Vanderlei Luxemburgo, treinador lendário do futebol brasileiro, e Hironobu
Sakaguchi, uma das principais cabeças por trás de Final Fantasy, compartilham
trajetórias que os posicionaram como vanguardistas em seus respectivos campos.
Luxemburgo com abordagens táticas inovadoras nos anos 1990 e Sakaguchi ao
consolidar mecânicas e convenções que definiram o gênero de RPG. Apesar de
Luxemburgo ainda gozar de certo prestígio, ele hoje é questionado
por suas dificuldades em se adaptar à modernidade do esporte e indiferença ao
novo. Fantasian Neo Dimension, por sua vez, é um trabalho que posiciona
Sakaguchi em um lugar parecido com o do dito treinador em sua respectiva
área de atuação.
Um clássico em seu mais puro cerne
Embora nenhum produto ou obra deva ser refém do nome ou renome de seu autor —
e isso vale igualmente para situações positivas e negativas — o contexto de
sua produção acaba sendo importante para uma melhor compreensão de sua
integridade.
Assim, nossa história remonta do começo do milênio, quando o fracasso
retumbante do filme Final Fantasy: The Spirits Within, foi suficiente para
colocar Hironobu Sakaguchi, o diretor do filme e criador da IP, em uma
crise existencial que o conduziu para uma espécie de exílio no Havaí por três
anos, durante os quais ficou recluso sem fazer nada além de receber créditos
como produtor executivo (cargo normalmente atribuído como menção honrosa ao
criador, tal como o Stan Lee figurava nos filmes da Marvel) nos novos títulos
da franquia.
Só depois de ser convencido pelos amigos
Akira Toriyama
e Takehiko Inoue (respectivos autores de
Dragon Ball
e Slam Dunk e que dispensam apresentações), além de receber um aporte
financeiro considerável da Microsoft, foi que Sakaguchi decidiu retornar ao
trabalho nas suas próprias condições. Daí ele fundou a Mistwalker, que chegou
a produzir alguns projetos variados, como Blue Dragon, Lost
Odyssey, ASH: Archaic Sealed Heart e The Last Story, que, até a presente data,
consta como a última produção com envolvimento do criador voltada diretamente
para consoles.
Isso porque, a partir daí, o estúdio acabou focando em experiências mobile,
como é o caso de Party Wave (que nem RPG é), e a série Terra, que conta com
Terra Battle, Terra Battle 2 e Terra Wave. O último dessa leva é Fantasian,
desenvolvido originalmente como um produto exclusivo para o Apple Arcade, o
serviço de assinatura da Apple. Ou seja: o título tem que funcionar pelo menos
no iPhone, além das outras plataformas mais robustas, como iPad ou Mac. Após
alguns bons anos preso ao ecossistema, ele agora enfim se mostra acessível
para um novo público fora de tal nicho tão restrito.
Tendo tudo isso em vista, Fantasian Neo Dimension é provavelmente um dos RPGs
mais convencionais lançados nos últimos tempos. É algo evidenciado logo de cara
pela premissa, que se aproveita do clichê do protagonista amnésico e de sua
vontade de recuperar suas memórias — cuja perda costuma ser relacionada a
alguma atividade das forças antagonistas — para desenrolar a trama, a qual
aqui se passa em um universo marcado pela dicotomia entre duas realidades
distintas: uma regida por máquinas e a outra pelos humanos.
O título também se desdobra como qualquer RPG mais formulaico.
Progrida na história (de um jeito linear e pouco inspirado, ressalta-se)
através dos cenários e dungeons enquanto faz aliados, melhore seu equipamento
e habilidades através de exploração e grind, vença os chefes e aceite as
missões paralelas para inflar o tempo de jogo e fazer o mundo parecer diverso
e vivo. Para complementar, esse sentimento de tradicionalidade se mostra ainda mais
evidente quando percebemos que os combates se pautam em encontros aleatórios e
os cenários se utilizam de
ambientação pré-renderizada.
Esses dois atributos acabam se destacando porque é neles que residem as principais tentativas de diferencial para a mesa. No caso das
batalhas, existe um sistema chamado Dimengeon que consiste em ignorar os
encontros aleatórios e acumulá-los em um mecanismo que transporta todos os
inimigos até uma espécie de dimensão de bolso na qual o protagonista pode
adentrar e então dar cabo de todos os oponentes armazenados a fim de esvaziar
o tanque e permitir uma nova leva de adversários.
Nota-se que a mecânica não armazena os encontros individuais, que são
compostos por grupos de inimigos, mas os inimigos em si. Ou seja, na hora de
zerar o aparato, o jogador terá que lutar contra hordas consideravelmente
grandes de adversários, maiores do que os próprios combates singulares. Em
contrapartida, as recompensas financeiras e de experiência acabam sendo
maiores.
Armazenar os encontros aleatórios no apetrecho acaba servindo para fortalecer
a segunda característica mencionada como a “cereja do bolo”: os cenários
pré-renderizados. Nesse aspecto, Fantasian traz uma aplicação bem tradicional
que remete ao que faz Final Fantasy VII (o original). Ou seja, trata-se de
cenários bidimensionais estáticos cuja perspectiva fixa entre as áreas guia o
olhar do jogador enquanto o level design sobrepõe áreas de movimento
intransponíveis para os modelos dos personagens, que aumentam ou diminuem de
tamanho de acordo com a distância com a qual eles se posicional câmera,
criando uma ilusão de ótica 3D.
O elemento individualizador trazido pela Mistwalker está na aplicação, uma vez que tais
cenários são, na verdade, fotografias em perspectiva tiradas de maquetes
artesanais reais construídas especialmente para o game. A ideia em si é muito
bacana, mas na prática ela não funciona em 100% do tempo.
From diorama to game - watch how the team at Mistwalker built the world of Fantasian Neo Dimension.#FantasianNeoDimension arrives December 5th on Nintendo Switch, PlayStation 5, PS4, Xbox Series X|S and Steam. pic.twitter.com/CpT7Jo7iEM
— FANTASIAN Neo Dimension (@Fantasian_EN) October 7, 2024
Uma das razões para isso reside no fato de vários desses planos de fundo não
estarem em uma definição nítida, por vezes um pouco embaçados. É como se eles estivessem esticados ou
tivessem perdido qualidade, com alguns ruídos de granulação.
Outro motivo se deve aos modelos tridimensionais e totalmente
digitais dos personagens, em suas estéticas de anime, que não parecem ser compatíveis com os realistas planos de fundo. Essa dificuldade de sinergia
entre os elementos remete a uma animação antiga em célula, quando os cenários
de fundo contavam com
um estilo que destoava do que era utilizado pela própria célula de
animação
— e, em alguns casos, era até possível prever quais eram os elementos que iam
se mover.
A principal ironia é que, embora os modelos dos personagens e o plano de fundo
destoem de uma forma por vezes bem contrastante, certos componentes
interativos são de difícil discernimento por parte do jogador. Foram algumas
as ocasiões durante as quais foi necessário aproximar o personagem em uma
posição bastante específica para que o ícone de interatividade decidisse
pipocar e, assim, fosse possível prosseguir na campanha.
Ainda nesse nível estético referente à construção atmosférica, é possível
dizer que pelo menos as trilhas de Nobuo Uematsu conseguem se sustentar. As
diversas músicas que embalam a aventura têm seu charme próprio, ainda que o
compositor não chegue nem perto de se reinventar — e a essa altura da vida e
à beira da aposentadoria, dificilmente irá — não que precise. Adicionalmente, Neo Dimension conta com a possibilidade de trocar a música padrão de batalha por outras provindas de jogos recentes da série Final Fantasy, como as expansões do Final Fantasy XIV, do XVI ou mesmo dos Pixel Remaster.
Toca a música do Mii Plaza
O valor dos cenários pré-renderizados de Fantasian é igualmente minimizado
por conta da dificuldade que eles apresentam em conversar com toda a
identidade visual da interface, cujo minimalismo, cores neutras e bordas
arredondadas parecem ter chegado do longínquo ano de 2006, quando o Wii
estava prestes a se tornar a febre do momento.
Toda a interface de Neo Dimension traz um problema estrutural evidente
porque ela não passou por processo algum de adaptação para novas
plataformas. Sendo concebida para ser intuitiva em um iPhone, ela conta com
um grau exagerado de simplificação que prioriza elementos interativos
através do toque, com botões e menus bem maiores em pouca exposição visual.
A nível prático, não promover uma revisão geral dos menus durante esse
processo de adaptação para consoles e PC acaba desconsiderando as particularidades de cada plataforma e como ela se correlaciona com o conforto geral para a sua usabilidade.
Paradoxalmente, esse tropeço de Fantasian durante esse processo de
portabilidade acaba esbarrando em um estilo de jogabilidade bastante curioso
e prático ao permitir que o título seja jogado 100% através do mouse, como
uma espécie de parente distante do gênero point and click. Em vez de
ficar controlando o personagem nas setas do teclado ou no direcional do
controle, é possível abrir o mapa e clicar em um ponto de interesse para
onde o boneco na tela irá andando de forma automática.
Isso não é lá uma novidade — jogos de RPG Maker têm o recurso como
padrão, até —, mas é uma maneira estranhamente prática e confortável de se
jogar. Nota-se que é possível que nem os desenvolvedores devem ter considerado esse estilo
como uma vantagem, já que o próprio game sugere, a todo momento, que um
controle é a melhor opção para tal.
O sistema de combate, inclusive, se aproveita desse estilo baseado no toque,
ou melhor, no mouse, e apresenta uma jogabilidade em turnos cuja trajetória
do ataque depende do caminho desenhado na tela, o que traz alguma
diversidade para os padrões de ataque em relação à disposição dos inimigos,
algo que casou bem com o sistema Dimengeon. Ainda assim, embora não tão
comum nos dias de hoje, esse sistema já havia se consolidado muito bem
durante os tempos áureos do Nintendo DS e do 3DS, sistemas prolíficos para o
gênero.
De resto, o combate não se esforça para ir além do padrão, uma filosofia que
se adequa ao jogo como um todo. Alguns chefes exigem certos esquemas
necessários para serem derrotados, mas ao mesmo tempo apelam para uma dificuldade forçada ao se apresentarem mais como esponjas de dano do que
como desafios realmente planejados.
Feijão com arroz é bom e dá sim para comer todo dia, só que precisa ser bem-feito
O que mais chama atenção em relação a problemas característicos de um produto mobile
sendo utilizado em uma tela para o qual ele não foi concebido é que eles já
foram apontados desde lá atrás, no lançamento do Apple Arcade, uma vez que o
serviço também permite a reprodução na Apple TV ou no MacOS e já tinha
suporte a um controlador diferente que não fosse a tela de toque do iPhone
ou iPad.
Ou seja, não foi exatamente ingenuidade, mas talvez uma falta de tentativa. De que adianta relançar um produto no mercado a fim de torná-lo acessível para vários públicos se as mudanças necessárias para alcançar esse objetivo não foram consideradas? É como libertar um prisioneiro em um deserto só com uma mão na
frente e outra atrás, sem oferecer qualquer amparo que possa colaborar com
sua sobrevivência.
A experiência proporcionada por Fantasian Neo Dimension teria sido melhor caso a transição entre o Apple Arcade e essas demais plataformas tivesse um refino ainda maior. Afinal, o título faz o feijão com arroz básico
para o gênero e com certeza poderia atender a um nicho. Existem RPGs muito
bons no mercado e que se atêm ao básico do gênero. A questão é que fica difícil aproveitá-lo ao máximo quando ele não utiliza seus recursos a fim de otimizar tudo o que a jornada pode oferecer.
Como se não bastasse essa relativa fragilidade apresentada pelo pacote oferecido
por Fantasian Neo Dimension, ele ainda tem que competir pela mesma audiência
com
Dragon Quest III HD-2D Remake, outro RPG cuja veia tradicional é a mesma, mas com o diferencial de
pertencer a uma franquia consagrada, ser um remake fiel de uma aventura
menos linear, melhor acabada e de aparência bem mais convidativa.
A última dança do pofexô Sakaguchi?
O último projeto de Vanderlei Luxemburgo no futebol foi com o Corinthians em
2023, quando ele teve um êxito relativo ao organizar um time composto de
atletas cujo auge também já tinha passado ao mesmo tempo em que foi
responsável por subir alguns moleques da base para jogar no time principal,
embora tenha demonstrado dificuldade notória em apresentar um futebol
suficientemente sólido, que não dependesse de lapsos, a fim de fazer com que
o time conseguisse abocanhar uma conquista em alguma das Copas ou sequer
escapar em definitivo da zona de rebaixamento, afinal, acreditava-se que aquele elenco era capaz de alcançar voos mais altos.
O trabalho de Sakaguchi em Fantasian Neo Dimension foi, neste
aspecto, um pouco parecido. Tal como Luxa acertou ao promover a transição
dos jogadores mais jovens ao envelhecido elenco profissional, Sakaguchi
conseguiu implementar certas novidades a ideias clássicas de design, como os
encontros aleatórios anulados pela dimensão de bolso e a estética de diorama
pré-renderizada. Entretanto, a insistência em certos elementos considerados
pouco convidativos para o momento atual da indústria de jogos, bem como a falta de algum refino no processo de produção do port, faz com que Fantasian não consiga alcançar um voo ainda mais alto pela experiência oferecida.
Prós
- Os cenários em Diorama, quando funcionam, funcionam bem e se mostram belíssimos;
- Possibilidade de progredir por toda a campanha usando apenas o mouse é uma surpresa estranhamente confortável (apenas no PC);
- Sistema de combate à base de toque remete a um tempo em que os RPGs se sentiam em casa no Nintendo DS;
- O Dimengeon é uma alternativa interessante para amenizar os problemas inerentes dos encontros aleatórios;
Contras
- Level design tão simples quanto é linear;
- Narrativa clichê com uma execução relativamente genérica;
- Segunda metade do jogo parece ser artificialmente inflada por atividades banais e grind;
- Embora seja uma boa ideia no papel, a apresentação dos cenários em Diorama é bem inconsistente;
- Interface geral torna difícil a distinção dos elementos interativos dos cenários, além de um design anacrônico;
- Menus desproporcionais e não adequados aos sistemas que não sejam estritamente mobile, pouca adaptação da experiência para novas plataformas;
Fantasian Neo Dimension — PC/PS4/PS5/XSX/Switch — Nota: 5.5Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix