Crise no Infinito Mitaverso
A história de MiSide parte de uma abordagem metalinguística. Cansado da própria vida, o protagonista decide baixar um aplicativo estilo tamagotchi também chamado MiSide em que ele precisa ajudar e cuidar de uma namoradinha virtual chamada Mita. Embora tenha investido um tempo bacana no começo do game, eventualmente ele logo vai tendo seu tempo de jogo diminuído por questões da vida adulta, como o trabalho.
Eis que, aparentemente chateada com o abandono, Mita monta uma espécie de máquina capaz de materializar o personagem principal dentro do próprio universo virtual. Após alguns dias de convivência pacífica, o jogador descobre que aquela existência virtual na verdade orquestrava um plano psicótico para jamais ser deixada sozinha novamente e que, pior, ele não era a primeira vítima.
Nesse processo, ele se depara com um porão que serve como uma base de operações e lá conhece uma outra Mita, esta gentil e sem defeitos aparentes, que explica que há várias existências da personagem e que, para escapar e impedir os planos da Mita Louca, seria necessário percorrer diversas versões anteriores de MiSide a fim de encontrar o código central e reescrevê-lo.
A partir daqui, o game se desenvolve de uma maneira impressionante em que o jogador tem a oportunidade de se deparar com diversas Mitas diferentes e que, o tempo todo, brinca com a própria existência como um jogo indie, sendo necessário encarar bugs, espaços mortos e repetidos, além de versões descartadas da personagem.
Esse aspecto de MiSide acaba se mostrando uma grata surpresa para os que caem de paraquedas no título, uma vez que o material promocional se foca principalmente no aspecto de simulador de waifu sem necessariamente ocultar seu caráter de horror e de que há algum segredo por trás, mas escondendo todo o lado da jornada para escapar do sistema antes que o protagonista seja completamente aprisionado em um cartucho.
Não é uma quebra da quarta parede, é um muro sendo derrubado
Um dos maiores méritos do game é a forma como ele sabe utilizar da própria linguagem ao construir sua atmosfera e conduzir sua narrativa. Desde o início, antes mesmo de sermos tragados para dentro do virtual, há uma sequência de vários dias em que jogamos o MiSide (o jogo dentro do jogo, no caso) e cada ação é interrompida por um corte seco com o indicativo de que um novo dia começou, o que serve para preparar o terreno para a pegada de horror e estranhamento que iria se desenrolar daí para frente.
Aos poucos, ele consegue se sustentar em uma alternância muito convincente de momentos de guarda baixa e de atenção ligada, o que consegue fazer com que ambas as situações sejam positivamente aproveitadas durante o progresso da campanha. Até mesmo a aparência do menu se adequa à atmosfera de cada um dos estágios de MiSide.
A sabedoria na utilização da própria linguagem se mostra tão afinada que esse revezamento de situações consegue trabalhar a favor de otimizar cada um dos sentimentos pretendidos. Embora não seja a principal base de sustentação do seu horror, os jumpscares se mostram bastante raros ao longo da jogatina, mas eles não deixam de existir. Devidamente posicionados, os cenários de tranquilidade conseguem realizar tão bem sua função de abaixar a guarda que esse tipo de susto repentino acaba conseguindo exercer sua função com uma chance de sucesso muito maior.
Nota-se que MiSide não é apenas um passeio guiado pelos espaços entre as versões do game, mas também conta com uma variedade bacana de minijogos que servem tanto para trazer momentos de respiro para a narrativa, quanto para homenagear os videogames como mídia. Tudo em MiSide aparenta estar no próprio lugar e mesmo vários de seus defeitos parecem deliberados.
Um deles é a maneira como a câmera permite percorrer por todo o cenário, atravessar paredes e até mesmo encontrar detalhes que os desenvolvedores esconderam de uma forma que insinua que foram posicionados lá pela própria Mita e dando a entender que ela tem um controle maior daquele universo do que na verdade faz parecer, além de exibir elementos descartados dos cenários que foram simplesmente removidos e ocultados para fora da área visível pela câmera em primeira pessoa em vez de simplesmente excluídos.
A perspectiva em primeira pessoa, aliás, é um aspecto muito interessante de MiSide, sendo provavelmente a única vez na minha vida em que eu me peguei pensando que esse jogo em realidade virtual seria realmente incrível.
Sabe, é bastante comum se deparar com algo que se propõe a uma abordagem metalinguística hoje em dia. Quebrar a quarta parede está na moda. O sucesso de MiSide nessa empreitada, entretanto, reforça o quão difícil é cumpri-la com excelência.
Waifus Sonham com Ovelhas Elétricas?
Além de toda essa questão da metalinguagem, a escrita do MiSide chama a atenção por conta das múltiplas camadas que ela consegue atingir ao abordar seus temas. Na superfície, como uma forma de se conectar com a audiência com mais facilidade, o título se utiliza de arquétipos de fácil identificação para cada uma das várias versões da Mita, como a de personagem de visual novel, a chibi, etc.
Ao progredirmos em cada seção correspondente, cada uma das representações acaba expondo suas verdadeiras angústias para além da sua própria programação de personalidade, e como elas acabam se mostrando além de simples programas de computador, externalizando anseios como o medo da solidão, por exemplo.
Esse tipo de abordagem me lembra um pouco a problemática trazida em Blade Runner (baseado em Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?, do Philip K. Dick), quando os androides replicantes adquirem livre-arbítrio ao apresentarem sentimentos próprios que os elevam para além de meras máquinas, o que inclusive é suficiente para fazer com que o protagonista Rick Deckard entre em conflito consigo mesmo.
É novamente quando entra a perfeitamente executada visão em primeira pessoa, já que o personagem principal é uma representação, um avatar claro, do jogador propriamente dito. Isso já começa logo no menu principal, antes de começar de fato, uma vez que a tela conta com uma Mita enorme que olha e se expressa de acordo com a opção que fazemos menção de selecionar. Passar o mouse em “sair para o desktop”, fará com que ela faça uma cara de angústia, por exemplo.
MiSide, então, não é apenas horror, mas também um serviço de empatia. É o sentimento do jogador contra o sentimento da Mita entrando em conflito o tempo todo — e isso se estende não apenas à Mita psicopata, mas também à Mita original, à criança, à tsundere e outras. Cada uma se apega ao protagonista porque sabe que depende dele para continuar existindo mesmo em condições extremamente limitadas ao próprio cenário do qual fazem parte — e, a pior parte, é que elas têm consciência disso tudo.
Do lado do jogador, é o sentimento de quem foi plenamente ludibriado e colocado cativo em um ambiente de simulação. Vagar pelos espaços limiares por entre as versões de MiSide, inclusive, me fez lembrar daquela sequência clássica do Show de Truman em que o personagem chega ao final do cenário daquele mundo e começa a subir pela escadaria até os bastidores do reality show armado que era sua vida.
Momentos de tranquilidade que são tranquilos demais
Diante de uma execução tão impecável de sua proposta, a maior parte dos tropeços de MiSide não passa de mero detalhismo técnico, como a eventual dificuldade em fazer com que os objetos interativos entrem em destaque a fim de exibir o prompt de ação. Houve uma sequência logo no começo em que o personagem precisava sentar à mesa e eu fiquei dando voltas e mais voltas no objeto até que ele finalmente respondesse ao meu posicionamento.
Outro aspecto que poderia ser reavaliado é a velocidade de movimento, que por vezes se mostra muito lenta. É compreensível que essa limitação seja uma prática recorrente em jogos de horror que permitem a corrida apenas em situações especiais, mas, mesmo em ocasiões de tranquilidade, a locomoção acaba parecendo um pouco mais vagarosa do que realmente deveria.
Ainda nessa questão de ritmo, nota-se que chega a ser incômodo como a presença de alguns minigames quebram a progressão geral do título. Considerando a proposta metalinguística, é possível que isso seja proposital, um comentário paralelo a todos os jogos que se utilizam desse tipo de firula para inflar tanto o tempo quanto a quantidade de conteúdo oferecida, mas essa proposta pode ter saído pela culatra ao se tornar o erro que supostamente tenta criticar.
Acompanhar os diálogos também é uma tortura à parte, seja porque eles são lentos e obrigatórios, seja por conta do efeito de “máquina de escrever” em que eles são exibidos letra por letra em vez de instantaneamente na tela.
Por fim, enquanto é algo muito bom que MiSide tenha uma quantidade robusta de segredos, chama a atenção como quase não existe feedback em relação às suas descobertas. Há conquistas referentes aos colecionáveis, como os cartuchos dos jogadores antigos que foram presos pela Mita ou os chips com os perfis de cada uma delas, mas certos elementos menores acabam passando despercebidos e carecem de um estímulo como esse para serem encontrados por jogadores menos assíduos ao game.
Ah, no momento da publicação desta análise, é importante reforçar que, embora se trate de um lançamento definitivo, sem ser em acesso antecipado, o game não se encontra em um estado completo. Atualmente em versão 0.9, ele carece de um dos finais — o que eles chamam de modo pacífico —, cuja opção já consta no menu, mas que só chegará em uma atualização futura.
É quase certeza de que essa atualização virá logo mais, visto que os desenvolvedores estão continuamente fazendo novas adições e correções pontuais no game, incluindo uma localização em português brasileiro feita por fãs que, por assim dizer, acabou sendo oficializada por conta da boa recepção. A tradução, embora apresente algumas construções esquisitas em alguns momentos, é sólida. A atriz de voz que fez a Mita em português, por sua vez, fez um trabalho bastante gracioso e simpático.
Além das aparências
Experiência é uma palavra versátil que pode significar, de um jeito reducionista, o ato de experimentar algo. Em contrapartida, também pode assumir uma definição mais abrangente e corresponder ao processamento e eventual interpretação de todos os sentimentos e informações provocados durante o mesmo processo. A impecável produção do estúdio Aihasto é isso: um conjunto exemplar em uma proposta única e de aplicação ímpar.Mais do que o jogo-meme que parece ser, MiSide te convence por suas waifus, mas te encanta pela execução magistral de um produto surrealmente bem otimizado e assinado por um time que claramente sabe o que está fazendo sem almejar e se perder em delírios pretensiosos, mas ainda conseguindo alcançá-los com muito trabalho, competência e paixão.
Prós
- Proposta de execução singular, o que a torna verdadeiramente diferenciada;
- Alternância nas atmosferas de horror e tranquilidade promovida de maneira orgânica;
- É capaz de imergir o jogador a um nível emocional;
- Produto de otimização exemplar, caso raro no mercado de hoje;
- Atenção aos detalhes que estimula a busca em aqueles que decidem investir seu tempo nela.
Contras
- Velocidade de locomoção do personagem principal parece atrasar o ritmo do game em determinados momentos;
- Diálogos de exposição lenta e que não podem ser pulados ou acelerados;
- Certos minijogos parecem servir apenas para alongar certas fases do jogo;
- Embora a campanha básica esteja completa, a ausência de um dos finais gera estranhamento.
MiSide — PC — Nota: 8.5
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital adquirida pelo redator