Análise: Lost Records: Bloom & Rage Tape 1 é um retrato perfeito da adolescência feminina

Aventura dos criadores de Life is Strange navega pela amizade de quatro garotas com naturalidade e bom humor.

em 19/02/2025

Quando foi a última vez em que uma obra fez você, leitor(a), pausar, apontar para a tela (ou página, ou alto-falante, ou qualquer outra forma de reprodução) e falar “caramba, sou eu aí!” ou algo do tipo? Para mim, foi a primeira metade do novo jogo da Don’t Nod, criadores da série Life is Strange: Lost Records: Bloom & Rage Tape 1.

O título, primeiro de uma planejada franquia Lost Records, retrata quatro amigas em uma cidadezinha no Michigan, EUA, no verão de 1995: a doce e tímida Swann; a responsável e tranquila Autumn; a rebelde e inquieta Nora; e a mordaz e reservada Kat. Algo de terrível aconteceu ao grupo na época, tão impactante que fez com que todas prometessem que nunca mais se falariam; vinte e sete anos depois, um misterioso pacote as obriga a se reunirem novamente.

Somos tão jovens

Nossa protagonista é Swann Holloway, uma jovem amante da natureza e aspirante a diretora de cinema, que gosta de filmes de terror, de escrever fanfics sobre uma série que totalmente não é Arquivo X, e de ficar quietinha, na dela. Um belo dia, enquanto usa a filmadora que ganhou do pai para gravar a cidade natal antes de se mudar, Swann conhece três meninas muito especiais, fundadoras da banda riot grrrl Bloom & Rage, que a mostram mil coisas que ela nunca havia visto antes — e pode até chegar a nutrir uma paixonite por uma delas, à escolha do jogador (fui de Nora). 

A comparação com Max Caulfield, heroína do primeiro Life is Strange (e da continuação, Double Exposure, que já não é de autoria da Don’t Nod), é praticamente imediata: ambas são mocinhas introvertidas de tendências à “nerdolice” que fazem amizades coloridas com roqueiras e entram em um novo mundo. A diferença é que, enquanto Max só parecia aceitar passivamente todas as encrencas em que sua amiga Chloe a metia, Swann se envolve de todo coração e cresce como pessoa nas poucas semanas que passa com as garotas.

 As lembranças dos tempos da juventude nos anos 90 são entrecortadas por conversas no presente. Quando todas já são quarentonas, com empregos estáveis e famílias constituídas, Autumn é obrigada a quebrar o pacto de zero contato e convocar a Bloom & Rage para uma reunião: um pacote destinado “apenas” às quatro, onde se lê a frase “LEMBREM-SE DE 1995”, apareceu em sua casa de infância. O curioso é que nenhuma das meninas parece se lembrar dos eventos com clareza; por isso, todas se encontram na cidade natal para discutir a adolescência delas.

Esse entendimento constante de que alguma coisa horrivelmente traumática (e sobrenatural, talvez) acontecerá ao grupo, entre flashbacks engraçadinhos e caminhadas pacíficas pela floresta, cria uma enorme sombra sobre o enredo, especialmente com todo o tempo que a narrativa nos dá para conhecer e amar as garotas antes do tal acontecimento chegar. O resultado é um tipo de sofrimento por antecipação que é bastante intimista: quem é que vai querer ver essas amigas tão queridas na lama? 

Também é digna de elogios a autenticidade da escrita. Voltando à comparação com Life is Strange, a Don’t Nod já foi fonte de várias críticas a respeito do jeito que retratou adolescentes em seu primeiro sucesso: para certos membros da audiência, ficou bastante claro que o diálogo, que intentava imitar o jeito de falar dos jovens dos EUA, havia sido escrito por estrangeiros já bem longe dessa fase da vida. 

Para o roteiro de Lost Records: Bloom & Rage, o estúdio conseguiu com sucesso fugir dessa noção. Muito disso se deve à contratação de duas escritoras estadunidenses, Desiree Cifre e Nina Freeman, que conhecem bem as experiências que puseram no papel. 

Swann, Autumn, Nora e Kat são personagens tão bem escritas, que falam de maneira tão natural e distinta umas das outras, que até parecem pessoas de verdade — eu, que também já fui uma menina adolescente, me senti 100% representada nas ideias bestas que elas têm e nos tipos de conversas que acontecem entre elas. Falando nisso…

Cuidado com o que fala

Como já é costumeiro em jogos da Don’t Nod, este também não foge de tabus: inclusive, a primeira coisa que vemos ao iniciar a jogatina é um aviso de conteúdo. Pessoas que forem sensíveis a tópicos como questões de imagem corporal, homofobia e violência doméstica (há uma lista completa, sem spoilers, no site oficial) devem exercer cautela caso escolham jogar Lost Records: Bloom & Rage. 

Quem não tiver problemas com os temas apresentados encontrará um cuidado imenso na execução de cada um — as discussões recebem toda a gravidade necessária, mas também não pesam demais a mão. 

Há o sentimento de que as roteiristas realmente se importam com o que incluem na narrativa. Um exemplo que permeia grande parte desta é o relacionamento entre a protagonista e sua mãe, que não é "abusivo" no sentido clássico da palavra, afinal, ela não xinga, nem bate na filha; isso, contudo, não faz com que não seja palpavelmente desconfortável. 

Por exemplo, durante a adolescência, Swann recebeu várias "dicas", de recomendações de docinhos de baixa caloria a uma balança de presente de aniversário, de que a mãe a achava gorda — sem nunca ter ouvido a palavra diretamente. "Pelo menos ela não me fez seguir nenhuma das dietas malucas dela", a menina racionaliza. 

Não é de se surpreender que a conversa entre as duas, que abre o jogo, seja tão difícil de ouvir: é uma caracterização natural, que o jogador vem a entender conforme os detalhes chegam. A Swann do presente também comenta suas memórias com o entendimento adulto do quanto se odiava na adolescência, e, em certos pontos, o jogador pode decidir o quão afetada ela ainda é por isso. 

Outro tema que merece destaque em como é tratado é a menstruação, parte tão importante da vida adolescente, mas raramente mostrada na mídia. Por aqui, não há alarde: rola até um debate entre as quatro sobre qual o melhor tipo de absorvente, que eu consigo perfeitamente me ver tendo com minhas amigas. É tudo muito tranquilo e passa bem a sensação de intimidade.

Filma eu, filma eu!

Todas essas explorações do dia a dia de jovens em uma cidadezinha estadunidense chegam a nós por uma visão muito particular: a amada filmadora de Swann, com a qual ela grava tudo — tudo mesmo. Em Lost Records: Bloom and Rage, tirando os segmentos de conversa, nos quais podemos decidir os rumos da vida da protagonista, o maior foco de gameplay é a criação de filmes amadores.

É assim: Swann pensa em certos temas, como momentos com as amigas, pichações ao redor da cidade ou pássaros locais, e é a função do jogador filmar coisas do tipo para protagonizarem pequenos clipes de até 5 segundos, que virarão um curta (mais ou menos editável) no final. Às vezes, é necessário gravar um certo filme para progredir na história, mas a maioria é colecionável. No PlayStation 5, a câmera também é controlável com os sensores de movimento, além dos analógicos. 

Os clipes criados, que recebem um belo filtro de filmagem antiga, correspondem a momentos exatos dentro do jogo (por exemplo, uma vez a Nora bugou enquanto eu a filmava e ficou assim mesmo no final), o que torna a mecânica extremamente responsiva e personalizada. Também é possível trocar a ordem dos clipes e substituí-los por novos a qualquer momento. 

O incentivo a colecionar filmagens também permite, em um ótimo casamento entre gameplay e história, que os jogadores entendam a maneira de pensar de Swann: tudo vale a pena ser registrado. 

Nem tudo são flores

Tá tudo muito bom, tá tudo muito bem — Lost Records: Bloom & Rage está se mostrando uma excelente história, muito bem contada, e que não poderia ter sido nada além de um jogo. Ao mesmo tempo, em vários pontos, alguns tropeços na natureza técnica da empreitada acontecem: não são suficientes para derrubar o resto, mas também não são completamente insignificantes.

O primeiro ponto é a falta de um sistema de salvamento manual. Parece que é moda agora no gênero de aventura apenas permitir salvamentos automáticos — Dustborn, de agosto de 2024, sofre do mesmo problema —, e eu imagino que a ideia seja não quebrar a imersão e desincentivar o save scumming, mas atrapalha mais do que ajuda. Pelo menos dispomos de um menu de seleção de cenas nos moldes dos VHS e DVDs, o que ainda assim não faz com que não seja inconveniente ter de passar pela mesma parte duas vezes se algo der errado. 

Também faz falta um registro de conversas, especialmente devido ao fato do jogo apresentar problemas com as legendas. Às vezes, elas somem rápido demais, antes de poderem ser lidas; poder retroceder e captar o que foi perdido seria ótimo. Em outros momentos, o problema oposto acontece: o texto fica na tela por tempo demais. 

Finalmente, um certo bug gráfico me assombrou toda vez que a história pulava para o presente: a versão adulta de Autumn (vista acima), que se senta junto a Swann, usa uma blusa com um padrão bastante complexo — tão complexo que, às vezes, sequer conseguia renderizar a tempo, o que completamente detonou a ilusão de fotorrealismo. 

Nos vemos no inferno (ou na segunda metade)


Lost Records: Bloom & Rage Tape 1 planta as sementes de mais um excelente drama teen e mistério da Don’t Nod: autêntico, divertido, intimista e intrigante, o título navega naturalmente por temas complexos e conversas de adolescente, mostrando uma tremenda evolução do estúdio. Se as coisas continuarem assim na Tape 2, com certeza teremos um novo clássico do gênero de aventura nas mãos. 

Prós

  • Boa tensão narrativa;
  • Ótima escrita e caracterização de mundo e personagens;
  • As conversas são fluidas e realistas;
  • Aborda tabus com naturalidade;
  • Gameplay responsivo e bem integrado à história. 

Contras

  • Falta de ferramenta de salvamento manual e de registro de conversas;
  • Problemas com o timing de falas e legendas;
  • Pequenos problemas gráficos.

Lost Records: Bloom & Rage Tape 1 — PC/PS5/XSX — Nota final: 9.5
Versão utilizada para análise: PS5

Revisão: Beatriz Castro
Análise produzida com cópia digital cedida pela Don’t Nod

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Hiero de Lima
Jornalista formada pela PUC-SP e eterna apaixonada por videogames, especialmente aqueles japoneses de mistério. Sempre tem alguma redação gigante para escrever depois que zera um Yakuza.
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