Shadows of the Damned: Hella Remastered e as tentativas de escapar do inferno por um elevador

No fim das contas, é uma questão de preservação não só do game em si, mas de todas as histórias que ele indiretamente traz consigo.

em 17/10/2024


Quem é fã histórico da Grasshopper Manufacture está se alimentando bem em 2024. Não basta Lollipop Chainsaw RePOP ter sido relançado há poucos meses, Shadows of the Damned, outro título clássico da empresa, desta vez um com envolvimento direto do Suda51, também está para receber uma remasterização. Assim, Shadows of the Damned: Hella Remastered é um marco por ser uma espécie de reconciliação entre criador e sua obra, que teve Shinji Mikami, de Resident Evil, atuando ativamente em uma produção bastante problemática e carregada de história.


Nota-se que todas as informações publicadas nesta prévia são de caráter público, retiradas de materiais promocionais, entrevistas e declarações isoladas dos próprios envolvidos com o projeto.

Presos no elevador com Suda51 e Shinji Mikami

Shadows of the Damned começou a ser desenvolvido como Kurayami (do japonês, “sombra”), um projeto concebido por conta da recepção positiva de Michigan: Reporter from Hell, do PlayStation 2, no Japão e na Europa, onde o jogo começou a ser lançado. O conceito original em questão foi apresentado por Suda a Shinji Mikami logo após a conclusão de Killer7, projeto em que a dupla trabalhou em conjunto pela primeira vez, ainda sob a batuta da Capcom.

Com a ideia sendo remoída desde 2006, a proposta original de Kurayami era de trazer um horror de sobrevivência com elementos kafkianos, mais especificamente na obra O Castelo, em que o protagonista vagasse por uma vila do leste europeu (há menções à Praga, na República Tcheca) resolvendo enigmas e empunhando apenas uma única tocha que iluminasse o caminho.

Segundo algumas declarações de Suda51 naquela época, a ideia do título não tinha a ver com enfrentar monstros de verdade surgidas das profundezas da escuridão, como as ilustrações conceituais davam a entender, mas utilizá-los como uma espécie de metáfora para com o medo instintivo que a humanidade tem do escuro e do desconforto causado pelo silêncio sepulcral que normalmente indica a ausência de vida. Kurayami era sobre “como as pessoas mudam quando têm de enfrentar os próprios medos”, declarou Suda em entrevista à Edge.

A questão é que se tratava de um projeto relativamente complexo para ser tocado, ainda mais por ser a primeira produção da Grasshopper exclusiva para o PlayStation 3, um console de alta definição. Depois de concluir o primeiro No More Heroes para Wii (cujo desempenho em vendas no Japão não foi exatamente muito positivo), Suda e Mikami firmaram uma espécie de pacto para tirar o jogo do limbo de qualquer maneira, mas precisaram partir em sua própria viagem no intuito de encontrar alguma força que servisse para bancar a produção.




Neste momento, a dupla chegou a fazer alguns contatos também com a Sega, empresa para a qual Mikami estava prestando serviço de forma indireta, já que seu estúdio naquele momento, a PlatinumGames, estava com um contrato de exclusividade que rendeu títulos como Bayonetta e Madworld. Assim, nota-se que eles preferiram fechar com a Electronic Arts, quando o verdadeiro pesadelo começou.

Segundo declarações de Suda e Mikami, as mais recentes durante um “Grasshopper Direct” disponibilizado no canal do YouTube da empresa, a identidade de Kurayami foi se perdendo logo nas primeiras reuniões que eles tiveram com a publisher ocidental, que começou a sugerir que o título migrasse de um jogo de terror psicológico com elementos de puzzle para o gênero de ação, já embalando a sugestão para que o protagonista carregasse uma arma em vez de usar apenas uma tocha para iluminar os locais.

No vídeo, Mikami reforça que eles não teriam problema se a sugestão tivesse sido feita pela EA após a realização de alguns testes com audiências em potencial, mas tal ordem foi feita de imediato pelo departamento de marketing, que insistiu na ideia ao alegar que ambos não entendiam nada de como funcionava o público ocidental.




Outro aspecto que a Electronic Arts insistiu na mudança foi a exclusão de uma pequena fada que deveria acompanhar o protagonista, que até então também não tinha um nome definido, durante sua jornada pelo vilarejo — uma colocação que até faz sentido, considerando a amargura que o nosso lado do globo adquiriu com tipos semelhantes nos jogos, como é o caso notório da Navi, em The Legend of Zelda: Ocarina of Time.

Até que fosse enfim aprovado, o roteiro do game que posteriormente veio a se tornar o Shadows of the Damned passou por cinco tratamentos, uma espécie de eufemismo do mercado para quando o script original teve que ser jogado fora e reiniciado do zero.

Diante da dificuldade em agradar a seus mecenas deste lado do globo e fazê-los entender sua complexa proposta, Suda recebeu uma orientação de que uma trama de apelo comercial precisava se qualificar dentro de um conceito chamado “pitch de elevador”, que consiste na ideia de que uma narrativa precisava ser objetiva e concisa o suficiente para ser apresentada em uma conversa casual de elevador.




Foi nesse momento que a produção passou por uma volta de 180°, e o jogo começou a assumir o jeitão que conhecemos atualmente. Assim, Garcia Hotspur é nosso protagonista e, ao lado de um sidekick chamado Johnson, um demônio que assume várias formas, da tocha que ilumina seu caminho a diferentes tipos de armas, precisa descer ao inferno para resgatar Paula, sua amada, das mãos dos demônios que a sequestraram.

Nota-se que a produção começou a assumir um tom mais humorado, algo que, para um olhar atento, consegue perceber que se trata de uma paródia, um deboche do olhar ocidental para esse tipo de produto narrativo, uma ideia igualmente representada por Vanquish, da PlatinumGames, e que também contou com envolvimento de Shinji Mikami em sua produção.

Apesar desses conflitos, essa colaboração entre a Gasshopper Manufacture e a Electronic Arts gerou algumas situações muito incomuns e únicas para a indústria de games na época, como é o caso da adoção da Unreal Engine 3. Uma vez que boa parte do trabalho se dava remotamente com o Ocidente, a empresa japonesa acabou tendo que abrir mão de um motor de jogo doméstico no intuito de impedir que o já turbulento desenvolvimento estagnasse ainda mais.




É por conta disso que nem Suda, nem Mikami assumiram a direção geral do game, que ficou a cargo de Massimo Guarini, que entrou a bordo a convite do próprio Suda por ter afinidade com esse estilo de produção híbrida, com histórico de ter trabalhado tanto com IPs americanas quanto japonesas.

Esse tipo de convite direto não é exatamente incomum. Foi assim que Q Hayashida acabou a bordo do projeto. Conhecida por sua arte grotesca e de tom sinistro, Suda explicou que teve a ideia de convidá-la enquanto lia Dorohedoro e conseguiu o contato da autora através de um conhecido em comum. Hayashida, então, topou fazer o design das criaturas, enquanto o do protagonista, Garcia Hotspur, foi feito por um funcionário da casa, Tadayuki Nomaru.




No fim, Shadows of the Damned foi lançado. Suda, por algum tempo, evitou entrar em detalhes a respeito de sua produção, dando algumas declarações pouco amigáveis sobre o jogo no artbook “The Art of Grasshopper Manufacture”, colocando o título como uma espécie de patinho feio no seu histórico.

Duas coisas, entretanto, foram importantes para o autor fazer as pazes com a sua obra. A primeira delas foi quando ele decidiu atacar de mangaká, escrevendo um roteiro levado às páginas pelas ilustrações de Syuji Takeya. O nome da obra? Kurayami Dance.

Publicado entre 2015 e 2016 na revista Comic Beam, a impressão é que se trata de uma terceira abordagem da proposta, talvez mais madura devido ao tempo transcorrido desde então, e nada se assemelha tanto ao estilo escrachado de Shadows of the Damned quanto à abordagem soturna do Kurayami original, mas é inegável que se trata de uma revisitação, uma vez que os conceitos kafkianos e influência d’O Castelo seguem lá, bem claros.

O segundo sinal de que Suda começou a ver o título com outros olhos foi em sua participação metalinguística em Travis Strikes Again: No More Heroes, como um dos games que Travis Touchdown precisou adentrar durante sua jornada intimista contada pelo spin-off em questão.




Em uma sequência interna que quebra a quarta parede, Travis explica para o próprio jogador que o game conhecido como Serious Moonlight, proposto como um RPG à Dragon Quest, foi intensivamente retrabalhado a ponto de se descaracterizar e se transformar em Damned: Dark Knight, contando até mesmo com uma participação do próprio Garcia Hotspur. Com essa alegoria, parece que foi como Suda tivesse lavado a própria alma em relação aos problemas que tinha com sua obra.

Uma remasterização dos infernos

Anunciado originalmente em junho do ano passado, Shadows of the Damned: Hella Remastered é o relançamento de um produto que acabou passando por todos esses reveses durante sua produção, mas que conseguiu se tornar um produto nichado com sua própria comunidade de fãs. A Grasshopper, então, viu a oportunidade de revisitar o projeto, visto que, passados quatorze anos desde seu lançamento original, havia uma nova geração de jogadores que poderiam se interessar.




Outro aspecto importante é que a nova versão do título só se tornou possível por conta do fim da Origin, o cliente de jogos da EA no PC, que aparentemente significava algum imbróglio nos direitos do game, segundo declaração de Suda no Grasshopper Direct, mas que agora torna possível o lançamento em todas as plataformas.

Adicionalmente, essa seria uma chance de aprimorar alguns atributos do original. Um exemplo é a inclusão do New Game +. Trata-se de uma característica prevista lá atrás, mas que infelizmente não pôde ser colocada em prática antes por questões de hardware, pois tornaria a aplicação pesada a um ponto que os sistemas vigentes, o PlayStation 3 e o Xbox 360, não teriam capacidade de suportar.




A explicação para a ausência foi que a maior parte das armas adquiridas ao longo da campanha continham vários efeitos visuais pesados que consumiriam muita memória do título caso fossem disponibilizadas logo no começo, fazendo a aplicação quebrar.


Outra novidade de Hella Remastered é a inclusão de vestimentas para Garcia, (quase) todas com nomenclatura em espanhol. Demonio Garcia acaba sendo uma das mais simples, já que é apenas uma versão demoníaca do herói. As coisas começam a esquentar com a presença de Ocho Corazones, a forma humanoide de Johnson introduzida em Damned: Dark Knight, e Kamikaze Garcia, uma roupa dândi parecida com a do protagonista de Kurayami Dance.




Entretanto, Placa Garcia, uma representação sem camisa, acaba chamando atenção. No Grasshopper Direct, Mikami explica que essa é a sua favorita porque é próxima do que deveria ser personagem principal de Kurayami, que supostamente deveria começar 100%  nu — embora complementasse que a original de verdade era ainda mais selvagem, sinistra e pelada, tendo apenas a tocha como pertence.

A nível técnico, Shadows of the Damned vai aproveitar a potência das plataformas vigentes para oferecer reprodução em 4K em 60 quadros por segundo no PC e nos sistemas desta geração, mais especificamente no PlayStation 5 e Xbox Series X, sendo que o título também será lançado para PlayStation 4, Xbox One e Switch (este último rodando apenas 30 fps). 




Nota-se que o original tinha essa intenção de chegar não só ao PC, mas ao Wii, sendo que esse objetivo acabou sendo descartado por causa da arquitetura de ambos, que praticamente exigiam todo um ciclo de desenvolvimento próprio à parte.

Tal versão para Steam, inclusive, está recebendo um trabalho especial por conta da tradição que a plataforma tem em relação a shooters, trazendo uma atenção maior na questão dos controles, uma vez que o mouse e o teclado são a preferência costumeira para jogadores do gênero.



Ainda um produto 100% Punk

Apesar de não estar nem perto de sua forma original, quando foi concebido lá atrás como Kurayami, Shadows of the Damned segue um trabalho único. Nisso, a remasterização se mostra importante como uma maneira de preservação não só do produto que ele é, mas também de todas essas histórias atreladas a ele durante seu período de produção. É uma peça viva de um processo complicado, uma consequência de um conflito velado entre filosofias de designs distintas.

A partir daí, a melhor definição para o título é a que Mikami trouxe durante o Grasshopper Direct: "Kurayami era totalmente original, diferente de tudo visto antes. Foi o que eu amei nele. O tipo de jogo maluco que só o Suda e a Grasshopper poderiam ter feito. Ainda assim, a parte 'punk' dele vive em aspectos como os gráficos, a atmosfera geral e o diálogo. As partes mais clássicas do estilo Grasshopper que são intencionalmente complicadas de se replicar", explica o produtor, que complementa que até hoje sente calafrios só de pensar nas exigências do mercado ocidental.



Shadows of the Damned: Hella Remastered
Plataformas: PC/PlayStation4/PlayStation 5/Xbox One/Xbox Series/Switch
Desenvolvedora: Grasshopper Manufacture
Gênero: horror, tiro
Lançamento: 31 de outubro de 2024
Revisão: Vitor Tibério

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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