype tóxico a exemplo de resiliência, prova que mesmo os desastres podem virar legados — desde que haja humildade para ouvir a comunidade e coragem para recomeçar.
Uma segunda visita a Night City
Para uma resposta franca: sim, finalmente vale. Cyberpunk 2077 não apenas alcançou o que almejava — superou as expectativas. Com o Update 2.0 e a DLC Phantom Liberty, o jogo se transformou numa experiência imersiva e tecnicamente polida que prometia em 2020. Sistemas de combate dinâmicos, um mundo aberto que reage às suas escolhas (a polícia agora persegue você com helicópteros e táticas realistas, por exemplo), e uma narrativa que entrelaça revolução digital e dramas pessoais com maestria mostram o potencial que sempre esteve lá, soterrado sob os bugs.
Tecnicamente, a Night City de hoje é outra. Consoles da última geração e PCs exibem um visual deslumbrante, com iluminação de ray-tracing e multidões que parecem vivas. Até o PlayStation 4 e Xbox One, antes símbolos do fracasso, receberam otimizações que tornam a experiência jogável — ainda que longe do ideal.
Se em 2020 o jogo era um alerta sobre hype descontrolado, hoje é um testemunho de resiliência. Para quem fugiu do lançamento, esta é a hora de mergulhar em Night City. Para quem já jogou, a versão 2.0 junto a Phantom Liberty é uma reinvenção digna de um New Game Plus na vida real. Cyberpunk 2077 não só foi perdoado: redimiu-se.
Revisão: Ives Boitano