Lançado em 1989, Caper in the Castro não só marcou a história dos videogames como o primeiro jogo com protagonista explicitamente LGBTQIA+, mas também trouxe à tona temas e narrativas raramente vistos nos anos 80.
Em prol de uma causa maior
Antes de iniciar o jogo, nos deparamos com uma tela na qual se lê o seguinte:
“Eu escrevi este jogo como produto do meu amor pela comunidade gay e lésbica.
Se você gostou de jogar este jogo, peço que faça uma doação para a caridade de combate à AIDS de sua escolha, de qualquer valor que você ache apropriado. Eu chamo isso de CharityWare”.
Criado por C.M. Ralph, ativista LGBTQIA+ responsável pelo seu desenvolvimento, o jogo foi originalmente lançado para computadores Macintosh, utilizando o sistema HyperCard e distribuído de forma gratuita como parte de uma campanha de conscientização e arrecadação de fundos para a luta contra a AIDS, em um momento em que a epidemia devastava a comunidade queer.
Em entrevista à National Public Radio (NPR), C.M. Ralph disse que no auge da epidemia da AIDS, viu muitos de seus amigos gays simplesmente desaparecerem. Parecia que estavam sendo aniquilados e ninguém se importava, ninguém estava ajudando. Eles tinham que se ajudar.
O título, embora simples em sua mecânica point-and-click, tinha uma importância muito maior no cenário cultural da época, funcionando como uma espécie de resistência e uma celebração da diversidade em um meio predominantemente heteronormativo.
A protagonista pioneira
Em Caper in the Castro, você assume o papel da detetive lésbica Tracker McDyke, que precisa encontrar sua amiga, Tessy LaFemme, uma drag queen que foi sequestrada. A trama se passa no bairro de Castro, uma referência ao histórico Castro District em São Francisco, uma das áreas mais icônicas da luta pelos direitos LGBTQIA+.
A história é uma mistura de humor, mistério e ativismo. Embora o enredo principal siga uma fórmula de mistério clássica, é a inclusão de uma protagonista lésbica e personagens queer que confere ao jogo seu pioneirismo. Ralph conseguiu fazer de Caper in the Castro algo mais do que uma simples aventura point-and-click; a narrativa aborda relações entre pessoas do mesmo gênero com naturalidade, algo extremamente raro nos jogos da época.
A detetive Tracker McDyke, além de ser uma personagem lésbica, foge dos estereótipos de personagens femininas comumente encontrados nos jogos da época, funcionando como um símbolo de representação para jogadores LGBTQIA+. A relação dela com Tessy é apresentada de maneira que sugere uma ligação afetiva profunda, o que humaniza ainda mais as personagens e oferece um contraste com as abordagens frias ou humorísticas que, na época, eram comumente atribuídas à representação queer.
O apagamento em Murder on Main Street
Ainda em 1989, C.M. Ralph lançou Murder on Main Street, uma versão de Caper in the Castro sem a protagonista Tracker McDyke e qualquer outra referência explícita a elementos LGBTQIA+. O bar “The Gayme Room” se tornou “The Game Room” e os casais homossexuais jantando no restaurante Red Herring foram rearranjados para se tornarem heterossexuais.
Nessa versão, você é um detetive imbuído com a missão de investigar um assassinato em uma pequena cidade. Os elementos da jogabilidade em nada diferem de Caper in the Castro, mas a falta dos elementos LGBTQIA+, que eram o cerne do jogo original, deixou o Murder on Main Street genérico.
Murder on Main Street não atingiu grande sucesso comercial e as mudanças em seu enredo fizeram com que ele acabasse se tornando apenas uma curiosidade sobre o jogo original.
O Legado de Caper in the Castro
Embora o jogo não tenha tido ampla distribuição ou repercussão na grande mídia de videogames, ele rapidamente se tornou um marco na comunidade LGBTQIA+. Em uma época em que se ignorava ou evitava a inclusão de personagens queer por medo de retaliação ou boicotes, Caper in the Castro tomou uma direção contrária e ousada.
Com o tempo, Caper in the Castro foi reconhecido como o primeiro jogo LGBTQIA+ e se consolidou como uma peça-chave no debate sobre a inclusão e a diversidade nos jogos eletrônicos. Seu valor vai além de seu gameplay ou seus gráficos, sendo uma obra simbólica e importante. Nos anos seguintes ao seu lançamento, o jogo foi redescoberto e preservado por aqueles que viram nele um ponto de virada no que se refere à representação queer no mundo dos jogos.
No contexto atual, com uma maior inclusão de personagens e narrativas LGBTQIA+ nos jogos, Caper in the Castro se destaca como um precursor, abrindo caminho para muitos dos desenvolvimentos que temos hoje. Jogos como Life Is Strange e The Last of Us Part II, que exploram personagens LGBTQIA+ de forma profunda e autêntica, devem parte de sua liberdade criativa ao caminho aberto por Ralph e Caper in Castro.
Onde jogar Caper in the Castro?
A menos que você tenha um Macintosh compatível com HyperCard e o HyperCard original de Caper in the Castro, a melhor opção é emular.
Desde 2017, no site Internet Archive existe a opção de jogar no próprio navegador, porém algumas vezes o jogo fica offline. O site ainda disponibiliza o download da imagem do jogo para que você possa emular de outra maneira.
Caso o jogo esteja offline no Internet Archive, recomendo fazer o download da imagem e fazer o upload no site HyperCard Simulator. Eu testei e o jogo rodou sem problemas.
Revisão: Ives Boitano