Walking Simulator é um gênero de videogame que se caracteriza principalmente por boas histórias que são contadas enquanto o jogador apenas coloca o analógico para frente. É fato que esse estilo mais lento não é para todo mundo — principalmente para aqueles que preferem uma jogatina mais frenética —, mas para os que apreciam a simplicidade de apenas andar, The Lies We Tell Ourselves é uma grata surpresa.
Não importa o quanto tente fugir do passado, ele sempre estará lá
Apesar de The Lies We Tell Ourselves ser simples em suas mecânicas e não se destacar por isso, seu diferencial está na história e nos temas que ela aborda. O jogo adota uma atmosfera de terror psicológico na perspectiva em primeira pessoa para contar a história de Vinnie Arno, um homem adulto que ainda mora com os pais e carrega inúmeros traumas que o perseguem, atormentando sua mente.
O jogo começa depois que Vinnie volta para casa, bêbado depois de uma noite comemorando seu aniversário. No que parece ser um pesadelo movido a álcool, ele se encontra com Julius, uma estátua que representa o busto de Júlio César, que funciona como uma personificação de um velho amigo. Julius está aqui para ajudar Vinnie a entender por que ele é do jeito que é, aceitar a responsabilidade por suas escolhas e enfrentar seus medos. Vocês dois vagam por uma combinação de um parque abandonado e um lixão, tendo uma boa conversa sobre experiências compartilhadas de sua infância.
Você não acha estranho o cenário ou o fato de Julius falar com uma voz de demônio ininteligível e ter o que parecem ser marcas de cordas ao redor do pescoço. Essa combinação de “normal” e “algo está seriamente errado aqui” paira por todo o jogo, mantendo sempre um sentimento de desconforto.
Os temas abordados aqui são pesados e perturbadores (o que pode gerar gatilhos e afastar alguns jogadores), como doenças mentais, traumas na infância, abusos, violência doméstica e suicídio. Embora não haja representações gráficas desses atos, os diálogos entre os personagens sempre fazem questão de destacar o quão difícil foi a infância de Vinnie.
Cada cabeça é um mundo, e meu mundo está de ponta-cabeça
O fato de o jogo se passar inteiramente na mente de Vinnie é uma ótima desculpa para colocar o jogador nas situações mais inusitadas possíveis, e é aqui que o jogo consegue acertar mais uma vez em seus cenários e quebra-cabeças.
A lógica do nosso mundo não se aplica à mente de Vinnie: passamos desde arquiteturas não euclidianas a corredores gosmentos feitos de carne. Nojo é um sentimento recorrente durante essa jornada.
Se você é fã de jogos de terror, sabe que a maioria deles possui quebra-cabeças, sendo quase uma característica obrigatória para o gênero. Aqui, além de andar para frente e ouvir uma série de diálogos perturbadores, você também precisará queimar alguns neurônios.
Em minha experiência pessoal como jogador e fã de terror, nunca tive muitos problemas para resolver enigmas, mas The Lies We Tell Ourselves possui alguns dos quebra-cabeças mais difíceis e desafiadores que já vi nos últimos anos. Parte disso é intencional, parte não.
Para exemplificar, citarei o enigma das pinturas, um dos meus favoritos. Nele, estamos em uma galeria de arte com exposições feitas pela mãe de Vinnie. Cada quadro conta um fragmento de história que se relaciona ao passado do protagonista e sua família. Se você prestou atenção à narrativa e ouviu bem todos os diálogos, não terá problemas para entender o que cada quadro significa, mesmo que de uma forma abstrata. Depois de compreender o significado de cada pintura, é só interagir com elas na sequência certa para seguir com a história.
A maioria dos enigmas é bem elaborada e carrega uma dificuldade interessante, mas alguns têm uma dificuldade gerada não pela genialidade do game designer, mas pelos problemas de tradução. E é aqui que o jogo desmorona tal qual um castelo de areia na praia.
Se você domina bem a língua inglesa, é altamente recomendado que jogue no idioma original, pois a tradução em português aqui presente tem uma série de falhas que prejudicam a experiência do jogador, mudando contextos de falas de personagem e principalmente na resolução dos enigmas, onde alguns deles só fazem sentido em inglês. Se não fossem as aulas de inglês que tive no verão passado, nunca teria terminado esse jogo.
É possível que a tradução tenha atualizações no futuro para melhorar a experiência, mas sendo um jogo independente feito por apenas uma pessoa, é melhor não colocar a mão no fogo.
Este é apenas um terço da minha mente
Assim que abrimos o jogo, vemos na tela inicial que se trata apenas do primeiro de três capítulos da história. O desenvolvedor solo Poopsy não tem uma data prevista para lançar os próximos dois capítulos, mas espera que seja o mais breve possível.
O fato de o jogo ser dividido em capítulos e ser uma história que ainda não encontrou o seu fim pode frustrar alguns, uma vez que esse episódio termina em um gancho instigante que deixa o jogador de cabelos em pé. Contudo, se a qualidade do que foi visto inicialmente aqui for mantida (e em alguns pontos melhorada), a espera irá valer a pena.
Em minha experiência pessoal, levei cerca de 6 horas para chegar aos créditos. Apesar de algumas dessas horas terem sido gastas lutando contra a tradução, a jornada foi divertida e satisfatória.
Para os amantes de caminhadas virtuais, The Lies We Tell Ourselves é uma experiência interessante. Talvez não seja a melhor do gênero ou tenha revolucionado algo, mas será um jogo que você irá lembrar no final do ano, quando olhar para trás e pensar em tudo o que jogou.
Prós
- Ótima narrativa e história intrigante;
- Quebra-cabeças bem elaborados e desafiadores.
Contras
- Problemas graves na tradução em português que podem prejudicar a experiência.
The Lies We Tell Ourselves — PC — Nota: 7.0
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo próprio redator