Em meados dos anos 1990, meus primeiros contatos com PC foram na escola, aprendendo a iniciar programas no MS-DOS para entrar nos jogos Where in the World is Carmen Sandiego e no primeiro Prince of Persia.
Agora, em 2025, o novo jogo Carmen Sandiego marca duas coisas: a volta da personagem após alguns anos foragida dos jogos e os 40 anos da série de edutainment que começou justamente em Where in the World is Carmen Sandiego.
Edutainment é a junção das palavras “education” e “entertainment”, isto é, entretenimento educativo, uma abordagem estratégica especialmente voltada às crianças, visando tornar o aprendizado mais interessante enquanto atividade. Já houve até um jogo de matemática com a ladra.
O Carmen Sandiego que agora chega ao PC, consoles e smartphones mantém esse longevo objetivo pedagógico da série e segue a estrutura vista já no primeiro título, levando a uma caçada humana ao redor do mundo enquanto passa por conhecimentos simples de geografia e história. Desta vez, porém, controlamos a própria Carmen em vez de persegui-la e temos minigames para variar a gameplay.
Ladra que rouba ladrão
A inspiração vem do desenho animado recente, lançado em 2019 na Netflix. Tanto a animação quanto o game têm produção da HarperCollins Productions, uma subsidiária de uma das maiores editoras de livros do mundo, a HarperCollins.
O jogo faz parte da assinatura do serviço de streaming no Android e iOS, sob o título de Carmen Sandiego NETFLIX. Portanto, se você é assinante, pode baixar o aplicativo e experimentar. Para esta análise, foi usada a versão de PS5.
A história rendeu 32 episódios em quatro temporadas e mostra a história da ladra do título desde o começo, mas invertendo os rumos. Se nas obras do passado ela fazia parte da agência de detetives ACME e, entediada, passou a ser uma criminosa por esporte, provando sua superioridade em roubos extravagantes e difíceis, na nova série ela era uma garota órfã argentina, aliciada pela maior organização criminosa do mundo, a V.I.L.E.
Quando os interesses dela entram em conflito com os da organização, ela adota o novo nome Carmen Sandiego e passa a agir para frustrar os golpes do grupo, cometendo o roubo por conta própria.
Como a jovem ganha notoriedade, a ACME decide usar das habilidades da criminosa para combater a V.I.L.E. Carmen tem a ajuda de Player, um hacker que serve de operador à distância para obter informações para ela, e os jovens gêmeos Ivy e Zack, que estão ausentes do game.
O jogo não conta essa história pregressa (você pode assisti-la na Netflix), mas deixa claro que Carmen atua de forma independente e ainda desperta suspeitas da ACME. Quando recebe o contato sobre um golpe que precisa ser investigado, a primeira reação dela é dizer “não fui eu”, com um sorriso divertido.
Mais que apenas uma versão higienizada de uma ladra, a mudança de Carmen parece ter sido uma escolha que visa permitir transformá-la em protagonista. No desenho animado de 1994, famoso no Brasil sob o nome Onde Está Carmen Sandiego, ela era a vilã principal, sempre caçada pelos protagonistas Ivy e Zack, detetives da ACME. A ideia de colocá-la no papel principal também exigia que não fosse inteiramente criminosa, mas ainda mantendo um pé no terreno cinza de ser uma anti-heroína com “permissão para roubar” nas ações contra a V.I.L.E.
A nova e jovem Carmen é sagaz e eficiente para estrelar as histórias de crimes sofisticados e espionagem, mas perde o carisma misterioso da ladra insuperável que os jogos de PC pincelaram e a série animada antiga representou em seus episódios. Ainda assim, quem gosta da série atual encontrará uma reprodução bem-feita do material para o plano tridimensional, mesmo que as animações sejam bastante limitadas nessa adaptação e ela não conte com a presença dos gêmeos.
Um ponto fraco nisso é a dublagem em inglês: ela está presente, mas apenas na primeira cena da campanha e palavras isoladas no início das falas de alguns personagens. Uma presença maior das vozes aumentaria a imersão em relação à série animada e, assim, a sensação de refinamento do jogo como um produto derivado dela.
Onde no mundo?
Parte da dinâmica de jogo ainda segue os passos do primeiro título, que completará seus 40 anos em abril. Há um roubo que precisa ser investigado em um prazo de dias. Em sua trama, os criminosos percorrem diversos locais do mundo e temos que rastreá-los com as pistas que encontramos para decidir o próximo destino da caçada.
Cada cidade visitada tem alguns locais onde Carmen pode descobrir indícios, como um papel rasgado com o nome da próxima parada ou alguém que ouviu uma conversa. Essas descobertas sempre vêm ao custo de algumas horas a menos na corrida contra o relógio, de forma que escolher uma cidade errada consumirá várias horas a troco de nada.
O tempo só passa durante os trajetos entre os destinos e nas investigações locais, então, mesmo que o erro seja punido com horas perdidas, não há pressão para jogar com rapidez, permitindo verificar as pistas obtidas com calma antes de decidir o próximo passo.
Outro aspecto da investigação está em definir um suspeito para o crime, o que acontece de forma semelhante. Durante as buscas, nos deparamos com indícios locais e relatos de testemunhas que apontam para características da pessoa envolvida. Um elenco de agentes da V.I.L.E. (tem até gente do primeiro jogo) é listado no menu para podermos observá-lo e, à medida que ganhamos informações, filtrar os suspeitos que combinam com as descrições para afunilar as possibilidades, em um raciocínio de eliminação.
Esta parte de investigação é tranquila e pode ser interessante como um teste de conhecimentos gerais e lógica básica, sempre acompanhado de diálogos entre Carmen e Player.
Logo no começo, por exemplo, viajamos ao Rio de Janeiro e um dos locais visitados é a Favela da Rocinha. Mesmo sendo apenas uma área bem pequena e sem a intenção de grande realismo, é interessante ver a atenção dada à representação. O mesmo acontece no Real Gabinete Português de Leitura, um cenário bastante fiel ao prédio de verdade, inclusive nos detalhes do piso, colunas, mesas e cadeiras (mas com portas bem diferentes). A praia de Ipanema também aparece, mas apenas em uma missão mais à frente.
Logo, esses são três elementos distintos para representar a cidade e, por tabela, o Brasil: o marcante contexto de precariedade social, a biblioteca como um símbolo cultural e a beleza natural da praia. É uma simplicidade que não aprofunda, mas evita reduzir a visão sobre a cidade e o país.
Outros países também receberam uma visão positiva em geral, mas a repetição de modelos de personagens nem sempre distingue a população como esperado, como no caso do Japão, por exemplo.
Licença para roubar
As investigações também envolvem minigames, como arrombar um cofre ou invadir um sistema. Na primeira metade da campanha, muitos deles são negativamente simplistas, como o do gancho que aparece no trailer: a mira fica oscilando sozinha e temos que apertar um botão no momento em que ela estiver exatamente em cima do alvo. Só isso.
O de perseguir suspeitos vai na mesma linha: segure um botão para ela se esgueirar atrás do meliante e solte-o quando precisar se esconder atrás de um obstáculo. Felizmente, eles são breves e não se intrometem demais na fluidez das missões.
Nas missões mais avançadas, as coisas ficam mais complicadas, especialmente nos minigames de descruzar circuitos e de sintonizar frequências, que podem render bons desafios. As próprias pistas que indicam os suspeitos ficam mais complexas e até pouco claras, o que mais de uma vez me levou a falhar na missão no momento final ao escolher o suspeito errado para emitir mandado de prisão. Não há segundas chances no clímax, precisando rejogar a missão do começo para tentar novamente.
Em contrapartida, os comandos permanecem simples até o final, assim como a maioria dos minigames e o jogo mantém o estilo de smartphone: as missões têm resultado medido em estrelas, a interface tem elementos grandes e cada passo bem-sucedido é seguido da palavra “Conseguiu!” no meio da tela. Há ainda um sistema de pontuação e nível de personagem como requisito para abrir novas missões, mas, em vez de favorecer a sensação de progresso, na essência serve apenas como obstáculo desnecessário.
Apesar disso, foram poucas as vezes em que precisei repetir missões para conseguir os pontos e poder avançar. Eles podem ser obtidos em outras missões fora da campanha: os Arquivos ACME. Essa parte remete mais aos primeiros jogos da série, com visuais parcialmente em pixel art.
Os Arquivos ACME são divididos em níveis de complexidade e se resumem à apresentação de um item cultural roubado e à subsequente trilha de viagens e pistas que levarão à determinação do suspeito e recuperação do objeto, sem as interações com Player. O formato é sempre o mesmo, mudando apenas as palavras-chaves que determinam as pistas, a complexidade das próprias pistas e um eventual minigame.
Mesmo sendo mais diretas ao ponto, essas missões secundárias focam no conceito central e alongam o proveito do jogo. Como duram em torno de 15 a 30 minutos, são apropriadas à ideia de jogatina em sessões curtas, popular principalmente em smartphones.
Visto dessa maneira casual, Carmen Sandiego também pode ser um passatempo agradável para adultos interessados. Eu mesmo me vi ficando mais envolvido à medida que a campanha avançava, sentindo que precisava realmente rever as pistas e raciocinar para chegar à conclusão correta.
A versão analisada no PS5 foi a Deluxe Edition, que vem com alguns extras: um artbook de 18 páginas e playlist com a trilha sonora (ambos in-game), um traje de motociclista como visual alternativo para Carmen e, por fim, uma missão extra chamada Onde no Mundo?, que alude aos jogos antigos ao colocar Carmen mais uma vez no papel de criminosa. Finalizar essa missão libera mais um traje: o sobretudo clássico da ladra.
Onde no mundo está o final da campanha?
Por fim, preciso falar do final: ele não está no jogo. Ao concluir as nove missões da campanha, a história chega ao clímax e para de repente, com um gancho que mostra que há mais pela frente. Na verdade, a décima missão, “Ídolo caído”, já aparece no menu de seleção com um cadeado e as palavras “em breve”. Isto é, até o momento de publicação desta análise, o jogo está incompleto.
As 10 horas que joguei foram conteúdo suficiente para mim, mas é um grande desapontamento ver que não há transparência em comunicar isso. Não sei quando o DLC será lançado nem se será gratuito.
A ideia de lançar em partes pode fazer sentido com a versão do jogo para smartphones, disponível na assinatura da Netflix, mas, nas outras plataformas, Carmen Sandiego é comprado separadamente por um preço específico, de forma que deveria estar completo ou, no mínimo, com um aviso de que haverá conteúdo futuro para fechar a campanha adequadamente.
A ladra de casaca vermelha ataca novamente
Com uma produção despretensiosa que adapta bem o material base da série animada de 2019, Carmen Sandiego atende bem ao seu público-alvo juvenil com a alternância de minigames simples e investigação baseada em geografia e história. Às idades maiores, porém, a essência de entretenimento educativo pode ter menos apelo, já que a simplicidade nas mecânicas e nos enigmas iniciais faz com que os desafios mais substanciais apareçam apenas na segunda metade da campanha.
É vital apontar que, na versão de lançamento, apenas no final é mostrado que a campanha fica em aberto e será continuada com conteúdo futuro, sem datas nem informações de como será o acesso. Isso prejudicou minha experiência com o que, de outra maneira, seria um jogo satisfatório.
Prós
- Mesmo sem alguns dos coadjuvantes, o jogo é uma boa representação da série animada;
- Resgata a dinâmica de investigação do início da série de jogos, mas com uma apresentação mais desenvolvida;
- Boa representação de alguns dos países e cidades escolhidos;
- Atende tanto ao propósito de satisfazer a curiosidade dos mais novos que querem descobrir e testar seus conhecimentos gerais, quanto à intencionalidade pedagógica de entretenimento educativo;
- A segunda metade da campanha aumenta o desafio da complexidade das pistas e de alguns minigames específicos;
- Textos em português brasileiro.
Contras
- No lançamento, a campanha termina em aberto, já mostrando a missão seguinte no menu de seleção com um vago aviso de “em breve”. A falta de transparência em comunicar isso em qualquer momento antes do fim é reprovável e deixa um gosto amargo na experiência;
- As investigações são simples e mais voltadas ao público juvenil, podendo ter menor apelo para o interesse de adultos;
- A maior parte dos minigames entremeados às investigações é simplista e mecanicamente desinteressante;
- Modelos e animações pobres para os personagens;
- A dublagem é limitada a algumas cenas, o que retira um fator de imersão para um jogo que adapta diretamente uma série de animação.
Carmen Sandiego — PC/PS5/PS4/XSX/XBO/Switch/Android/iOS — Nota: 6.0Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital cedida pela Gameloft