Análise: Dagon: Complete Edition é uma imersiva experiência pelo horror literário de Lovecraft

Uma forma breve e interessante de presenciar histórias do autor, cuja maior falta é não contar mais delas.

em 12/10/2024

Muito importante para a filosofia do horror do século XX, H. P. Lovecraft é um nome também influente nos videogames desde a década de 1980 — eu mesmo já tratei de semelhanças de Bloodborne com o legado do escritor. A presença dele nesse meio foi difundida ainda mais pela entrada de sua obra no domínio público e pela ascensão da indústria indie. Tem de tudo; das óbvias aventuras textuais e survivor horrors a roguelikes, comédias de RPG de turno e até simuladores de cidades.

Dagon: Complete Edition não é nenhum desses tipos. Talvez não seja nem mesmo um “videogame de verdade”, mas isso só poderá ser um problema para quem não souber do que realmente se trata esta homenagem intermídia, definida como um "conto interativo".



“Foi no verão espectral que a Lua brilhou no velho jardim por onde eu vagava”

No começo, achei que Dagon daria uma boa discussão sobre as fronteiras da mídia dos games, mas não demorei a deixar esse pensamento de lado. A ideia da desenvolvedora polonesa Bit Golem é pegar os esqueletos dos contos de Lovecraft em sua forma integral e adicionar camadas de órgãos, músculos e pele para dar nova vida a uma criatura de mídia híbrida, mas ainda essencialmente a mesma de um século atrás.

Na prática, é como um audiolivro que implementa umas poucas estruturas típicas de jogos para enriquecer a apresentação atmosférica de textos que já tinham grande foco na ambientação. O principal mérito é como o bom trabalho audiovisual incrementa a sensação espacial. As texturas realistas, as luzes bruxuleantes e difusas dão o peso de lugar concreto e tridimensional às estranhas paisagens que o autor descrevia intensamente.



Não é nem mesmo um walking simulator, pois não podemos andar pelos cenários, mas apenas olhar ao redor ao controlar a câmera enquanto ouvimos a narração. Tampouco é uma visual novel tradicional, com ilustrações estáticas. Dagon está em algum lugar entre os dois conceitos, como uma imersiva experiência narrativa que nos leva a habitar por alguns minutos os espaços sombrios em que ocorre.

Além da mecânica básica de câmera, a única parte levemente "gamificada" está nos colecionáveis que podemos encontrar pelos cantos, guardando curiosidades em forma de textos que explicam aspectos do autor e de sua época, pertinentes ao respectivo momento da narrativa. Para quem achar que essas “notas do editor” são intrusivas e interrompem o clima da história, há uma opção que desliga o acionamento automático para que elas sejam lidas apenas depois, disponíveis no menu principal.



“Escrevo esta história sob uma pressão mental considerável, uma vez que hoje à noite deixarei de existir”

À primeira vista, mais uma vez, pensei na Complete Edition como uma coletânea de contos de Lovecraft, mas concluí que se define melhor como uma incursão na divulgação literária do autor. Primeiro, porque são apenas quatro contos. Segundo, porque os quatro são muito diferentes entre si, claramente na intenção de abordar um leque de produções do autor, na medida do possível.

O principal conto é "Dagon" (1917), por melhor representar o horror cósmico pelo qual o autor é conhecido, e por ser mais longo que os demais, embora ainda seja bem curto. Olhando bastante os arredores e lendo as curiosidades, levei 40 minutos para completá-lo.



Os outros três são bem distintos, exceto por durar entre 10 e 15 minutos, cada um. "O que a lua traz consigo" (1922) segue estilo parecido, mas é como um sonho febril, no qual nada é realmente definido. A voz do narrador é a mesma usada em Dagon, que condiz com o clima das histórias.

"O horror da ferrovia" é um relato de pesadelo que Lovecraft sonhou e escreveu em carta a um amigo. Por ser de fonte diretamente pessoal, os devs optaram por tentar simular na dublagem uma hipotética voz do autor, baseada em descrições de conhecidos e no sotaque da região. Ainda que a escolha condiga com o aspecto de apresentação literária contextual, achei que soa muito casual e prejudica a atmosfera.



Já o último segmento, "A garrafinha de vidro" (1897) é um conto pirata de caça ao tesouro escrito quando Lovecraft tinha sete anos, ainda carregando a ortografia falha e a alegria inocente da infância (pouco depois, começou a ler Poe, pobre criança). É completamente diferente do restante da Complete Edition e está presente aqui como uma curiosa e inesperada faceta. O tom distinto recebeu gráficos também distintos, com algo mais colorido e no estilo cell shading.

Considerando que Dagon foi lançado gratuitamente no Steam em 2021 e os demais vieram como DLCs pagos com rendimentos voltados à caridade, o conteúdo é uma seleção apropriada para a escala do projeto, servindo como uma experiência que pode agradar tanto aos que já leram tais textos quanto a quem estava curioso para ser apresentado a Lovecraft.

Dito isso, não tenho como ignorar a sensação de potencial deixado pela metade. Em parte, é um elogio por significar que a proposta foi bem executada ao ponto de deixar querendo mais. É aquele velho sentimento gamer de “quando sai o próximo?”, que me faz pensar que a ideia deveria ser levada adiante, com mais contos do autor.



Embora o preceito de trazer as obras na íntegra, palavra por palavra, incorra nos riscos da extensão prolixa e do racismo paranoico de Lovecraft (nenhum dos contos da Complete Edition sofre desses males), acredito que histórias como “O forasteiro”, “A cidade sem nome”, “Os ratos na parede”, “A cor que caiu do espaço” e até “A sombra sobre Innsmouth” renderiam ótimas adaptações para o formato de imersão de espaço audiovisual, ainda que concedessem cortes aqui e ali para não se arrastarem além da conta.

Eu já havia lido os contos lovecraftianos e ouvido vários deles na ótima narração de Marcelo Fávaro, do canal de YouTube Conto um Conto (fica a dica), mas a versão da Bit Golem dá um interessante passo além em levar essas histórias de horror sobrenatural ao meio do caminho entre a literatura e o videogame.



“A emoção mais antiga e mais forte da humanidade é o medo”

Dagon: Complete Edition é um interessante experimento de divulgação literária interativa. Ao longo de uma hora e meia, passamos na íntegra por quatro pequenos contos de H. P. Lovecraft recriados em cenários tridimensionais, narração atmosférica, sons imersivos e explicações dos contextos que cercam os escritos.

Ainda que o máximo de controle que temos seja mover a câmera para olhar ao redor os ambientes sutis, mas inquietantes, o todo do conjunto é uma imersiva incursão em território sombrio que vale a visita para os já familiarizados e para quem deseja uma singela introdução ao território do patrono do horror cósmico.



Prós

  • Adiciona camadas espaciais e levemente interativas a textos originais de Lovecraft;
  • Narração atmosférica nas duas histórias principais;
  • Textos encontrados pelos cenários enriquecem o contexto da época e do autor;
  • Texturas realistas e luzes etéreas fazem um misto surrealista que combina com as histórias;
  • Localizado em português brasileiro.

Contras

  • A ausência de gameplay propriamente dita pode frustrar quem criou expectativas por um mínimo de jogo convencional;
  • Embora compreensível para sua escala, a produção limitada impede que a coletânea contemple contos mais robustos de H. P. Lovecraft.
Dagon: Complete Edition — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: PS5

Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Feardemic

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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