Depois de passar por um período de arrecadação no Catarse e uma longa produção, Enigma do Medo finalmente chegou ao público com um projeto recheado de carisma e identidade. Baseado na websérie de RPG “Ordem Paranormal”, do youtuber Rafael “Cellbit” Lange, o jogo era a promessa de uma carta de amor ao universo criado pelo influenciador para os fãs que há anos acompanham o trabalho nas redes.
Com um time de dublagem de primeira categoria, uma direção de arte extremamente charmosa e um núcleo sólido de mecânicas, Enigma do Medo expande seu universo de horror com uma gameplay simples à primeira vista, mas com tanta profundidade em seus enigmas que deixaria até os desenvolvedores mais veteranos com inveja, mesmo que o projeto tropece em alguns quesitos mais técnicos.
O Deus do medo está observando
O jogo começa sem muita enrolação te colocando na pele de Mia e seu fiel cachorro Lupi. Junto de uma equipe de especialistas paranormais, eles procuram o paradeiro de Veríssimo, líder da Ordem Paranormal e pai da protagonista. A procura leva a equipe até o Perímetro, uma região desolada famosa por desaparecimentos de pessoas.
Com essa premissa simples, abre-se a narrativa que vai trazer os jogadores para uma experiência quase transcendental. Enigma do Medo usa do artifício de contar uma história sobre uma história. O Perímetro já foi visitado no passado, algo muito errado aconteceu e você, junto com Mia, vai descobrindo através de documentos e áudios a tragédia que abateu aquele lugar.
Cada local que você visita é parte desse grande quebra-cabeça, e variedade é o que não falta: tem castelos mal-assombrados, cemitérios malditos, cavernas misteriosas e até bunkers escondidos. Cenários e códigos clássicos de histórias de terror, mas que aqui ganham aquele toque extra de brasilidade, principalmente com a ajuda da dublagem em cada locação, que é composta por nomes estelares do elenco brasileiro.
A temática de Enigma não está apenas nos nomes ou nas dezenas de desafios ao longo do jogo. A própria estrutura de progressão na história é um grande enigma, assim como o que aconteceu no perímetro é um verdadeiro mistério no início. Transitar entre cada área demanda a solução de algum enigma específico, que, por sua vez, pode necessitar do conhecimento de algo que só está disponível em uma terceira localidade.
Essas camadas de enigmas e mistérios poderiam ser confundidas entre si, porém é possível ver que a equipe criativa tinha muita segurança do projeto que queriam construir. É muito orgânica a sensação de que está de fato descobrindo o que aconteceu assim como Mia, ao passo que o horror cresce ao perceber o quão bizarro tudo aquilo é.
Dublagem de alto nível
Guilherme Briggs, Wendel Bezerra, Pamella Rodrigues e Carol Crespo são apenas alguns dos nomes que compõem um elenco pra lá de especial. É de fato assustador como a Dumativa conseguiu reunir tantos profissionais com vozes tão conhecidas no imaginário brasileiro e, ainda assim, conseguir dar personalidade própria a cada personagem.
Briggs, conhecido por trabalhos como Superman, Optimus Prime e Cosmo, interpreta um Veríssimo extremamente pragmático e obstinado. Bezerra também é um destaque na pele de Calisto, talvez um dos personagens mais enigmáticos da obra inteira. Cada voz, até mesmo de personagens menores, ajuda a compor uma história trágica, mas, ao mesmo tempo, cheia de ternura.
Cada lembrança, registro de áudio, diálogo e cutscenes são essenciais para entender que, para além dos investigadores paranormais, existem pais, filhos, maridos, esposas e todo coletivo de humanidade por trás desses personagens, e nada melhor que um elenco competente para transcrever isso do texto para a tela.
Quem tem medo de enigmas?
Como esperado, apesar do combate e elementos de survival horror, é nos puzzles e enigmas que o jogo realmente brilha. Eu, pessoalmente, não sou alguém que realmente gosta de resolver charadas e coisas do tipo, mas a forma como Enigma do Medo te leva a resolver seus mistérios é, de fato, engajante.
Primeiro ele te conta uma informação sobre o local, mostra um quadro incompleto do que houve ali, te dá pistas, trechos, áudios e, depois, te joga uma interrogação. Geralmente, essa interrogação vem no formato de uma porta trancada, uma passagem oculta, um monstro que não é possível matar.
Como a história contada arrasta cada vez mais o jogador para perguntas aterrorizantes, uma parte sua quer vencer essa interrogação e avançar na história, e é nesse momento que você toma gosto pela coisa. O título não te pega na mão em momento nenhum, mal mal tem dicas sobre como prosseguir, geralmente atribuídas nas falas da equipe de Mia. É você e sua mente maquinando para avançar nos desafios, o que torna cada conquista ainda mais gostosa de saborear.
Até na forma como os chefões são estruturados segue essa prática. Não são inimigos com barra de vida, ou mecânicas propriamente ditas para serem derrotados; boa parte deles também exige um esforço mental para fazer um último enigma para derrotá-los. Uma escolha de fato criativa que tira o jogo de um lugar mais comum de um indie do gênero.
Apesar disso, ainda há momentos em que o planejado pelos devs não sai de forma tão orgânica. Existem enigmas que contêm mais que o suficiente de peças para você entender o que é para ser feito; outros, de menos. Um exemplo que me deixou extremamente frustrado foi quando, para conseguir um item, eu precisava derrotar um monstro, mas eu nunca tinha sequer o visto, e o jogo entendeu como se eu tivesse tido contato com ele.
Isso levou a algumas horas de conflito, onde eu estava procurando algo quando, na verdade, deveria estar atrás do monstro. O que piora a situação é que as informações necessárias para entender o que ele era e como lidar com ele estavam espalhadas em diferentes áreas do mapa, o que tornava a conclusão ainda mais difícil.
Tirando esse exemplo específico, eu diria que 90% dos desafios são justos e não levam a situações tão frustrantes. Algo que prejudica um pouco esses raros momentos são exatamente os áudios de dica da equipe, que, por vezes, falam de eventos que já aconteceram, locações que você já visitou ou enigmas que já descobriu. Além desses detalhes, o que fica por fim de experiência ruim são diversos bugs e uma performance no mínimo duvidosa, com áreas chegando aos absurdos 30 FPS, principalmente pelo escopo pequeno do projeto.
O paranormal nunca vem fácil ao nosso mundo
Enigma do Medo é um projeto que destaca o potencial nacional para os jogos na atualidade, assim como demonstra a fragilidade da nossa indústria atual. Com apoio de fãs e um trabalho e dedicação louvável, os desenvolvedores da Dumativa, juntamente com Cellbit, conseguiram criar não apenas um jogo que faz jus ao universo de Ordem Paranormal, mas também como um dos grandes projetos da indústria brasileira.
Resta agora saber para onde as histórias da Ordem vão no quesito de mídia. Quem sabe uma sequência ou uma animação? Se for nessa mesma qualidade, pode contar comigo.
Prós
- Uma história recheada de camadas e reviravoltas ambientada em um universo de horror cósmico vasto e criativo;
- Direção de arte baseada em pixel art que trabalha bem a ideia do 2D com 3D, utilizando das sombras e da luz para criar ambientes imersivos e tenebrosos;
- Elenco de dublagem de altíssimo nível, contando com vozes internacionalmente reconhecidas, como Guilherme Briggs e Wendel Bezerra, adicionando ainda mais profundidade aos personagens;
- A construção dos enigmas em conjunto com a história torna o ato de solucionar os puzzles extremamente agradável e engajante.
Contras
- Existe uma quantidade considerável de bugs, principalmente envolvendo o Mapa Mental;
- Em raros casos, os enigmas podem ter poucas pistas para sua resolução, ou são baseados em eventos um pouco aleatórios que podem causar confusão no jogador;
- Os áudios de dicas às vezes são inúteis, chegando a repetir mensagens que o jogador já conhece;
- A performance é instável e, dependendo do lugar, pode cair em um nível considerável mesmo em placas fortes.
Enigma do Medo — PC — Nota: 8.5
Revisão: Alessandra Ribeiro
Análise produzida com cópia digital cedida pela Nuuvem