Análise: Fantasian Neo Dimension é um RPG tradicional em seu cerne em um port com poucos atrativos

Título desenvolvido da Mistwalker escapa do Apple Arcade, mas seu o trabalho de port acaba por minar uma experiência que poderia agradar a seu nicho.

em 04/12/2024


Vanderlei Luxemburgo, treinador lendário do futebol brasileiro, e Hironobu Sakaguchi, uma das principais cabeças por trás de Final Fantasy, compartilham trajetórias que os posicionaram como vanguardistas em seus respectivos campos. Luxemburgo com abordagens táticas inovadoras nos anos 1990 e Sakaguchi ao consolidar mecânicas e convenções que definiram o gênero de RPG. Apesar de Luxemburgo ainda gozar de certo prestígio, ele hoje é questionado por suas dificuldades em se adaptar à modernidade do esporte e indiferença ao novo. Fantasian Neo Dimension, por sua vez, é um trabalho que posiciona Sakaguchi em um lugar parecido com o do dito treinador em sua respectiva área de atuação. 

Um clássico em seu mais puro cerne

Embora nenhum produto ou obra deva ser refém do nome ou renome de seu autor — e isso vale igualmente para situações positivas e negativas — o contexto de sua produção acaba sendo importante para uma melhor compreensão de sua integridade.




Assim, nossa história remonta do começo do milênio, quando o fracasso retumbante do filme Final Fantasy: The Spirits Within, foi suficiente para colocar Hironobu Sakaguchi, o diretor do filme e criador da IP,  em uma crise existencial que o conduziu para uma espécie de exílio no Havaí por três anos, durante os quais ficou recluso sem fazer nada além de receber créditos como produtor executivo (cargo normalmente atribuído como menção honrosa ao criador, tal como o Stan Lee figurava nos filmes da Marvel) nos novos títulos da franquia.

Só depois de ser convencido pelos amigos Akira Toriyama e Takehiko Inoue (respectivos autores de Dragon Ball e Slam Dunk e que dispensam apresentações), além de receber um aporte financeiro considerável da Microsoft, foi que Sakaguchi decidiu retornar ao trabalho nas suas próprias condições. Daí ele fundou a Mistwalker, que chegou a produzir alguns projetos variados, como Blue Dragon, Lost Odyssey, ASH: Archaic Sealed Heart e The Last Story, que, até a presente data, consta como a última produção com envolvimento do criador voltada diretamente para consoles.




Isso porque, a partir daí, o estúdio acabou focando em experiências mobile, como é o caso de Party Wave (que nem RPG é), e a série Terra, que conta com Terra Battle, Terra Battle 2 e Terra Wave. O último dessa leva é Fantasian, desenvolvido originalmente como um produto exclusivo para o Apple Arcade, o serviço de assinatura da Apple. Ou seja: o título tem que funcionar pelo menos no iPhone, além das outras plataformas mais robustas, como iPad ou Mac. Após alguns bons anos preso ao ecossistema, ele agora enfim se mostra acessível para um novo público fora de tal nicho tão restrito.

Tendo tudo isso em vista, Fantasian Neo Dimension é provavelmente um dos RPGs mais convencionais lançados nos últimos tempos. É algo evidenciado logo de cara pela premissa, que se aproveita do clichê do protagonista amnésico e de sua vontade de recuperar suas memórias — cuja perda costuma ser relacionada a alguma atividade das forças antagonistas — para desenrolar a trama, a qual aqui se passa em um universo marcado pela dicotomia entre duas realidades distintas: uma regida por máquinas e a outra pelos humanos.




O título também se desdobra como qualquer RPG mais formulaico. Progrida na história (de um jeito linear e pouco inspirado, ressalta-se) através dos cenários e dungeons enquanto faz aliados, melhore seu equipamento e habilidades através de exploração e grind, vença os chefes e aceite as missões paralelas para inflar o tempo de jogo e fazer o mundo parecer diverso e vivo. Para complementar, esse sentimento de tradicionalidade se mostra ainda mais evidente quando percebemos que os combates se pautam em encontros aleatórios e os cenários se utilizam de ambientação pré-renderizada.

Esses dois atributos acabam se destacando porque é neles que residem as principais tentativas de diferencial para a mesa. No caso das batalhas, existe um sistema chamado Dimengeon que consiste em ignorar os encontros aleatórios e acumulá-los em um mecanismo que transporta todos os inimigos até uma espécie de dimensão de bolso na qual o protagonista pode adentrar e então dar cabo de todos os oponentes armazenados a fim de esvaziar o tanque e permitir uma nova leva de adversários.




Nota-se que a mecânica não armazena os encontros individuais, que são compostos por grupos de inimigos, mas os inimigos em si. Ou seja, na hora de zerar o aparato, o jogador terá que lutar contra hordas consideravelmente grandes de adversários, maiores do que os próprios combates singulares. Em contrapartida, as recompensas financeiras e de experiência acabam sendo maiores.

Armazenar os encontros aleatórios no apetrecho acaba servindo para fortalecer a segunda característica mencionada como a “cereja do bolo”: os cenários pré-renderizados. Nesse aspecto, Fantasian traz uma aplicação bem tradicional que remete ao que faz Final Fantasy VII (o original). Ou seja, trata-se de cenários bidimensionais estáticos cuja perspectiva fixa entre as áreas guia o olhar do jogador enquanto o level design sobrepõe áreas de movimento intransponíveis para os modelos dos personagens, que aumentam ou diminuem de tamanho de acordo com a distância com a qual eles se posicional câmera, criando uma ilusão de ótica 3D.




O elemento individualizador trazido pela Mistwalker está na aplicação, uma vez que tais cenários são, na verdade, fotografias em perspectiva tiradas de maquetes artesanais reais construídas especialmente para o game. A ideia em si é muito bacana, mas na prática ela não funciona em 100% do tempo.
Uma das razões para isso reside no fato de vários desses planos de fundo não estarem em uma definição nítida, por vezes um pouco embaçados. É como se eles estivessem esticados ou tivessem perdido qualidade, com alguns ruídos de granulação.

Outro motivo se deve aos modelos tridimensionais e totalmente digitais dos personagens, em suas estéticas de anime, que não parecem ser compatíveis com os realistas planos de fundo. Essa dificuldade de sinergia entre os elementos remete a uma animação antiga em célula, quando os cenários de fundo contavam com um estilo que destoava do que era utilizado pela própria célula de animação — e, em alguns casos, era até possível prever quais eram os elementos que iam se mover.




A principal ironia é que, embora os modelos dos personagens e o plano de fundo destoem de uma forma por vezes bem contrastante, certos componentes interativos são de difícil discernimento por parte do jogador. Foram algumas as ocasiões durante as quais foi necessário aproximar o personagem em uma posição bastante específica para que o ícone de interatividade decidisse pipocar e, assim, fosse possível prosseguir na campanha.

Ainda nesse nível estético referente à construção atmosférica, é possível dizer que pelo menos as trilhas de Nobuo Uematsu conseguem se sustentar. As diversas músicas que embalam a aventura têm seu charme próprio, ainda que o compositor não chegue nem perto de se reinventar — e a essa altura da vida e à beira da aposentadoria, dificilmente irá — não que precise. Adicionalmente, Neo Dimension conta com a possibilidade de trocar a música padrão de batalha por outras provindas de jogos recentes da série Final Fantasy, como as expansões do Final Fantasy XIV, do XVI ou mesmo dos Pixel Remaster



Toca a música do Mii Plaza

O valor dos cenários pré-renderizados de Fantasian é igualmente minimizado por conta da dificuldade que eles apresentam em conversar com toda a identidade visual da interface, cujo minimalismo, cores neutras e bordas arredondadas parecem ter chegado do longínquo ano de 2006, quando o Wii estava prestes a se tornar a febre do momento.




Toda a interface de Neo Dimension traz um problema estrutural evidente porque ela não passou por processo algum de adaptação para novas plataformas. Sendo concebida para ser intuitiva em um iPhone, ela conta com um grau exagerado de simplificação que prioriza elementos interativos através do toque, com botões e menus bem maiores em pouca exposição visual.

A nível prático, não promover uma revisão geral dos menus durante esse processo de adaptação para consoles e PC acaba desconsiderando as particularidades de cada plataforma e como ela se correlaciona com o conforto geral para a sua usabilidade. 




Paradoxalmente, esse tropeço de Fantasian durante esse processo de portabilidade acaba esbarrando em um estilo de jogabilidade bastante curioso e prático ao permitir que o título seja jogado 100% através do mouse, como uma espécie de parente distante do gênero point and click. Em vez de ficar controlando o personagem nas setas do teclado ou no direcional do controle, é possível abrir o mapa e clicar em um ponto de interesse para onde o boneco na tela irá andando de forma automática.

Isso não é lá uma novidade — jogos de RPG Maker têm o recurso como padrão, até —, mas é uma maneira estranhamente prática e confortável de se jogar. Nota-se que é possível que nem os desenvolvedores devem ter considerado esse estilo como uma vantagem, já que o próprio game sugere, a todo momento, que um controle é a melhor opção para tal.




O sistema de combate, inclusive, se aproveita desse estilo baseado no toque, ou melhor, no mouse, e apresenta uma jogabilidade em turnos cuja trajetória do ataque depende do caminho desenhado na tela, o que traz alguma diversidade para os padrões de ataque em relação à disposição dos inimigos, algo que casou bem com o sistema Dimengeon. Ainda assim, embora não tão comum nos dias de hoje, esse sistema já havia se consolidado muito bem durante os tempos áureos do Nintendo DS e do 3DS, sistemas prolíficos para o gênero.

De resto, o combate não se esforça para ir além do padrão, uma filosofia que se adequa ao jogo como um todo. Alguns chefes exigem certos esquemas necessários para serem derrotados, mas ao mesmo tempo apelam para uma dificuldade forçada ao se apresentarem mais como esponjas de dano do que como desafios realmente planejados.



Feijão com arroz é bom e dá sim para comer todo dia, só que precisa ser bem-feito

O que mais chama atenção em relação a problemas característicos de um produto mobile sendo utilizado em uma tela para o qual ele não foi concebido é que eles já foram apontados desde lá atrás, no lançamento do Apple Arcade, uma vez que o serviço também permite a reprodução na Apple TV ou no MacOS e já tinha suporte a um controlador diferente que não fosse a tela de toque do iPhone ou iPad.   

Ou seja, não foi exatamente ingenuidade, mas talvez uma falta de tentativa. De que adianta relançar um produto no mercado a fim de torná-lo acessível para vários públicos se as mudanças necessárias para alcançar esse objetivo não foram consideradas? É como libertar um prisioneiro em um deserto só com uma mão na frente e outra atrás, sem oferecer qualquer amparo que possa colaborar com sua sobrevivência.




A experiência proporcionada por Fantasian Neo Dimension teria sido melhor caso a transição entre o Apple Arcade e essas demais plataformas tivesse um refino ainda maior. Afinal, o título faz o feijão com arroz básico para o gênero e com certeza poderia atender a um nicho. Existem RPGs muito bons no mercado e que se atêm ao básico do gênero. A questão é que fica difícil aproveitá-lo ao máximo quando ele não utiliza seus recursos a fim de otimizar tudo o que a jornada pode oferecer.

Como se não bastasse essa relativa fragilidade apresentada pelo pacote oferecido por Fantasian Neo Dimension, ele ainda tem que competir pela mesma audiência com Dragon Quest III HD-2D Remake, outro RPG cuja veia tradicional é a mesma, mas com o diferencial de pertencer a uma franquia consagrada, ser um remake fiel de uma aventura menos linear, melhor acabada e de aparência bem mais convidativa. 




A última dança do pofexô Sakaguchi?

O último projeto de Vanderlei Luxemburgo no futebol foi com o Corinthians em 2023, quando ele teve um êxito relativo ao organizar um time composto de atletas cujo auge também já tinha passado ao mesmo tempo em que foi responsável por subir alguns moleques da base para jogar no time principal, embora tenha demonstrado dificuldade notória em apresentar um futebol suficientemente sólido, que não dependesse de lapsos, a fim de fazer com que o time conseguisse abocanhar uma conquista em alguma das Copas ou sequer escapar em definitivo da zona de rebaixamento, afinal, acreditava-se que aquele elenco era capaz de alcançar voos mais altos. 

O trabalho de Sakaguchi em Fantasian Neo Dimension foi, neste aspecto, um pouco parecido. Tal como Luxa acertou ao promover a transição dos jogadores mais jovens ao envelhecido elenco profissional, Sakaguchi conseguiu implementar certas novidades a ideias clássicas de design, como os encontros aleatórios anulados pela dimensão de bolso e a estética de diorama pré-renderizada. Entretanto, a insistência em certos elementos considerados pouco convidativos para o momento atual da indústria de jogos, bem como a falta de algum refino no processo de produção do port, faz com que Fantasian não consiga alcançar um voo ainda mais alto pela experiência oferecida.

Prós

  • Os cenários em Diorama, quando funcionam, funcionam bem e se mostram belíssimos;
  • Possibilidade de progredir por toda a campanha usando apenas o mouse é uma surpresa estranhamente confortável (apenas no PC);
  • Sistema de combate à base de toque remete a um tempo em que os RPGs se sentiam em casa no Nintendo DS;
  • O Dimengeon é uma alternativa interessante para amenizar os problemas inerentes dos encontros aleatórios;

Contras

  • Level design tão simples quanto é linear;
  • Narrativa clichê com uma execução relativamente genérica;
  • Segunda metade do jogo parece ser artificialmente inflada por atividades banais e grind;
  • Embora seja uma boa ideia no papel, a apresentação dos cenários em Diorama é bem inconsistente;
  • Interface geral torna difícil a distinção dos elementos interativos dos cenários, além de um design anacrônico;
  • Menus desproporcionais e não adequados aos sistemas que não sejam estritamente mobile, pouca adaptação da experiência para novas plataformas;
Fantasian Neo Dimension — PC/PS4/PS5/XSX/Switch — Nota: 5.5
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Square Enix
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É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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