Quem é fã histórico da
Grasshopper Manufacture
está se alimentando bem em 2024. Não basta
Lollipop Chainsaw RePOP
ter sido relançado há poucos meses, Shadows of the Damned, outro título
clássico da empresa, desta vez um com envolvimento direto do Suda51, também
está para receber uma remasterização. Assim,
Shadows of the Damned: Hella Remastered é um marco por ser uma espécie
de reconciliação entre criador e sua obra, que teve Shinji Mikami, de Resident
Evil, atuando ativamente em uma produção bastante problemática e carregada de
história.
Nota-se que todas as informações publicadas nesta prévia são de caráter
público, retiradas de materiais promocionais, entrevistas e declarações
isoladas dos próprios envolvidos com o projeto.
Presos no elevador com Suda51 e Shinji Mikami
Shadows of the Damned
começou a ser desenvolvido como Kurayami (do japonês, “sombra”), um projeto
concebido por conta da recepção positiva de
Michigan: Reporter from Hell, do PlayStation 2, no Japão e na Europa,
onde o jogo começou a ser lançado. O conceito original em questão foi
apresentado por Suda a Shinji Mikami logo após a conclusão de
Killer7, projeto em que a dupla trabalhou em conjunto pela primeira vez, ainda sob
a batuta da Capcom.
Com a ideia sendo remoída desde 2006, a proposta original de Kurayami era de
trazer um horror de sobrevivência com elementos kafkianos, mais
especificamente na obra O Castelo, em que o protagonista vagasse por uma
vila do leste europeu (há menções à Praga, na República Tcheca) resolvendo
enigmas e empunhando apenas uma única tocha que iluminasse o caminho.
Segundo algumas declarações de Suda51 naquela época, a ideia do título não
tinha a ver com enfrentar monstros de verdade surgidas das profundezas da
escuridão, como as ilustrações conceituais davam a entender, mas utilizá-los
como uma espécie de metáfora para com o medo instintivo que a humanidade tem
do escuro e do desconforto causado pelo silêncio sepulcral que normalmente
indica a ausência de vida. Kurayami era sobre “como as pessoas mudam quando
têm de enfrentar os próprios medos”, declarou Suda em entrevista à Edge.
A questão é que se tratava de um projeto relativamente complexo para ser
tocado, ainda mais por ser a primeira produção da Grasshopper exclusiva para
o PlayStation 3, um console de alta definição. Depois de concluir o primeiro
No More Heroes
para Wii (cujo desempenho em vendas no Japão não foi exatamente muito
positivo), Suda e Mikami firmaram uma espécie de pacto para tirar o jogo do
limbo de qualquer maneira, mas precisaram partir em sua própria viagem no
intuito de encontrar alguma força que servisse para bancar a produção.
Neste momento, a dupla chegou a fazer alguns contatos também com a Sega,
empresa para a qual Mikami estava prestando serviço de forma indireta, já
que seu estúdio naquele momento, a
PlatinumGames, estava com um contrato de exclusividade que rendeu títulos como Bayonetta
e Madworld. Assim, nota-se que eles preferiram fechar com a Electronic Arts,
quando o verdadeiro pesadelo começou.
Segundo declarações de Suda e Mikami, as mais recentes durante um “Grasshopper Direct” disponibilizado no canal do YouTube da empresa, a identidade de Kurayami
foi se perdendo logo nas primeiras reuniões que eles tiveram com a publisher
ocidental, que começou a sugerir que o título migrasse de um jogo de terror
psicológico com elementos de puzzle para o gênero de ação, já embalando a
sugestão para que o protagonista carregasse uma arma em vez de usar apenas
uma tocha para iluminar os locais.
No vídeo, Mikami reforça que eles não teriam problema se a sugestão tivesse
sido feita pela EA após a realização de alguns testes com audiências em
potencial, mas tal ordem foi feita de imediato pelo departamento de
marketing, que insistiu na ideia ao alegar que ambos não entendiam nada de
como funcionava o público ocidental.
Outro aspecto que a Electronic Arts insistiu na mudança foi a exclusão de
uma pequena fada que deveria acompanhar o protagonista, que até então também
não tinha um nome definido, durante sua jornada pelo vilarejo — uma
colocação que até faz sentido, considerando a amargura que o nosso lado do
globo adquiriu com tipos semelhantes nos jogos, como é o caso notório da
Navi, em The Legend of Zelda: Ocarina of Time.
Até que fosse enfim aprovado, o roteiro do game que posteriormente veio a se
tornar o Shadows of the Damned passou por cinco tratamentos, uma espécie de
eufemismo do mercado para quando o script original teve que ser jogado fora
e reiniciado do zero.
Diante da dificuldade em agradar a seus mecenas deste lado do globo e
fazê-los entender sua complexa proposta, Suda recebeu uma orientação de que
uma trama de apelo comercial precisava se qualificar dentro de um conceito
chamado “pitch de elevador”, que consiste na ideia de que uma narrativa
precisava ser objetiva e concisa o suficiente para ser apresentada em uma
conversa casual de elevador.
Foi nesse momento que a produção passou por uma volta de 180°, e o jogo
começou a assumir o jeitão que conhecemos atualmente. Assim, Garcia Hotspur
é nosso protagonista e, ao lado de um sidekick chamado Johnson, um demônio
que assume várias formas, da tocha que ilumina seu caminho a diferentes
tipos de armas, precisa descer ao inferno para resgatar Paula, sua amada,
das mãos dos demônios que a sequestraram.
Nota-se que a produção começou a assumir um tom mais humorado, algo que,
para um olhar atento, consegue perceber que se trata de uma paródia, um
deboche do olhar ocidental para esse tipo de produto narrativo, uma ideia
igualmente representada por
Vanquish, da PlatinumGames, e que também contou com envolvimento de Shinji Mikami
em sua produção.
Apesar desses conflitos, essa colaboração entre a Gasshopper Manufacture e a
Electronic Arts gerou algumas situações muito incomuns e únicas para a
indústria de games na época, como é o caso da adoção da Unreal Engine 3. Uma
vez que boa parte do trabalho se dava remotamente com o Ocidente, a empresa
japonesa acabou tendo que abrir mão de um motor de jogo doméstico no intuito
de impedir que o já turbulento desenvolvimento estagnasse ainda mais.
É por conta disso que nem Suda, nem Mikami assumiram a direção geral do
game, que ficou a cargo de Massimo Guarini, que entrou a bordo a convite do
próprio Suda por ter afinidade com esse estilo de produção híbrida, com
histórico de ter trabalhado tanto com IPs americanas quanto japonesas.
Esse tipo de convite direto não é exatamente incomum. Foi assim que Q
Hayashida acabou a bordo do projeto. Conhecida por sua arte grotesca e de
tom sinistro, Suda explicou que teve a ideia de convidá-la enquanto lia
Dorohedoro e conseguiu o contato da autora através de um conhecido em
comum. Hayashida, então, topou fazer o design das criaturas, enquanto o do
protagonista, Garcia Hotspur, foi feito por um funcionário da casa, Tadayuki
Nomaru.
No fim, Shadows of the Damned foi lançado. Suda, por algum tempo, evitou
entrar em detalhes a respeito de sua produção, dando algumas declarações
pouco amigáveis sobre o jogo no artbook “The Art of Grasshopper
Manufacture”, colocando o título como uma espécie de patinho feio no seu
histórico.
Duas coisas, entretanto, foram importantes para o autor fazer as pazes com a
sua obra. A primeira delas foi quando ele decidiu atacar de mangaká,
escrevendo um roteiro levado às páginas pelas ilustrações de Syuji Takeya. O
nome da obra? Kurayami Dance.
Publicado entre 2015 e 2016 na revista Comic Beam, a impressão é que se
trata de uma terceira abordagem da proposta, talvez mais madura devido ao
tempo transcorrido desde então, e nada se assemelha tanto ao estilo
escrachado de Shadows of the Damned quanto à abordagem soturna do Kurayami
original, mas é inegável que se trata de uma revisitação, uma vez que os
conceitos kafkianos e influência d’O Castelo seguem lá, bem claros.
O segundo sinal de que Suda começou a ver o título com outros olhos foi em
sua participação metalinguística em
Travis Strikes Again: No More Heroes, como um dos games que Travis Touchdown precisou adentrar durante sua
jornada intimista contada pelo spin-off em questão.
Em uma sequência interna que quebra a quarta parede, Travis explica para o
próprio jogador que o game conhecido como Serious Moonlight, proposto como
um RPG à Dragon Quest, foi intensivamente retrabalhado a ponto de se
descaracterizar e se transformar em Damned: Dark Knight, contando até mesmo
com uma participação do próprio Garcia Hotspur. Com essa alegoria, parece
que foi como Suda tivesse lavado a própria alma em relação aos problemas que
tinha com sua obra.
Uma remasterização dos infernos
Anunciado originalmente em
junho do ano passado, Shadows of the Damned: Hella Remastered é o relançamento de um produto
que acabou passando por todos esses reveses durante sua produção, mas que
conseguiu se tornar um produto nichado com sua própria comunidade de fãs. A
Grasshopper, então, viu a oportunidade de revisitar o projeto, visto que,
passados quatorze anos desde seu lançamento original, havia uma nova geração
de jogadores que poderiam se interessar.
Outro aspecto importante é que a nova versão do título só se tornou possível
por conta do fim da Origin, o cliente de jogos da EA no PC, que
aparentemente significava algum imbróglio nos direitos do game, segundo
declaração de Suda no Grasshopper Direct, mas que agora torna possível o
lançamento em todas as plataformas.
Adicionalmente, essa seria uma chance de aprimorar alguns atributos do
original. Um exemplo é a inclusão do New Game +. Trata-se de uma
característica prevista lá atrás, mas que infelizmente não pôde ser colocada
em prática antes por questões de hardware, pois tornaria a aplicação pesada
a um ponto que os sistemas vigentes, o PlayStation 3 e o Xbox 360, não
teriam capacidade de suportar.
A explicação para a ausência foi que a maior parte das armas adquiridas ao
longo da campanha continham vários efeitos visuais pesados que consumiriam
muita memória do título caso fossem disponibilizadas logo no começo, fazendo
a aplicação quebrar.
Outra novidade de Hella Remastered é a inclusão de vestimentas para Garcia,
(quase) todas com nomenclatura em espanhol. Demonio Garcia acaba sendo uma
das mais simples, já que é apenas uma versão demoníaca do herói. As coisas
começam a esquentar com a presença de Ocho Corazones, a forma humanoide de
Johnson introduzida em Damned: Dark Knight, e Kamikaze Garcia, uma roupa
dândi parecida com a do protagonista de Kurayami Dance.
Entretanto, Placa Garcia, uma representação sem camisa, acaba chamando
atenção. No Grasshopper Direct, Mikami explica que essa é a sua favorita
porque é próxima do que deveria ser personagem principal de Kurayami, que
supostamente deveria começar 100% nu — embora complementasse que a
original de verdade era ainda mais selvagem, sinistra e pelada, tendo apenas
a tocha como pertence.
A nível técnico, Shadows of the Damned vai aproveitar a potência das
plataformas vigentes para oferecer reprodução em 4K em 60 quadros por
segundo no PC e nos sistemas desta geração, mais especificamente no
PlayStation 5 e Xbox Series X, sendo que o título também será lançado para
PlayStation 4, Xbox One e Switch (este último rodando apenas 30 fps).
Nota-se que o original tinha essa intenção de chegar não só ao PC, mas ao
Wii, sendo que esse objetivo acabou sendo descartado por causa da
arquitetura de ambos, que praticamente exigiam todo um ciclo de
desenvolvimento próprio à parte.
Tal versão para Steam, inclusive, está recebendo um trabalho especial por conta
da tradição que a plataforma tem em relação a shooters, trazendo uma atenção
maior na questão dos controles, uma vez que o mouse e o teclado são a
preferência costumeira para jogadores do gênero.
Ainda um produto 100% Punk
Apesar de não estar nem perto de sua forma original, quando foi concebido lá
atrás como Kurayami, Shadows of the Damned segue um trabalho único. Nisso, a
remasterização se mostra importante como uma maneira de preservação não só
do produto que ele é, mas também de todas essas histórias atreladas a ele
durante seu período de produção. É uma peça viva de um processo complicado,
uma consequência de um conflito velado entre filosofias de designs
distintas.
A partir daí, a melhor definição para o título é a que Mikami trouxe durante
o Grasshopper Direct: "Kurayami era totalmente original, diferente de tudo
visto antes. Foi o que eu amei nele. O tipo de jogo maluco que só o Suda e a
Grasshopper poderiam ter feito. Ainda assim, a parte 'punk' dele vive em
aspectos como os gráficos, a atmosfera geral e o diálogo. As partes mais
clássicas do estilo Grasshopper que são intencionalmente complicadas de se
replicar", explica o produtor, que complementa que até hoje sente calafrios
só de pensar nas exigências do mercado ocidental.
Shadows of the Damned: Hella RemasteredPlataformas: PC/PlayStation4/PlayStation 5/Xbox One/Xbox Series/SwitchDesenvolvedora: Grasshopper ManufactureGênero: horror, tiroLançamento: 31 de outubro de 2024
Revisão: Vitor Tibério