A taiwanesa Red Candle, aclamada pelos dois jogos de horror Detention e Devotion, deu uma guinada na direção para um campo diferente: plataforma de ação. Mais especificamente, o metroidvania Nine Sols. Mantendo a qualidade de sua produção e narrativa, a desenvolvedora taiwanesa conseguiu acertar de primeira e com louvor, entregando um dos melhores jogos em seu gênero.
A história do “gato” Yi, mestre cientista e artista marcial, foi lançada no início de 2024 para PC e logo difundiu a fama de sua alta dificuldade. No entanto, quando se trata desse tópico, Nine Sols é um jogo ambivalente. Ele combina duas essências que, em tese, são incompatíveis com uma identidade consistente: o desafio extremado para o nicho e a leniência incentivadora para o público maior.
Como o GameBlast já apresentou uma análise no lançamento inicial, de autoria de Farley Santos, pretendo focar esta segunda vez no debate sobre esse tema, mas sem deixar de apresentar o jogo como um todo.
O que pode soar como um paradoxo encontra sua expressão no taoísmo que permeia a construção de mundo de Nine Sols: o yin e yang se opõem, mas não se anulam; juntos, formam o todo. É preciso encontrar a harmonia entre morte e vida, obstáculo e permissão, violência e suavidade, desafio e prazer. Vejamos como a jornada de Yi faz isso.
Yang: todo o desafio que você busca enfrentar
A palavra básica para o espírito soulslike é “brutal”, e Nine Sols resolve elevar o significado do termo. Esse é o lado yang da experiência planejada: movimentada, ativa, direta, efervescente, intensa. Os erros são punidos sem dó e até alguns dos inimigos comuns podem impor pressão e ter um repertório de diferentes ataques.
Quando chegamos aos chefes, a coisa toda assume uma forma verdadeiramente opressiva, despertando tanto empolgação quanto frustração; é difícil ficar indiferente a esses inimigos devastadores, que podem ser tanto o ponto alto para alguns quanto o horror para outros.
Para não serem injustos, os ataques são muito bem sinalizados e dão a chance de tomar a reação correta contra eles: aparar o pequeno brilho branco, esquivar do grande brilho vermelho, contra-atacar o brilho verde para desequilibrar o bicho e puní-lo. As regras gerais são bem claras e acertar as respostas corretas a cada um dá uma imensa satisfação e sensação de poder.
No entanto, em vários momentos eu senti as hitboxes, isto é, o espaço do ataque que pode efetivamente causar dano por contato, foram mais expansivas do que deveriam, exigindo ainda mais precisão espacial de nossos comandos. A dificuldade também espelha o contexto da história.
Jogamos com Yi, o “gato” que quer derrubar todo o Conselho dos Sols, tanto por vingança quanto por ideal. Ele é estoicamente confiante e determinado, um protagonista poderoso e implacável disposto a lutar contra oponentes do mesmo calibre. Nesse universo, os humanos são mero rebanho usado pelos solarianos para o abate, mas Yi desenvolve uma visão diferente sobre eles.
Sim, o nome Sol tem a ver com a nossa estrela de mesmo nome, mas ganhou contornos metafóricos ao ser atribuído aos líderes de uma longeva civilização alienígena, os solarianos, na qual não há fronteira entre ciência e misticismo. Por isso, o plural em português ficou Sols mesmo, em vez de “sóis”. Falando nisso, a versão de consoles de Nine Sols já vem com a localização para português brasileiro, recém-implementada para PC em setembro.
Assim, Yi é um vigoroso mestre do uso do Qi para realizar ataques e defesas com as próprias mãos. A questão é: a pessoa que joga também tem essa maestria?
Havia uma aparada no meio do caminho, no meio do caminho havia uma aparada
Pode chamar de aparada ou parry, não muda o ressentimento que tenho dessa mecânica de acertar o tempo da defesa bem na hora que o ataque do inimigo conecta. Na trilogia Dark Souls, várias vezes pensei em tentar aprender, mas não demorava a desistir. Mesmo em Bloodborne, que tem um sistema diferente e com maior janela de oportunidade, isso passou longe da minha cabeça.
Assim, cheguei a Sekiro zerando soulslikes apenas com um estilo fixo de esquiva. Sofri, mas avancei, até que um chefe após a metade da campanha, Genishiro Ashina, me fez ver que eu não conseguiria vencê-lo de outra maneira: eu tinha que aprender o tempo do parry! Foi custoso, mas consegui.
Minha relutância com esse tipo de técnica se manteve em Lies of P, no qual o uso dela é menos essencial que em Sekiro, mas ainda me pouparia muito sufoco que passei se tivesse encarado logo. Mais uma vez, foi um chefão do meio do jogo que me fez rever meus conceitos. A virada foi em Stellar Blade, que é mais voltado à ação e leniente na sincronia e avisos, permitindo-me aprender bem o tempo correto.
Com isso, cheguei a Nine Sols. Um “sekiro-souls-hollow-vania”, por assim dizer, que fez fama por suas várias qualidades e, também, por devotar quase a totalidade de seu combate às aparadas. Até aprendi a entrar na dança, mas devo admitir que não tive fôlego para continuar nesse ritmo por muito tempo. Precisei de ajustes que, felizmente, Nine Sols oferece de bom grado.
Yin: toda a ajuda que você precisar
O yin é repouso, quieto, escuro, passivo. Ao seguir esse caminho, a pessoa que joga cede diante da dificuldade e do orgulho para ajustar a experiência de combate. Porém, para que isso fosse possível, primeiro foi o jogo que teve que ceder à mudança. Dessa maneira, os dois lados convergem a um senso comum para fazer o jogo fluir uma vez mais.
As duas formas buscam harmonia legítima entre jogo e jogador, sem precisar se limitar a uma oposição absoluta que poderia destruir a experiência.
Na prática, isso quer dizer que há uma seleção de dificuldade minuciosamente amparada em dois fatores numéricos. O dano recebido pode ser reduzido em porcentagem do padrão de 100% até o irrelevante 1%. Já o dano causado pode ser aumentado em até 10 vezes, isto é, massivos 1.000%, graduados de 10 em 10.
Dessa maneira, a estrutura do jogo permanece inalterada com as mesmas regras, os mesmos inimigos agressivos e o mesmo design de progressão. A diferença é que a pessoa que joga pode adaptar Yi a algum ponto de uma vasta escala entre ser apenas um pouco mais resistente até o extremo de beirar a imortalidade.
Diminuir o dano recebido para 90, 80, 70% (ou menos) do padrão pode ser o bastante para alguém vencer os chefes com muito sufoco dentro do seu limite e ainda manter a valiosa dinâmica de desafio-recompensa pregada pelos soulslikes, adaptada a nível pessoal. Depende apenas da necessidade de sobrevivência de cada um.
Há outras abordagens para o sistema. Digamos que a pessoa até se dá bem com o estilo de combate, mas não consegue manter a precisão pelo tempo de duração das lutas, então elas podem ser aceleradas ao aumentar o dano causado por Yi para 200% ou mais. Ainda vai ser preciso aprender a aguentar a pressão, mas por menos tempo.
No meu caso, engoli o orgulho do currículo de sobrevivente de soulslikes e vi que 120% de ofensiva (isto é, apenas mais 20%) e 85% de dano recebido (menos 15%) tornaram meu aproveitamento muito mais equilibrado entre desafio e persistência.
É claro que essa concessão de dificuldade pode levar a “abusos” de alguém que queira apelar direto para os extremos. O que a Red Candle quer dizer com a enorme abertura dessa opção é que está tudo bem. Não é à toa que o nome da dificuldade ajustável é Modo História, como um lembrete de que há muito mais em jogo do que apenas o desafio.
A desenvolvedora taiwanesa sabe que criou um universo profundo com uma ficção científica singular e memorável e que apreciá-lo faz parte de sua visão. Assim, sem reservas, Nine Sols soluciona a velha pergunta, “soulslikes deveriam ter seleção de dificuldade?” com um sonoro “sim”, e entrega a decisão na mão de quem joga.
Para equilibrar o peso, Yi tem um lugar seguro de descanso, o Pavilhão das Quatro Estações, que serve como hub para investir nas melhorias e para interagir com personagens amigos em diálogos que enriquecem o mundo, o protagonista e as relações, um contraponto suave e confortável à trama sangrenta que envolve os nove Sols e à austeridade da desolação opressiva que o cerca.
O pavilhão também um lugar protegido do mapa de Nine Sols. Nine Sols tem uma progressão que não faz o backtracking pesar na gameplay, então o mapa não chega a ser um problema, mas também não flui tão suavemente como eu gostaria.
As áreas são bem cartografadas, mas aparecem em duas camadas: o mapa geral, com um retângulo para cada local, e a versão detalhada, que mostra cada retângulo isoladamente. Assim, para navegar pelo mapa é preciso alternar entre esses dois formatos, o que pode ser um pouco confuso de vez em quando. Além disso, senti falta de marcadores personalizados para fixar meus lembretes aqui e ali.
Como uma poesia elegante e cruel
O caráter dualista também é refletido no visual rebuscado. Vendo trailers, Nine Sols parece um filho de Hollow Knight, mas me bastou pouco tempo de jogo para perceber como a estética dele vai muito além dessa comparação, juntando peças em um mosaico único.
A arte se destaca de forma marcante com suas linhas que são, em geral, finas e limpas, mas temperadas com discretas hachuras rústicas dotadas de um apelo manual que me lembra de mangás como GUNNM (Battle Angel Alita) e Akira. Várias cenas da história de Nine Sols são representadas com partes em quadrinhos, por sinal. Também não posso evitar comparar com o estilo do quadrinista francês Jean Giraud, conhecido como Moebius, especialmente nas cores etéreas em combinações alienígenas.
Somando a mistura de tecnologia simétrica e mística, feições sinistras ou fofas dos seres vivos, ambientação asiática e simbolismo taoísta - o que a Red Candle chamou de taopunk -, Nine Sols forma uma identidade espiritual muito própria e bem-construída, reforçada por uma narrativa muito mais elaborada e interessante que a média dos metroidvanias, contribuindo para certificar de que este jogo realmente se distingui entre os melhores do gênero.
A dialética taoísta forma um todo
Brutal tanto na narrativa quanto nos combates, Nine Sols se eleva por sua riqueza estética e por permitir a harmonia entre jogo e jogador ao ceder ajustes minuciosos de dificuldade, estabelecendo uma experiência flexível que pode ser memorável segundo a habilidade e disposição de cada um, sem ofuscar as numerosas qualidades dessa obra primorosa.
Prós
- Suas estética e narrativa taopunk são ricas e o distinguem dos seus pares;
- Combate dinâmico, profundo e reativo, com grande satisfação de aprendizado;
- Uma vasta opção de ajuste de dano causado e recebido adapta o jogo à necessidade de cada pessoa;
- Localizado em português brasileiro.
Contras
- O padrão de dificuldade baseada em tempo de aparadas pode ser desestimulante para quem não esperava precisar ceder aos ajustes de dano;
- O mapa pode ser ligeiramente confuso e não tem marcadores personalizados.
Nine Sols — PC/PS5/PS4/XSX/Switch — Nota: 9.0Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Red Candle Games