Analógico

Epic Mickey: as referências de uma era clássica das animações

Tudo começou com um camundongo — ops, na verdade, foi com um coelho.

em 26/09/2024

Em 2010, Epic Mickey resgatou personagens da Disney antigos e esquecidos, começando pelo de maior importância histórica: o coelho Oswald. Ele foi criado em 1927 sob encomenda da Universal, mas, passado apenas um ano, a produtora tirou o então pequeno estúdio Disney da jogada e passou a fazer os próprios curta-metragens. Oswald tinha uma namorada, a gata Ortensia, mas a perda dos direitos da dupla logo foi substituída na Disney por novas estrelas: os camundongos Mickey e Minnie.

Apesar de popular na década de 1930, o coelho foi perdendo relevância ao longo do tempo, até que sua história começou a mudar no início dos anos 2000, quando uma desenvolvedora de jogos interna da Disney apresentou um projeto que envolveria a mascote original: era Epic Mickey.



O então CEO da empresa, Bob Iger, também tinha interesse em comprar os direitos daquele que era um dos primeiros personagens criados pelo fundador Walt. A aquisição de Oswald deu sinal verde ao game e uma desenvolvedora foi comprada para realizar o projeto: a Junction Point Studios, recém-fundada por Warren Spector, criador de Deus Ex.

Assim, Epic Mickey foi lançado exclusivamente para Wii e alcançou as expectativas da sua dona. No entanto, o que parecia um começo promissor teve uma reviravolta na sequência. O fracasso de Epic Mickey 2: The Power of Two, lançado em 2012 para várias plataformas, levou ao encerramento da Junction Point Studios e ao cancelamento de várias sequências que planejavam expandir o uso de personagens antigos em videogames.



Revirando a videoteca

Agora que o primeiro Mickey, o de O Vapor Willie, está livre e solto no domínio público, diversas versões sombrias apareceram por aí. Epic Mickey, porém, teve essa mesma ideia muito tempo antes ao apresentar sua subversão disneyana de uma Terra Desolada que abriga o refugo esquecido dos desenhos animados de quase um século atrás.

Personagens como Oswald e variantes antigas de Bafo (que, originalmente, tinha uma perna de pau), Clarabela e Horácio amargam o exílio em uma sombra do mundo Disney real, que provavelmente tem seu ápice — ou melhor, seu fundo — na Montanha Mickeytralha, em que restos de produtos em decomposição do camundongo se acumulam em uma grande pilha de lixo velho — tem até enormes cartuchos de The Magical Quest Starring Mickey Mouse, lançado para SNES em 1992. A ideia tem tanta morbidez quanto um jogo da Disney “para a família” permite; um nível sutil, mas ainda eficaz.



Quem gosta desses desenhos animados (talvez millennials como eu, que cresceram vendo na TV e em VHS), assim como o público das coletâneas de quadrinhos do Mickey de Floyd Gottfredson, publicadas no Brasil nos últimos anos, vai encontrar uma familiaridade atraente em Epic Mickey e, principalmente, um bom uso dessas referências.

Os cenários de todas as fases 2D do jogo revisitam curtas animados que, mesmo originários dos primórdios do cinema, mantêm muita qualidade, como Os Limpadores de Relógio (1937), em que o trio Mickey, Donald e Pateta dão duro para ganhar a vida em condições de trabalho perigosas. Nessa época, era comum que esses personagens fossem retratados em situação de precariedade, igualmente retratada em Mickey e o Pé de Feijão (1947).



Epic Mickey também contempla a parcela mais sinistra desse passado, como A Casa Mal-Assombrada (1929), Os Fantasmas Solitários (1937) e O Cientista Maluco (1933). Na era do preto e branco, receberam fases próprias os curtas The Castaway (1931), Ye Olden Days (1933), Mickey’s Mechanical Man (1933) e Mickey’s Steam Roller (1934), com a estreia dos sobrinhos do camundongo, Chiquinho e Francisquinho, nas telas.

Já da época da revolução Technicolor, tem Thru the Mirror (1936), inspirado em Alice Através do Espelho, de Lewis Carroll. Alpine Climbers (1936) e The Whalers (1938) mostram os protagonistas tentando vidas aventureiras e, para o bem do humor e das baleias, se dando mal no processo.

Do lado de Oswald e Ortensia, três curtas são temas de fases: o primeiro de todos, Trolley Trouble (1927), seguido de Great Guns (1927) e Oh What a Knight (1928), da imagem abaixo. Vale dizer que este último é um dos dois que Epic Mickey oferece como extra. O outro é o já mencionado O Cientista Maluco.



Poder assistir a essas animações clássicas no jogo é muito importante para o contexto, mas chama atenção para o fato de que são uma mera fração do grande catálogo de referências utilizadas ali. É de se imaginar que tais filmes, que duram entre seis e oito minutos, poderiam ser facilmente incluídos no pacote, então a ideia de um minicinema in-game deve ter ficado restrita pela política da Disney de uso de suas produções passadas.

Os longa-metragens

Os filmes mais longos também são fontes de inspirações para Epic Mickey. A maior parte aparece de forma discreta, como o castelo de A Bela Adormecida (1959), que contém quadros de Maleficent e Scar, além de uma estátua da Fera. Também vemos Dumbo (1941) aqui e ali e trechos de Fantasia (1940), como o feiticeiro que criou a terra mágica para Oswald e os inimigos derivados das vassouras que carregam baldes.



Um com grande presença é Peter Pan (1953), destoando da ideia de focar mais em curtas com os personagens animais. Além do navio Jolly Roger, temos um androide do Capitão Gancho, o imediato Barrica e Bafo Pan (em inglês, o trocadilho faz mais sentido, pois o nome original de Bafo é Pete). A ideia até encaixa bem na ambientação geral do jogo, mas seus personagens de aparência humana ficam um tanto deslocados no plano geral.

A participação mais moderna é do filme Tron, mas essa é explicada do ponto de vista do marketing pelo lançamento do filme Tron: O Legado no mês seguinte ao jogo, em 2010. Explica, mas não justifica essa que é referência totalmente à parte do restante do jogo.

Parques temáticos

Várias localidades do game são derivadas de espaços dos parques temáticos da Disney, como Tortuga, a ilha de Piratas do Caribe, e a Cidade do Amanhã, com seus brinquedos que hoje podemos considerar retrofuturistas.



A de maior destaque é a Rua Intermediária. Em inglês, o nome é Mean Street, que pode significar também “rua cruel” e faz trocadilho com Main Street U.S.A., a alameda principal que leva ao icônico castelo do Magic Kingdom, no Walt Disney World.

Ela é cercada de casarões e lojas reproduzidas no jogo, inclusive a estação de trem e o departamento de bombeiros, em cima do qual ficava o apartamento particular em que Disney e sua família descansavam quando estavam no parque. O local é um dos segredos do jogo, acessível após entregar 30 Fagulhas para o gremlin após concluir a Mansão Solitária.



Gremlins

A lista de alusões em Epic Mickey é enorme, mas vale adicionar aquela que mais se adequa ao tema de “personagens esquecidos”: os gremlins (que nada têm a ver com o famoso filme da década de 1980). Criados durante a Segunda Guerra Mundial, na publicação infantil de estreia de Roald Dahl, escritor inglês que se tornaria um dos maiores do ramo, Walt Disney tinha planos de fazer um filme sobre esses seres mágicos e a Força Aérea britânica, mas teve que cancelar o projeto e deixar os duendes travessos restritos a um livro ilustrado.

Em Epic Mickey, são esses carinhas que apresentam a Terra Desolada a Mickey, e o principal deles, Gus, acompanha o camundongo em toda a jornada. O restante dos gremlins serve como NPCs e como vítimas raptadas para resgatarmos de suas jaulas escondidas pelos diversos locais do jogo. Uma vez livres, os pequenos ajudam a consertar engenhocas para abrir novos caminhos.

Enquanto isso, nos quadrinhos…

Walt Disney começou as tirinhas de jornal de Mickey Mouse para difundir seu personagem, mas seu foco verdadeiro estava no cinema. Após alguns meses, ainda em 1930, ele passou a produção dessas HQs para Floyd Gottfredson, um autor novato que se tornou muito importante para o personagem ao longo das décadas seguintes.

Foi nas histórias criadas por ele que Mickey ganhou o aspecto de detetive, dando espaço para histórias de mistério e ação em que Mickey é apresentado de forma mais racional e diligente e menos como o moleque ingênuo e impulsivo que vemos em outras obras. O lado imaturo é perceptível na cena de abertura de Epic Mickey, quando ele, por puro enxerimento, resolve mexer no pincel mágico de um feiticeiro que nunca viu na vida e acaba causando a desgraça que formou a Terra Desolada.

Gottfredson foi o criador dos sobrinhos de Mickey, Chiquinho e Francisquinho, em HQ de 1932. Também veio dele um grande nome dos quadrinhos Disney que foi quase inteiramente ignorado nas telas: o Mancha Negra, de 1939. A princípio, ele seria o vilão principal de Epic Mickey até ter seu nome e design alterados para formar uma entidade mágica, mas ainda obviamente derivado dele: o Mancha.



O quadrinista também adaptou ideias de animações Disney em versões bem diferentes para os quadrinhos. Dentre as que compartilham as mesmas inspirações de Epic Mickey, as principais são O Mistério do Castelo Assombrado (1932), que modifica o Cientista Maluco para ser um trio de gênios científicos do mal na forma de macacos antropomórficos (a história tem o camundongo Mickey e o cavalo Horácio, afinal).

Além dela, destaco Os Sete Fantasmas (1936), que criou a agência de detetives de Mickey, Pateta e Donald, uma ideia que voltou a aparecer no ano seguinte, dessa vez nas telas de cinema, com Os Fantasmas Solitários. Em Epic Mickey, a agência pertence a Horácio e fica na Rua Intermediária.




A saudosa agência de detetives foi revisitada em graphic novels francesas recentes, estreladas pelo trio de mascotes detetives e lindamente ilustradas por Alexis Nesme: Horrifikland e Ilha do Terror, lançadas no Brasil há pouco tempo.

As histórias de Floyd Gottfredson também receberam uma coletânea brasileira inteiramente dedicada a elas, chamada Os Anos de Ouro de Mickey. Essas HQs são recomendáveis a qualquer pessoa que goste dos temas e da atmosfera retrô de Epic Mickey e, enquanto escrevo este artigo, ainda são encontradas à venda em varejistas online.

Para fechar, o próprio jogo recebeu uma adaptação para quadrinhos com a bela arte do italiano Paolo Mottura e saiu no Brasil em 2011. A sequência também foi quadrinizada sob o título Epic Mickey 2: Poder em Dobro e foi lançada por aqui em 2013.



Espanando a poeira do arquivo

A Disney é uma megacorporação multimidiática que sempre soube fazer vasto uso de autorreferências, romantizando a própria imagem e história a cada nova oportunidade. Por isso, não é surpreendente que exista um jogo estrelado por Mickey para revisitar seu passado, sacudir a poeira dos arquivos e alimentar a nostalgia dos corações. Mickey Mania já tinha ensaiado essa ideia no SNES em 1994, lembra?

Mesmo assim, a maneira que Epic Mickey expressa essa ideia é inusitada e pertinente. Não que seja uma grande crítica ou reflexão, mas uma releitura singela que lança olhar ao efeito do tempo em obras importantes não apenas para a história da empresa, mas também do próprio cinema.



Revisão: Juliana Paiva Zapparoli

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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