Liza morreu. Seu sepultamento é a primeira coisa que vemos ao começar a campanha de Cabernet, antes de ela acordar novamente, trancada em uma cela porão. Sem se lembrar de como foi parar ali, ela é libertada por uma criatura oculta, que abre a porta mediante um pacto de consequências incertas, mas certamente nada boas. Assim, a moça assustada sobe as escadas até a porta que leva para fora daquele local horrível e vê… pessoas elegantes em um salão de jantar luxuoso?
Festa estranha com gente esquisita
Vampiros. Aos poucos, Liza percebe que é isso que as pessoas ao seu redor são, assim como ela também é, a partir daquela noite. Havendo sido estudante de medicina em vida, seu papel após a morte será o de assistente do Dr. Volkov, aquele que a transformou em um ser da noite.
Em uma versão da Europa Oriental de fins do século XIX, na qual os seres do folclore eslavo são secretamente reais, os vampiros de Cabernet têm características clássicas da literatura que conta sobre os sanguessugas: eles podem se transformar em morcegos, ficar invisíveis, encantar pessoas e se alimentar do sangue pelo pescoço, além de não poderem se expor à luz do sol, aparecer em espelhos, cruzar corpos de água ou adentrar uma casa sem antes obter a permissão do dono.
No entanto, aqui os vampiros ainda são pessoas, no sentido comum da palavra. Eles têm personalidade própria, vontades e afetos, sendo muito mais que a caracterização monstruosa de seres que existem apenas para consumir vidas. É claro que eles ainda precisam se alimentar de sangue, mas não saem atacando qualquer pessoa por aí: suas principais fontes de nutrição são as pessoas com quem têm alguma amizade, pois podem ser encantadas para não reagir e, depois do jantar, esquecem o que aconteceu.
Alternativamente, podem comprar vinho cabernet no bar – é o nome em código que dão ao sangue engarrafado para poder consumi-lo diante de humanos que não suspeitam de nada – ou, em grande necessidade, caçar coelhos na floresta.
Escolhas assim afetam os níveis antagônicos de Humanidade e Niilismo de Liza, mas essas são apenas as decisões mais elementares que ela precisará tomar ao longo da campanha. Afinal, Cabernet é um RPG narrativo e as ações e respostas de Liza afetarão os relacionamentos e os rumos da trama.
Nada como uma noite após a outra
Toda a trama ocorre em uma pequena cidade anônima do Leste Europeu. Podemos explorá-la à vontade, o que significa cruzar as ruas para ir à loja, livraria, bar, salon, algumas residências e, ainda, procurar alguns objetivos. É um pequeno mundo aberto que ainda conta com algumas telas para o cemitério, fazenda, floresta e ilha no lago. A concisão é um fator importante para não afetar o fluxo narrativo, de forma que qualquer local fica a poucos segundos da casa onde Liza agora passa sua não-vida.
A movimentação dela é lenta, fazendo jus à vestimenta e recato vitorianos. Felizmente, há um botão para andar mais rápido, mas fique atento: ter apenas metade do medidor de sangue cheio retira essa possibilidade.
O grande trunfo para as áreas externas é a transformação em morcego, fazendo um voo bem ágil e livre, estendendo as possibilidades aos telhados das casas. Se houver pessoas por perto, Liza não pode usar seus poderes. Cabernet não pretende, porém, restringir demais os locais de transformação, então basta se afastar uns poucos metros para a vampira poder usar esse recurso muito útil sem ser vista.
Com um grande número de missões de personagens para conduzir, há muito o que fazer nessa cidade, em uma dinâmica narrativa que segue ciclos noturnos. Cada noite é dividida em quatro momentos, que Liza pode empregar em três eventos à escolha, como certas interações longas com personagens, se deslocar a um dos dois lugares distantes da cidade, ou ler um livro para aumentar um dos quatro atributos (Arte, Literatura, Ciência e Política).
O tempo só passa quando a ação é finalizada e, na verdade, a maior parte das ações não consome as horas preciosas da vampira. Assim, uma única noite pode render muitas visitas, diálogos, progresso em missões de personagens, fazer compras, jogar 21 no bar ou caçar bichinhos fofos na floresta, em caso de necessidade.
O quarto e último momento da noite é o amanhecer, quando a vampira precisa voltar imediatamente ao caixão em seu quarto para evitar virar poeira ao vento. Essa parte é em tempo real, mas passa lentamente e só provoca urgência em certas partes da história, impactando com escolhas que precisam ser realizadas antes que o sol se levante. Tudo isso é bem sinalizado, então sempre sabemos quando uma atividade fará o tempo passar e não é permitido realizar ações desse tipo durante a alvorada, evitando que Liza seja tostada por acidente.
Muitas das escolhas só ficam disponíveis quando se tem determinado nível em um dos atributos. Eles podem ser aumentados ao distribuir pontos com o ganho de nível e também pela leitura de obras clássicas, como dito. A estante literária é recheada de referências reais, ainda que minimalistas: vemos apenas o título, autor e uma breve citação de cada texto, incluindo do nosso Machado de Assis.
Adicionalmente, é preciso gerenciar o nível de sangue da vampira, mas o estoque dura bastante tempo e não me encontrei em situação crítica, precisando alimentar a moça apenas de vez em quando com pescoços alheios.
A vida começa agora
Os sistemas conduzem a dinâmica da narrativa de forma interessante e orgânica, mas as histórias também conseguem sustentar a si mesma. Se ainda não ficou claro, é bom ressaltar que Cabernet não é exatamente um jogo de terror. Mesmo que tenha momentos de atmosfera tensa e impacto, o coração do jogo está nas relações, fugindo a certas fórmulas do gênero.
Existe uma trama por trás que conduz a campanha em pontos-chave, mas o principal está em se envolver com os habitantes da cidade e decidir como a nova sanguessuga vai encarar sua nova não-vida social. Entre vampiros e humanos, temos mais de 20 personagens para conhecer, cada um com sua própria história e relação com Liza e alguns deles até são possibilidades românticas.
Todas as falas do jogo são dubladas em inglês (sem opção de português brasileiro para os textos) e, mesmo que as vozes às vezes possam parecer um tanto tranquilas ou contidas, sua qualidade realça a ótima narrativa ramificada, mostrando-se um investimento muito acertado para a essência humana de Cabernet.
As opções de comportamento constroem a personalidade da protagonista e, ainda que haja uma tendência a facilitar a reflexão existencial, a empatia e a generosidade, a porta está aberta para que possamos escolher uma postura diferente. Logo, se assim preferir, Liza pode ser uma predadora que atende apenas às próprias intenções e não se importa em como as consequências e o dano colateral afetará os demais.
A abordagem totalmente “má” é desincentivada no sentido de que, logicamente, se Liza sugar alguém até a morte ou deixar morrer de outra maneira, a história daquela pessoa chegará ao fim, cortando conteúdo do jogo em si. Dessa forma, o ideal é seguir uma trilha cinzenta, mas ainda relacionalmente positiva, e deixar o lado mais sombrio para quando for jogar a campanha uma segunda vez.
O que mais me cativou foram os personagens interessantes e bem-escritos que, gradualmente, vão se abrindo e mostrando como realmente são, deixando que Liza faça a diferença em suas vidas. Eles evitam o clichê de seres individualistas de pura intriga, mentira e maldade. Dessa forma, Cabernet constrói uma microssociedade plural em que as pessoas se conhecem, ocupam diferentes posições e papeis e, coletivamente, formam um quadro maior e orgânico.
Problemas no escuro
O lado mais sombrio de Cabernet é a parte técnica. Infelizmente, há vários problemas por aqui. Para começar, o jogo fechou sozinho em quatro ocasiões, quase todas elas ao tentar carregar um arquivo de salvamento.
Outro problema que me aconteceu foi o sumiço de ícones de interação, impedindo-me de continuar uma atividade e me forçando a fechar o jogo e abrir novamente. Mais incômoda foi a vez em que duas missões diferentes ocorreriam no mesmo local, então interagir com uma delas “desativou” o início da outra, que tinha aquela noite como prazo.
Considero ainda uma falha de design o fato de que os menus usam apenas o cursor móvel, sem aproveitar os recursos do controle para facilitar a navegação. Falo de coisas básicas, como usar os botões de ombro para mudar a aba ou o botão de cancelamento para fechar a janela. Isso é algo que espero que melhorem em atualização futura.
Em geral, Cabernet é visualmente bonito, mas com certas limitações de produção, algo que pode ser percebido na discrepância entre alguns cenários vividamente belos, como na imagem acima, e outros de pinceladas pouco caprichadas, especialmente certas árvores.
As animações de personagens se mostram um ponto fraco da apresentação. Liza parece flutuar enquanto anda e os corpos se movem com uma rigidez que lembra bonecos. Algumas animações nem mesmo ocorrem, como os beijos, cenas que cortam para uma tela escura de transição, e, mais incômodo, na morte de NPCs, que passam bruscamente da postura vertical para a horizontal, atrapalhando a imersão de um momento que precisa da devida carga dramática.
Mais uma taça, por favor
Com sua história de vampiros voltada mais às relações do que ao horror, Cabernet atinge seu objetivo de ser um RPG narrativo envolvente. Tanto na trama bem-escrita quanto em suas mecânicas de escolhas, a não-vida de uma médica que acabou de se tornar uma criatura da noite é competente em abordar diversos temas humanos e permitir que, se assim quisermos, os encaremos com otimismo e empatia, sempre tão necessários à humanidade.
Prós
- Uma sóbria história de vampiros, bem-escrita e focada em conhecer personagens e seus cotidianos, além de muitos elementos do folclore eslavo;
- O sistema de RPG com melhoria de personagem, ciclos noturnos, escolhas da trama e gerenciamento de relacionamentos é tão envolvente quanto sua trama;
- A cidade funciona como um pequeno e organizado mundo aberto, cujo sistema de missões relacionais consegue manter nosso interesse em passar pelos mesmos locais a cada noite;
- Todas as falas são dubladas em inglês;
- Alguns dos cenários externos são muito bonitos e contribuem à atmosfera soturna esperada de um conto de vampiros.
Contras
- Problemas técnicos, como crashes e falhas em certas interações, atrapalham a experiência;
- O estilo de imagens 2D sobrepostas por vezes parece plano demais e com animações rígidas;
- Liza anda lentamente, mesmo quando aceleramos o passo;
- Os menus são manipulados apenas pelo cursor móvel, sem aproveitar os recursos dos controles,
- Alguns cenários destoam da qualidade visual de outros;
- Sem português brasileiro.
Cabernet — PC/PS5/PS4/XSX/XBO/Switch — Nota: 8.5Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Akupara Games