Análise: Shadows of the Damned: Hella Remastered escapa intocado de seu purgatório

A jornada de Garcia Hotspur até o inferno se reapresenta ao público com um tratamento básico e pouco inspirado.

em 29/10/2024


Shadows of the Damned foi, por muito tempo, considerado uma ovelha negra. Aos olhos da Electronic Arts, era porque se tratava de um jogo muito esquisito, de difícil venda e que pouco conversava com as tendências dos shooters daquela época, que carregavam um profundo ar cinzento de seriedade hardcore. Aos olhos de Suda51 e Shinji Mikami, duas das principais mentes criativas por trás do game, o problema era que o resultado final pouco correspondia às ideias originais que foram trazidas para a mesa e serviram para dar o pontapé inicial no projeto em questão.

Sem muito alarde, o game foi lançado para Xbox 360 e PlayStation 3 em 2011 de maneira discreta e logo caiu para uma segunda prateleira, notavelmente abaixo dos principais clássicos da Grasshopper Manufacture, que tem No More Heroes e Killer7 como maiores expoentes. Agora, mais de uma década depois, o título passou a ser visto sob outro ponto de vista por seus criadores, tornando Shadows of the Damned: Hella Remastered uma realidade que terá a oportunidade de, enfim, encontrar novas audiências que poderão apreciá-lo.




A Divina Comédia de Garcia Hotspur

Garcia Hotspur é um caçador de demônios que um dia se depara com o cadáver de sua namorada Paula, que se suicidou. Fleming, o chefão do submundo, decide buscar a alma da moça pessoalmente, o que faz com que o protagonista embarque em uma verdadeira jornada dantesca na qual ele precisa alcançar os confins do inferno para resgatar sua amada de volta.

Para isso, ele tem Johnson como principal aliado. Um demônio que aparentemente abandonou os reinos demoníacos e se encontrou em sua amizade com Garcia. A pequena caveira tagarela tem o poder de se transfigurar, servindo efetivamente como todo o arsenal do caçador mexicano, uma vez que ela é capaz de assumir a forma não só de um poderoso revólver, mas também de uma escopeta e de uma metralhadora — isto é, quando não está “em repouso” sob a estado de tocha que o protagonista utiliza para iluminar o seu caminho.





Desta forma, a campanha de Shadows of the Damned: Hella Remastered segue de uma forma bem linear, sendo que a maior parte dos estágios é composta por corredores com poucos caminhos alternativos, mas que oferecem certos momentos e desafios bem distintos como uma maneira de evitar que o game se tornasse uma espécie de shooter on rails glorificado.

Sob esse aspecto, a mecânica mais recorrente do game acontece quando Garcia precisa desbloquear certos caminhos tomados por trevas, quando os demônios inimigos ficam invulneráveis e é necessário atirar nas luminárias de bode para que o ambiente se ilumine. Há também outros sistemas, como os portões com cara de bebê que precisam consumir cérebros, olhos ou morangos para serem abertos, ou simples quebra-cabeças pertinentes ao cenário ou momento da jornada.



Os quebra-cabeças, inclusive, são bastante inconsistentes. Enquanto alguns são muito bacanas, como é o caso do trecho em que Garcia precisa ajustar manualmente o caminho dos blocos de escada em uma sala com arquitetura similar às ilustrações de Escher, outros são simplesmente bobos, como a seção da biblioteca na qual é necessário organizar as prateleiras a fim de criar um caminho por onde o protagonista possa passar.

Outro formato de sequência especial diz respeito às seções nas quais Garcia se transforma em uma versão bidimensional de si e o título assume uma jogabilidade de shooter de navinha, sendo necessário progredir lateralmente enquanto vai derrotando os inimigos com os diferentes tiros que surgem pelo caminho e podem ser equipados temporariamente nesses estágios.





Tirando isso, a jogabilidade se resume a andar, mirar e atirar. Garcia se movimenta de um jeito torto, rola de um jeito troncho e sua mira é 100% manual, sendo daquelas com as quais é necessário se habituar para que enfim o sistema comece a mostrar sua funcionalidade. Não é uma tarefa impossível, mas é de se questionar se uma trava de mira não quebraria um baita de um galho no processo. É até possível ligar e desligar um recurso assistente de mira nas opções, mas nada que realmente supra essa lacuna.

Garcia também pode se utilizar de alguns golpes com Johnson enquanto tocha ou de finalizadores corpo a corpo, ativados por quick time events. Aliás, que época foi aquela para QTEs, não é mesmo? Vai abrir uma porta? QTE. Vai acender os fogos de artifício para iluminar a área? QTE. Vai finalizar um inimigo no mano a mano? QTE.




O serviço de tutorial também poderia ser melhor. O progresso do game basicamente envolve derrotar os chefões e novos upgrades das armas já disponíveis, além de ser possível aprimorar os atributos de cada uma, como poder de fogo ou velocidade de recarga. Ainda assim, mesmo com um Johnson supostamente bem evoluído, não é sentida uma curva de progressão do começo ao fim, daquelas que paramos para pensar no quanto o protagonista evoluiu desde então.

A despeito de sua aparente precariedade, é difícil não se sentir imerso na jogatina enquanto ela rola na tela. O game é capaz de captar a atenção do jogador de uma maneira impressionante, que se verá entretido e focado na jornada de Garcia, fase a fase, a ponto de perder a noção do tempo. Isso faz com que ele seja uma excelente pedida para um eventual fim de semana chuvoso ou frio.




Nesse aspecto, a curta duração da campanha, com umas dez horas de duração, remete até mesmo a um jogo de locadora — e aqui a comparação não é nem um pouco pejorativa, como ela é utilizada às vezes.

Um inferno pavimentado de boas intenções

Apesar de a sinopse fazer parecer que Garcia seja o protagonista de uma narrativa soturna, não se engane: todo o seu carisma se dá a partir de tiradas de humor grotesco e quebras recorrentes da quarta parede, já que, como é bem característico das obras do Suda, os personagens constantemente sabem que estão em um jogo e nunca irão tentar fugir desta condição ou fingir que ela inexiste.




Escatologia é uma palavra com dois significados. Enquanto algumas colocações modernas utilizam a palavra para descrever algo relacionado a excrementos ou outros tipos de obscenidades, a sua definição mais clássica é a atribuição do termo como uma referência à tratados referentes ao juízo final, como as imagéticas presentes no livro do Apocalipse, aquela coisa dos quatro cavaleiros ou do dragão de sete cabeças.

Shadows of the Damned consegue humoradamente escatológico de ambas as formas. Ele brinca tanto com os designs absurdos dos demônios — concebidos, majoritariamente, por Q Hayashida, autora do Dorohedoro — quanto com humor considerado chulo, como é o caso das insistentes piadas fálicas recorrentes ao longo do game, a exemplo tanto do famigerado Big Boner, a arma gigantesca que Johnson se transforma ao ouvir obscenidades ao telefone, ou de quando Garcia é abatido por uma demoníaca Paula e cai duro no chão, com uma tocha posicionada verticalmente ereta sobre sua virilha.




Apesar da recorrente abordagem satírica, algo que o game faz muito bem é a construção de sua atmosfera. Embora Garcia seja um protagonista bem parrudo, o que, em teoria, deveria transmitir uma sensação de segurança ao jogador por supostamente parecer alguém que encara qualquer perigo, os ambientes são, por via de regra, claustrofóbicos, e as situações fomentadas por eles chegam a sufocar.

Uma ilustração bem clara disso é um trecho no qual é necessário percorrer a biblioteca no escuro. Embora seja possível identificar de onde os inimigos vêm, o breu quase total consegue estimular um sentimento angustiante de tensão. Tiro luminoso é um recurso que existe e poderia ajudar, mas quando você só está esperando uma porta abrir para escapar daquele ambiente infernal e os inimigos não param de aparecer, o nervosismo inevitavelmente toma conta.




Na prática, são esses momentos específicos, quando algum “evento” acontece e vira a jogatina de ponta-cabeça, que trazem um frescor para os repetitivos mapas lineares pelos quais Garcia precisa percorrer ao longo da campanha. Há picos legítimos de diversão, com verdadeiros lapsos de inspiração, para alternar o design de fases consideravelmente arcaico, principalmente para a indústria atual. São sequências lineares que dão lugares a espaços abertos com inimigos para então desembocar em novos corredores.

Por exemplo, não há caminhos alternativos, nem colecionáveis que incitem o jogador a revirar os cenários de verdade — a não ser pelos rubis usados para evoluir as habilidades, mas que também podem ser adquiridos na loja. Aliás, algo que esse tipo de estrutura de fases costuma fazer é, de tempos em tempos, fechar o caminho de volta do jogador, que pontualmente poderia querer regressar para conferir algum detalhe em específico já passado.




Antigamente, essa prática dava certo porque a possibilidade de retorno significava que o console ainda estava rodando naquela localidade, e fechá-la liberaria espaço nesse processamento para dar sequência ao game. Hoje, isso não faz muito sentido, especialmente quando nos damos conta de que deixamos para trás alguns dos poucos caminhos bifurcados que certamente desembocariam em rubis escondidos.

É nesse tipo de revisão que Hella Remastered acabou efetivamente falhando como uma revisão do game original. Não adiantaria só melhorar a resolução e aproveitar a potência extra do console para supostamente fazer o mesmo com o desempenho. Há certas falhas inerentes ao gameplay que poderiam receber uma atenção extra depois de alguns testes de qualidade simples.




Aí é que a comparação com Lollipop Chainsaw RePOP, a remasterização recente de outro game desenvolvido pela Grasshopper Manufacture, se faz pertinente e inevitável. Ambos foram lançados mais ou menos na mesma época, mas o trabalho feito pela Dragami Games em cima do título acabou trazendo poucas revisões que acabam demonstrando uma preocupação um pouco maior com o produto sendo lançado do que a de Hella Remastered. Lá, houve também o tato de colocar um sistema de quick time event automático, algo que esse aqui também se aproveitaria, já que a quantidade de QTEs acaba sendo um pouco ridícula.

O fato de o jogo original já ser esquelético não significava que reedição também precisaria seguir desta forma. Embora a narrativa básica seja simples e direta, há várias nuances ao longo da aventura que trazem um contexto adicional e que colaboram para a construção da mitologia daquele universo. Isso vai desde algumas conversas com Johnson a até mesmo alguns livros ou pôsteres espalhados naquele mundo e que são interativos.




Os pôsteres, por exemplo, explicam o modus operandi de controle e governança exercidos por Fleming, o chefão daquele submundo, enquanto os livros, por sua vez, costumam trazer o conto de como os chefões que enfrentamos costumavam ser em vida e o que culminou em sua morte antes de serem dragados pelo próprio inferno e sucumbirem às forças das trevas.

Tais livros, inclusive, trazem uma narração hilária que só serve para valorizar o excelente trabalho de atuação da dupla principal, fazendo comentários paralelos a respeito da história ou quando Garcia apresenta dificuldades notórias de leitura, seja por puro analfabetismo, seja porque inglês claramente não é a primeira língua do mexicano.




A questão é que todo esse conteúdo extra fica restrito às próprias sequências de jogatina. Passado o estágio, você só pode retomá-lo caso decida percorrer todo o game novamente até chegar àquele ponto, por mais sucinta que a campanha seja. A versão Hella Remastered conta com um New Game +, mas não é muito interessante quando não é possível alterar a dificuldade entre um gameplay e outro, algo que acaba minando um pouco da graça de encarar um novo desafio já considerável evoluído desde o início.

Aliás, não adianta ter a melhor das intenções ao trazer novas vestimentas para Garcia se você as condiciona ao New Game +. Isso não faz sentido algum, já que é um dos pontos de venda dessa versão remasterizada e não é todo mundo que realmente gosta de se sujeitar a um segundo progresso desse jeito.




Por sua vez, Lollipop Chainsaw RePOP não só trouxe novos itens cosméticos bem bacanas em sua remasterização como também estimulou a sua utilização desde o princípio, bastando adquiri-los na loja e entrar no menu para equipá-los. Isso, a meu ver, é uma grande ironia, porque das duas reedições, a que mais parecia encaminhada para um fracasso durante seu desenvolvimento era justamente essa aqui pela Dragami Games.

Não que Shadows of the Damned: Hella Remastered seja um fracasso. Ele é só insosso, tal como Dead Rising Deluxe Remaster, que de deluxe não teve praticamente nada. Faltou um olhar mais atento para a melhoria da qualidade de vida do título como um todo. Há bugs persistentes que poderiam ter sido sanados. A impressão é que houve medo de mexer no código do jogo a fim de pelo menos tentar sanar algumas dessas problemáticas que, inclusive, já foram apontadas lá atrás no lançamento original.




Em compensação, o que recebemos de volta? Utilização dos gatilhos adaptativos no PlayStation 5? Controles de movimento para a mira? Sério? Era preferível então que tentassem fazer o jogo rodar melhor no console, já que, na reta final, foi percebida uma queda grosseira na taxa de quadros no aparelho.

Uma escapada intocada do inferno — para o bem e para o mal

Embora tenha seu próprio carisma, Shadows of the Damned sempre foi um produto falho, prejudicado pelo descaso de todos os envolvidos no projeto original, lá atrás. Shadows of the Damned: Hella Remastered é um pedido de desculpa vindo de uma parcela desses responsáveis, que voltaram a se importar com o que tinham em mãos, mas aparentemente não o suficiente para que várias de suas falhas históricas sejam repensadas a fim de aprimorar a experiência como um todo.




É um título, como um todo, bastante interessante, mas ele seguirá limitado devido ao perceptível espaço de melhora que sempre apresentou e nunca foi realmente explorado. Pelo lado bom, mesmo claramente envelhecido, dá para dizer que o tempo fez bem a ele, já que agora consegue se destacar com mais propriedade em um mercado aquecido por outros estilos de jogo, seja a nível de jogabilidade, seja a nível temático, já que funciona ainda melhor como um expoente do horror e gore.

Prós

  • Construção atmosférica impecável, com um design geral de produção de primeira linha;
  • Excelente trabalho de atuação dos atores principais potencializam a história e a mitologia do mundo;
  • Progresso fluido e imersivo, mesmo com curta duração da campanha;
  • Sequências especiais, como a do Big Boner ou a escapada da biblioteca representam momentos de destaque que compensam o level design por vezes arcaico.

Contras

  • Defeitos históricos do jogo permanecem lá sem qualquer tentativa de amenização;
  • Versão de teste (PS5) apresentou quedas de frames bem grosseiras na reta final;
  • New Game + e as novas vestimentas de Garcia implementadas de uma forma pouco satisfatória.
Shadows of the Damned: Hella Remastered — PC/PS4/PS5/XSX/XBO/Switch —
 Nota: 7.0
Versão utilizada para análise: PlayStation 5

Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Grasshopper Manufacture

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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