Como tantos outros remakes, Disney Epic Mickey: Rebrushed é mais uma tentativa de provar o valor de um jogo originalmente lançado em um passado não tão distante. Faz 14 anos que Epic Mickey chegou ao Wii e ficou por lá mesmo todo esse tempo, sem dar as caras em outras plataformas. Mesmo naquela época, já havia muito contexto por trás do jogo, que pretendia dar uma guinada no padrão ensolarado Disney em uma aventura sombria sobre animações enterradas pelas areias do tempo.
Na verdade, é tanto contexto que, na intenção de apresentar o jogo em seu panorama maior, vi-me escrevendo uma review longa demais. Para aliviar isso, dividi o todo em duas partes: este texto é a análise propriamente dita, focada em apresentar a estrutura, a gameplay e as melhorias advindas da condição de remake. Outro texto abordará como Epic Mickey veio ao mundo e como ele dialoga com o passado do personagem e o império de animação erguido por seu criador, Walt Disney.
Perdidos no purgatório
Em linhas gerais, Epic Mickey era uma aventura densa de referências a animações da primeira metade do século XX. A ideia é que muito do material dessa época foi esquecido e ficou relegado a uma terra mágica. Um acidente, ocorrido pela impulsividade de Mickey em mexer com artefatos do mago que criou aquele mundo, derramou tinta e solvente pela maquete que dá forma ao lugar, deformando-o ao ponto de se tornar conhecido como Terra Desolada.
O líder, Oswald, é o personagem que começou a dar fama a Walt e seu estúdio, mas precisou ser substituído pelo camundongo Mickey. Há uma história de ressentimento sobre um legado que, do ponto de vista do coelho, deveria ser dele, não do outro roedor.
Com isso, Epic Mickey aproveitou para prestar homenagens, despertar nostalgia e resgatar certos desenhos animados que estavam em processo de esquecimento.
A execução artística do conceito de Terra Desolada é a alma da obra. A atmosfera escura, densa e decadente já era interessante em 2010, dando ao jogo uma identidade única no universo de Mickey e sua turma em uma releitura que se destaca como uma abordagem própria, mas que, ao mesmo tempo, é profundamente baseada em referências históricas do estúdio de animação. Ou seja, ao se afastar da faceta higiênica mais característica das décadas seguintes, Epic Mickey exibiu como sua novidade o resgate do velho e encardido.
O remake de 2024 eleva o patamar estético, reconstruindo tudo com novos modelos, texturas e efeitos de luz e sombras que aprofundam a ambientação que já era rica algumas gerações de consoles atrás. O embelezamento sombrio deixa a desejar em alguns pontos, como em algumas texturas e no mar de solvente da imagem abaixo, mas, em geral, a produção melhora o design com grande sucesso, ainda que não esteja no nível de grandes jogos no estilo feitos hoje em dia.
Fazendo arte
A dupla de tinta e solvente não é apenas um ponto central da narrativa, mas também da gameplay, que gira em torno de usar esses recursos para fazer e desfazer coisas na jornada pela Terra Desolada. Em posse do pincel mágico, cabe a Mickey encarar as consequências do acidente que provocou e fazer o possível para ajudar a reerguer aquele país de exilados.
A lógica é a seguinte: partes do mundo estão em decadência, mas podem ser restauradas com uma camada de tinta a mais. O solvente também pode ser empregado para fazer sumir esses seres e materiais pintados. A dinâmica que envolve essas duas possibilidades é a base para as principais mecânicas de jogo, usada para seguir pelas plataformas, encontrar objetos escondidos, resolver puzzles e enfrentar inimigos.
A dupla de materiais de pintura ainda serve para bifurcar a trama levemente, pois podemos derrotar os chefões usando o solvente para destruí-los ou a tinta para regenerar seus caráteres. A mesma ideia de rumos possíveis é empregada em parte das missões secundárias, que podem ser ignoradas, concluídas de mais de uma maneira ou até perdidas por progredir na história sem completá-las.
Esse sistema influi na maneira que os personagens tratam Mickey e nas melhorias de tubos de tinta ou solvente, mas não espere uma ramificação complexa nem grandes impactos na campanha. Na verdade, não há nem um parâmetro para indicar o que suas escolhas significam. É superficial, mas combina bem com a temática dual de pintar e dissolver e dá um pouco de charme a mais para diferenciar Epic Mickey de outros plataformas 3D de mascote.
Turista de filmes
O enredo mais elaborado, porém, tem alguns contras que atrapalham o fluxo do jogo no começo, com numerosas interrupções expositivas. Nesse ponto, o jogo mostra sua idade, postando-se bem na fronteira entre a época em que os jogos contavam suas histórias por caixas de texto e que trouxe a ascensão de cenas mais cinematográficas. Epic Mickey mistura formatos muito distintos entre si, o que acaba flutuando entre altos e baixos.
Além disso, segura firme a mão de quem joga, retirando o controle por intervalos que, ainda que sejam curtos, têm uma frequência incomodamente tediosa. Até tem uma opção no menu para “Diminuir a falação”, mas não consegui perceber o que isso influencia na prática nem se melhoraria minha sensação caso eu tivesse ativado no começo.
Apenas a partir da Montanha Mickeytralha, que, grosso modo, é o equivalente ao terceiro dos cinco mundos principais da campanha, senti que o jogo teve confiança em soltar mais a minha mão e me deixar explorar e descobrir os ambientes. Ainda há o cuidado de deixar tudo explicadinho, mas com uma ocorrência menos intrusiva, o que me permitiu curtir a jogatina dali em diante.
Os passeios pela Terra Desolada levam a lugares distintos a partir de uma cidade central, a Rua Intermediária. Curiosamente, a maneira de viajar entre os lugares requer passar por telas de projeção que contêm estágios em 2D baseados em curtas-metragens antigos.
A alternância entre diferentes dimensões de perspectiva é saudável para variar o ritmo da gameplay e tem boas representações dessas películas da aurora do cinema de animação, mas não passa disso, com fases bidimensionais simplistas e que não fazem uso da mecânica de tinta e solvente, destoando desse importante núcleo do jogo. Mesmo assim, se as enxergamos como bons extras e fan service antiquário, podemos perceber que o jogo como um todo fica melhor com elas.
A segunda impressão é a melhor
A gameplay nem sempre está à altura da ambientação e, no jogo original de Wii, acabou sendo uma montanha russa de altos e baixos. Felizmente, a recriação é uma versão melhor, com controles agradáveis e eficazes.
Para além dos visuais recriados, a gameplay também recebeu ajustes. Se antes a câmera era pouco prática devido ao Wii Remote e Nunchuck, agora ela faz seu trabalho direitinho na maior parte do tempo com o uso do segundo analógico.
Ficou para trás o controle de movimento para representar o pincel de Mickey, que também passou ao analógico direito e funciona como se tivesse sido feito com isso em mente desde o começo. Ou melhor, não ficou de todo para trás. Ao menos na versão de PS5 há a tentativa de usar o giroscópio do DualSense para mirar a tinta, mas é tão imprecisa que mais atrapalha do que ajuda, intrometendo de vez em quando de forma não intencional para me fazer errar o alvo. Se houvesse uma opção de desligar essa função, eu o teria feito.
Como novidade, o camundongo acerta em aprender novos movimentos que, hoje, são básicos: corrida e investida. Essa dupla atlética é muito bem-vinda para agilizar a gameplay, já que o passo normal não é lá muito rápido. Temos ainda uma terceira habilidade de utilidade menos vital, a batida no chão (o salto com “bundada” que vemos desde Super Mario 64).
Outro ponto de renovação foi a galeria de artes, que é adquirida item a item por meio de colecionáveis escondidos. Como o visual foi totalmente renovado, a Purple Lamp teve o bom senso de trocar as antigas artes conceituais (que já eram interessantes) pelas novas, oferecendo uma galeria de mais de 150 imagens para admirar, incluindo o nome do artista de cada uma.
Uma das adições é um tanto ambivalente. Mickey receber trajes para mudar sua aparência é uma coisa boa, mas o fato de o menu mostrar cinco opções extras, mas bloquear três delas como DLC pago dá o gostinho azedo de conteúdo cortado do jogo base. Ainda por cima, essas são as mais elaboradas, pois as do jogo consistem apenas de chapéus.
Um desenho que poderia ser mais animado
Retornando à questão da narrativa, além das cutscenes com gráficos em tempo real, há algumas animações em 2D. Elas fogem ao estilo Disney de fluidez, apresentando traços mais cartunescos, pintura texturizada e animação minimalista. Servem muito bem ao seu propósito, mas não receberam a mesma revitalização do restante do jogo e têm aquele ar embaçado de imagem com resolução abaixo da média do conjunto.
Outro ponto que senti falta nelas foi dublagem. O original não tinha vozes, eu sei, mas senti que, com tantas melhorias que deixaram o remake mais com cara de jogo contemporâneo, esse ponto mantém um ar limitado de geração antiga. Afinal, estamos falando de um jogo protagonizado pela mascote da mais icônica empresa de animação da história.
Também não seria uma adição acima das capacidades e recursos das companhias envolvidas. Para efeito de comparação, a desenvolvedora Purple Lamp e a publicadora THQ Nordic, as mesmas de Disney Epic Mickey: Rebrushed, lançaram em 2023 o jogo SpongeBob SquarePants: The Cosmic Shake, que trouxe uma dublagem tão exemplar que contou com os atores originais da série em nada menos que nove idiomas! Já o dono das orelhas mais famosas do mundo só se expressa por grunhidos e interjeições, com a mesma amplitude verbal de Link.
Outro ponto nesse aspecto que também merecia melhoria é a galeria de animações. Podemos assistir a dois curtas-metragens de cerca de 1930, importantes para o jogo por darem destaque a Oswald e o Cientista Maluco, mas ainda muito aquém da enorme riqueza de referências daquela época que recheia o jogo. Além disso, o reprodutor de vídeo é simplório, sem funções de pausar, retroceder e adiantar.
Bom o bastante para justificar seu retorno
Após resgatar desenhos animados do ostracismo, o próprio Epic Mickey precisou ser resgatado para retornar à ativa com visuais e gameplay modernizados. Assim, Disney Epic Mickey: Rebrushed é um remake que melhora o que veio antes e valoriza os aspectos que já eram bons na inusitada aventura sombria do camundongo, mas suas inconsistências não conseguem esconder que a base veio de uma época mais limitada.
Prós
- A mecânica de pintar e dissolver rende bons momentos de exploração intuitiva e razoavelmente livre;
- A atmosfera sombria encaixa muito bem no contexto e permite ao jogo apresentar sua versão individual de personagens usados à exaustão por diversas mídias;
- O visual refeito valoriza o jogo e, junto com os novos recursos, como a câmera eficaz, justifica o remake;
- Mickey agora pode correr;
- Textos em português brasileiro.
Contras
- O começo tem o ritmo atrapalhado por interrupções expositivas e gameplay limitada, demorando a engajar na ação;
- Alguns elementos visuais destoam por sua baixa qualidade, como a água do mar;
- O uso do movimento do DualSense para manipular o pincel mais atrapalha que ajuda;
- Pouco conteúdo novo adicionado;
- Há cinco trajes cosméticos no menu, mas três são bloqueados por DLC pago;
- Faltou dublar as cenas da história para trazer a narrativa ao patamar moderno e deixá-la à altura do herói roedor.
Disney Epic Mickey: Rebrushed — PC/PS4/PS5/XBO/XSX/Switch — Nota: 7.5Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Vitor Tibério
Análise produzida com cópia digital cedida pela THQ Nordic