Nível Secreto, do Prime Video, comete erros e acertos em uma produção monotonal

Antologia de curtas baseados em vários universos distintos dos games peca devido ao seu homérico esforço de seriedade, sem diversificar a abordagem.

em 12/12/2024


Depois do inquestionável sucesso que foi a série de Fallout e da apagada e insossa adaptação televisiva de Like a Dragon -Yakuza-, o Prime, serviço de streaming da Amazon, tenta emplacar a terceira produção original de 2024 baseada em games. Enquanto os dois primeiros casos foram séries em live action, Nível Secreto (Secret Level, no original) utiliza uma abordagem de antologia, isto é, um conjunto de contos sem correlação entre si, mas que abordam um universo diferente baseado cada um em uma marca diversa da indústria de jogos.


Cada um desses episódios funciona efetivamente como curtas-metragens cuja duração varia entre dez e quinze minutos, sendo que alguns deles contam com nomes bem famosos em tela, como Arnold Schwarzenegger e Keanu Reeves. Ao todo, oito episódios foram disponibilizados no dia 10 de dezembro — e você confere a nossa opinião a respeito de cada um deles a seguir.

1. Dungeons & Dragons — O Berço da Rainha

O que mais chama a atenção logo de cara é a abordagem bastante séria que os roteiristas decidiram tomar deste universo, o que entra em algum conflito com o filme do ano passado, cujo sucesso se deu justamente por causa do bom humor utilizado pela abordagem, que remete a uma jogatina sincera e verossímil de RPG de mesa entre amigos, já que a maior parte das sessões é composta de galhofa.




Contando a história de um clérigo sendo perseguido por conta de um poder antigo selado dentro de si, ele busca ajuda em um grupo de aventureiros que o leva para um dragão capaz de solucionar esse tormento. 

A animação é bem bacana e o progresso do roteiro, como um todo, acaba se mostrando um pouco genérico e batido, mesmo com um final consideravelmente apoteótico. A impressão que fica é que deram o destaque maior para os personagens menos interessantes, algo que fica bem evidente por conta do gostinho de “quero mais” deixado pelas sequências de transformação do druida.

2. Sifu — Leva uma Vida

Enquanto o episódio de Dungeons & Dragon se mostra muito imerso e derivado do universo no qual está inserido, um dos principais méritos do episódio baseado em Sifu é que eu conseguiria mostrar para meu pai e ele conseguiria se entreter pela história apresentada de uma forma completamente independente. Embora haja algumas referências claras aos jogos e seus elementos, tudo nele consegue funcionar de forma própria e, principalmente, didática, conseguindo transmitir suas intenções sem necessariamente ficar se comunicando de forma verbal.




Um exemplo claro disso é que o envelhecimento do personagem principal se dá imediatamente através de cada uma das vezes em que ele recebe um golpe fatal, quando uma “vida” é consumida de um amuleto que ele carrega pendurado. Um leigo, que não tem noção alguma das mecânicas do jogo, vai conseguir aproveitar sem que absolutamente nada do enredo se perca.

Assim, trata-se de uma história em que o protagonista estava pacatamente batendo um papo com a dona da vendinha e acaba tendo que sair porque finalmente avista seu inimigo. Depois de derrotar os capangas e, enfim, o chefe, ele retorna com sua aparência anciã para a vendinha, fechando o ciclo do conto.




As sequências de ação são incríveis, e a animação tem um estilo que remete ao do jogo, mas que ainda assim consegue ter seu próprio charme para além de uma cutscene glorificada. É válido notar que a dificuldade em adaptar Sifu reside justamente na sua verossimilhança com o cinema de artes marciais, então é uma linha tênue entre a produção de uma adaptação segura, porém genérica, e uma que consiga entender as peculiaridades que tornam o jogo tão especial a ponto de ousar o suficiente a fim de traduzi-las com competência no audiovisual.

3. New World — O Único e Futuro Rei

New World é um MMO relativamente nichado cuja operação é tocada pela própria Amazon. Sem maiores informações a respeito, a inclusão do título no meio da série nos leva a pensar que se trata de uma manobra promocional óbvia, uma espécie de jabá para a empresa que bancou todo o projeto de Nível Secreto. Sinceramente, acredito de verdade que tenha sido exatamente isso o que aconteceu.




Diante de toda essa percepção, a consistência e originalidade entregue por O Único e Futuro Rei certamente pega o espectador bem desprevenido. Ele conta a história de um nobre brucutu — interpretado por Schwarzenegger — e seu fiel escudeiro que desembarcam em um místico Novo Mundo onde seus habitantes simplesmente voltam à vida após a morte, um tema bastante recorrente se observarmos a composição geral de toda a série, uma vez que é provavelmente uma das problemáticas mais insistentes no que diz respeito aos videogames por si só.

Esse conquistador, por sua vez, acaba sendo hilário, porque seu objetivo é desafiar o rei vigente e assumir seu trono. A partir daí, ele entra em uma espécie de “looping de gameplay” em que parte em alguma jornada para conseguir novos poderes, retornar para um novo desafio e enfim sofrer uma nova derrota. No fundo, é uma história bem simples sobre humildade, mas que acaba se mostrando surpreendentemente divertida.




Além disso, é válido ressaltar que, de toda a antologia, este é o único episódio que exala bom humor. Aliás, é o principal problema de Nível Secreto como um conjunto: o tempo todo é uma série que quer ser séria e adulta (ou seja, monototal, de um único tom), sendo que a graça de vários curtas do Love Death & Robots, seriado no mesmo formato e cuja comparação foi traçada pelo próprio material promocional do Prime, era justamente por serem histórias cômicas, como aquela dos três robozinhos ou a que “simula” como seria o mundo de acordo com diferentes possibilidades referentes à morte de Hitler.

4. Unreal Tournament — Xan

Sabe quando os filmes de jogos não entendem (ou não querem entender) o que estão adaptando e acham que só fazer referência a certos elementos do material base já vai resolver a ânsia dos fãs por conteúdo? Então, o episódio referente a Unreal Tournament faz algo mais ou menos assim.

O curta-metragem realmente pega o cenário do jogo e consegue inventar qualquer justificativa para o torneio do título, mas a execução final é previsível e morosa, um roteiro cuja espinha dorsal dificilmente vai funcionar tanto com quem não sabe nada da marca quanto com quem já tem familiaridade com ela, especialmente por identificar todas as arminhas e situações que parecem estar lá só pela referência. Muito aquém do que já foi apresentado até aqui, ele pega os elementos de maneira superficial e apenas os organiza em um script precário que remete àqueles bem formulaicos tão característicos dessas plataformas de inteligência artificial generativa.

5. Warhammer 40.000 — E Eles Não Conhecerão o Medo

A série baseada em Warhammer 40K é exatamente o que se esperava de Nível Secreto como um todo: uma compilação de trailers glorificados feitos com viés claramente promocional. A questão é que E Eles Não Conhecerão o Medo é um baita trailer, desses tão potentes e consistentes que acabam entrando nos anais da indústria, lembrados por anos a fio.




Aqui, é observado um trabalho notório com a mitologia da marca ao mesmo tempo que traz uma linha narrativa protagonizada por um quarteto de personagens que são uma evidente alegoria para os modos multiplayer, por exemplo. Ainda, mesmo com todas essas obviedades, é um episódio bem divertido de se acompanhar, com uma atmosfera consistente e cuja progressão destoa bastante da bagunça do curta anterior.

A direção artística é outro ponto forte aqui, uma vez que ela consegue compensar uma qualidade de animação e modelagem um pouco inferiores em relação ao fotorrealismo dos antecessores. Ademais, é um belíssimo trailer de história, desses que dá gosto de assistir.




Ah, é importante lembrar também que a Amazon tinha uma série baseada em Warhammer com produção até então embargada por conta de divergências criativas e um contrato com a Games Workshop à beira do vencimento. Coincidentemente ou não, o anúncio de que essas pendências foram resolvidas aconteceu no dia 10, no mesmo dia do lançamento do Nível Secreto. Esperemos, então, que a excelência alcançada com esse episódio se estenda para todo o projeto a partir daqui, né?

6. PAC-MAN — Círculo

Quando falamos em Pong, tudo o que temos são duas barras e um pixel sendo arremessado para lá e para cá. A grosso modo, é isso. A barra se fazer de raquete e o pixel se fazer de bola são implicações da nossa cabeça promovidas por influências externas, como marketing e o nosso próprio conhecimento das regras do jogo de tênis.




Dito isso, o que é Pac-Man? O que é aquela bolinha amarela popularmente conhecida no Brasil como Come-Come? O que são os fantasminhas? Por que eles estão naquele labirinto? A gente pega esses elementos e os classifica exatamente como Pac-Man, sem referenciais prévios ou externos. Essas perguntas e ideias são os alicerces que sustentam a existência da bizarra e impressionante subversão que é o episódio baseado na marca da Bandai Namco.

Basicamente, Círculo conta a história de um cara misterioso que cai em uma espécie de mata onde ele será devorado vivo se, por algum acaso, não comer os inimigos antes. Essa informação é conferida a ele por uma esfera misteriosa dourada, que age como uma espécie de mentora e que encaminha o protagonista até uma porta que supostamente é a saída daquele lugar.





Até aqui, de todos os episódios, é tranquilamente uma das releituras mais distintas e, provavelmente, a que menos carrega a energia de trailer, já que isso dificilmente serviria para promover o jogo ao qual faz referência. Ainda assim, é uma reinterpretação visceralmente interessante, porém que talvez cause estranhamento a certos públicos por conta da digressão do material base e da atmosfera, que, por via de regra, segue em seu esforço homérico para oferecer a experiência mais metida a madura possível.

Se bem que a simples subversão de Pac-Man, do jeito que foi, já é hilária por si só — e essa abordagem acaba funcionando mais como um humor involuntário do que qualquer outra coisa.

Atualização (12/12, 23:06): no fim das contas, ele realmente era um trailer de um novo jogo baseado em Pac-Man, só não tinha sido anunciado ainda. 



7. Crossfire — Bom Conflito

Crossfire é uma espécie de clone de Counter-Strike que é imensamente popular em países asiáticos, especialmente na China. Já tem algum tempo que a marca segue com planos para uma adaptação cinematográfica. A questão é que não há o que adaptar aqui. Não há uma mitologia base a ser seguida. O que faz a IP ser o que é são suas mecânicas.




Dito isso, Bom Conflito nada mais é do que uma história de escolta completamente genérica, dessas que se utilizam da estética de artilharia moderna para tentar explorar algumas cenas de ação e certas discussões de moralidade enquanto serve como propaganda para a indústria bélica e glorifica o complexo militar-industrial. Nada muito diferente do que filmes como Sniper Americano ou Guerra ao Terror já fizeram.

8. Armored Core — Gestão de Ativos

O episódio baseado em Armored Core se destaca por um motivo bem simples: enquanto todos os anteriores eram comparados primariamente a trailers, esse aqui passa uma energia bizarra de cutscene. Metade do episódio consiste em sequências de Mechas combatendo, enquanto a outra metade se concentra em um Keanu Reeves conversando com uma espécie de voz-guia que assume a função de assistente tecnológica, mas dessas que gostam de fazer certos comentários ácidos e pagar de engraçadinha enquanto o quebra-pau está torando.




Gestão de Ativos até faz um trabalho decente para quem já conhece a série da FromSoftware, mas a impressão geral é que o curta se assemelha mais a um miolo de uma narrativa maior que não teve a oportunidade de receber uma introdução para preparar o terreno e nem uma conclusão que conseguisse justificar qualquer informação que tenha sido pincelada. Nem as batalhas entre os robozões se salvam.

Os episódios finais de Nível Secreto serão disponibilizados no Prime Video no dia 17 de dezembro. Confira nossas impressões. 
Revisão: Alessandra Ribeiro
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João Pedro Boaventura
É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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