Como eu também já fui muito acusada de ser uma pessoa interessada demais nessas ditas próprias experiências (leia-se: só se importa com o próprio umbigo), é algo que eu nem sempre gosto de fazer. Às vezes, contudo, aparece um jogo que faz disso absolutamente necessário.
Na época da faculdade, veja bem, eu me graduei com um TCC sobre a cultura do crunch na indústria de jogos e as respostas da comunidade a esta. Wanderstop, o novo filho de Davey Wreden (The Stanley Parable), Karla Zimonja (Gone Home) e C418 (Minecraft), fala basicamente tudo o que eu queria comunicar naquela monografia. É uma tese tão estupenda sobre a atratividade da “paixão” e a insustentabilidade do modelo atual da indústria que me faz querer viajar no tempo e colocar todo o conhecimento desse jogo na minha cabeça passada. Eu explico:
Os seus problemas você (não) deve esquecer
Wanderstop conta a história de Alta, uma lutadora invicta há mais de três anos que, de repente, se vê derrotada por motivos que não consegue compreender. Em busca das orientações de sua mestra a respeito, ela se embrenha em uma floresta remota, mas acaba incapaz de segurar a própria espada e perde a consciência. Quando acorda, está em uma clareira, aos cuidados do dono de uma casa de chá, o gigante gentil Boro.Leva um tempinho até ela entender o gênero do próprio jogo, digamos. Alta resiste repetidas vezes à ideia de parar, descansar e iniciar um ofício que não demanda a capacidade completa de seu cérebro a todo momento. É só depois de falhar em fugir do local de novo e de novo (e de novo, e de novo) que ela finalmente topa ajudar Boro a fazer chá — só até ter descansado.
O negócio é que o processo demora muito mais do que parece. Nossa protagonista sonha com uma cura mágica para seus problemas que simplesmente não existe; até Boro chega a destacar que essa pausa forçada não consertará tudo o que há de errado, mas com certeza fará o processo mais rápido do que o ritmo anterior, no qual Alta se atirava incansavelmente nos próprios objetivos, mais e mais a cada derrota.
É muito fácil ver os paralelos traçados com a cultura do crunch, a prática de forçar funcionários de estúdios de games a trabalhar longas horas (muitas vezes não remuneradas) para que um jogo saia dentro da previsão de lançamento. Um dos principais fomentadores dessa cultura é a ideia de “paixão” — essas pessoas seriam tão dedicadas ao que fazem, tão empenhadas em criar os melhores títulos o mais rápido possível, que pouco se importam com quanto tempo seu trabalho dura.Wanderstop mostra o que acontece na realidade. Por mais que a voz interior idealizada de Alta queira insistir que esforço é tudo, que descanso é para os fracos, todo mundo tem um limite natural. Se você não se obrigar a parar, seu corpo para por você, algo que a protagonista aprende na marra. A paixão sozinha não sustenta empreendimento algum.
Relaxar é para os fortes
Outra tese forte do título diz respeito à própria natureza do gênero “cozy game”, aquele tipo de jogo fofinho e de baixa tensão (pense em Stardew Valley ou Animal Crossing).
Amado por muitos e odiado por outros, aqui temos um exemplo cuja protagonista representa esse último tipo de pessoa: o(a) gamer que acha que esse tipo de título é vazio, que representa uma atitude de positividade tóxica, e/ou que não são “jogos de verdade”, reservados a pessoas que só “fingem” ter interesse nessa mídia.
Conforme Wanderstop se desenrola, Alta começa a entender, nesse sentido, o apelo do estilo. Um “cozy game” bem-feito não se limita a colocar os jogadores em uma terra linda de magia e amor onde nada nunca dá errado: não se deve esquecer da parte que torna a experiência algo verossímil, que nos lembra do mundo real e adiciona alguma fricção. Aqui, é o elenco e o gameplay.As interações com os diversos visitantes da casa de chá são divertidíssimas: temos o cavaleiro bobão, a vendedora rabugenta, a criança capeta, a criatura de outro lugar do espaço-tempo que é fascinada por homens de negócios — todos os clássicos da fantasia. Cada um tem um pedido maluco de chá e Alta deve fazer de tudo para atendê-lo, seja colocar livros, relógios ou plantas inteiras na receita.
Gostaria também de destacar o humor de Wanderstop: apesar de o resto do jogo não lembrar em nada The Stanley Parable, a comédia nonsense de Davey Wreden está plenamente presente. Uma das piadas recorrentes é o recebimento de uma série de livros sobre um espião em que absolutamente nada faz sentido: uma hora, ele trabalha para o governo; na outra, ele o odeia do fundo da alma. Cada livro novo era uma diversão diferente. (A localização para o português brasileiro também foi capaz de captar muito bem essa energia descontraída.)
Às vezes, contudo, os caminhos da protagonista e seus clientes não chegam a se cruzar o suficiente. O elenco está em constante rotação devido a certas mecânicas, o que faz com que nem todo mundo receba um arco completo; alguns personagens sequer recebem nomes antes de terem de partir.Talvez isso possa ser considerado uma falha da narrativa, mas eu vejo como um ponto forte: tudo na clareira está em constante mudança; assim, perder contato com alguém interessante é tão frustrante quanto natural. Isso ajuda a fortalecer os temas de escolha, impermanência e controle (ou falta dele).
Aceita um chazinho?
A respeito do gameplay, a dinâmica é simples. Colete materiais, plante árvores, colha frutos, faça chá, sirva, converse, receba outro pedido e assim sucessivamente. O processo é vagaroso e nem sempre plenamente relaxante (uma certa criatura nos estágios finais queria um chá tão complexo que eu já estava por aqui), mas funciona que é uma beleza.
O único grande problema que encontrei foi se acostumar com o sistema de inventário, atado ao D-pad em controles. É confuso encontrar algumas coisas, como os cogumelos, que podem ser plantados e interagem com as árvores, mas ficam em um bolso diferente das sementes. Bater o limite de infusões também é muito fácil; e, para piorar, caso você largue um objeto pelo cenário, os pinguins que habitam a clareira o tomarão se ele não estiver em uma estante ou lugar alto.
Tirando esses floreios do sistema, o resto é muito bem construído: a familiarização dos jogadores com as regras da casa de chá é paralela à de Alta, que aprende lentamente a amar seu trabalho “chato”, e faz valer a jornada de entendimento do “cozy game”.O que também ajuda a fazer de Wanderstop um título amável é a belíssima direção de arte, entre designs de personagem curiosos, cenas 3D vibrantes e ocasionais ilustrações em 2D cheias de personalidade. O toque final é a trilha sonora composta por C418, que, assim como em seu lendário trabalho em Minecraft, prova que entende muito bem como fazer de um jogo algo plenamente confortável.
Vagando e parando e seguindo a canção
Wanderstop é um jogo que pura e simplesmente vale a pena. Seja você amante da calmaria ou alguém que quer morrer quando vê um monte de “jogos de fazendinha” em uma Nintendo Direct da vida, a casa de chá de Alta e Boro é uma parada imperdível. Quem sabe você não passa, assim como a protagonista, a entender algo mais sobre si mesmo(a)?Prós
- Um “cozy game” até — e especialmente — para quem não gosta do gênero;
- Personagens divertidos e carismáticos;
- Mesma comédia irreverente de outros títulos do criador;
- Muito bem localizado para o português;
- Bom casamento entre gameplay e narrativa;
- Belíssima direção de arte;
- Trilha sonora agradável e suave.
Contras
- O sistema de inventário não é dos mais intuitivos.
Wanderstop — PC/PS5/XSX — Nota final: 10
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Annapurna Interactive