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Análise: Caravan SandWitch é uma deliciosa viagem por um desconhecido familiar

Aventura engana com aparência simples, mas tem muito a dizer.

em 13/09/2024

Eu sou uma pessoa fácil de agradar. Tudo o que eu preciso para ficar bem é uma boa companhia, um matcha latte quentinho e/ou um jogo charmoso de mundo aberto que me faça esquecer o tempo passando ao meu redor. Fico imensamente feliz em dizer que Caravan SandWitch, primeiro jogo do estúdio indie francês Plane Toast, cai em pelo menos uma dessas categorias. 

Nesta aventura tranquila ambientada em Cigalo, um planeta distante baseado na região terráquea da Provença, na França, o jogador controla Sauge, uma menina amigável que recebe um sinal de socorro de sua irmã Garance na região. O problema é que a moça havia sido dada como morta seis anos antes. 

Com a ajuda de uma van e das atualizações feitas por Nèfle, cientista local e amizade de longa data, Sauge fará de tudo para se reunir com Garance. É aqui que mora o cerne do jogo: explorar, coletar componentes, recauchutar a van, seguir a história. Mas é na simplicidade das tarefas dadas que Caravan SandWitch esconde suas experiências mais profundas: importantes mensagens sobre o meio ambiente, comunidade, família e as heranças do colonialismo. 

Quer saber mais? Então suba na van, porque a jornada já vai começar!

Sauge e sua van, mas que união feliz!

Pode-se dizer que a pequena e simpática van off-road é a segunda protagonista de Caravan SandWitch. Confiada a Sauge por Rose, a “mãezona” da comunidade de Estello, ela faz de absolutamente tudo: anda em estradas de terra, montanhas, florestas e até atravessa o mar. Isso sem falar nas engenhocas adicionais, que a permitem, entre outras coisas, escanear regiões e arrombar portas.

O controle do veículo é tranquilo, independentemente da experiência do jogador com simuladores de carro — apesar de precisar confessar que consegui a proeza de entalar a van em lugares insólitos várias vezes. Para ajudar os motoristas menos talentosos, como eu, a Plane Toast incluiu um ponto de viagem rápida à garagem de Nèfle, que é o único disponível até certo momento da história, à la NieR:Automata. 

Alguns podem ficar frustrados pela falta de conveniência, mas, na minha opinião, a viagem é exatamente o ponto do jogo. Várias missões opcionais, depois de concluídas, pedem que você faça o caminho de volta manualmente com a pessoa acompanhante, dando tanto uma oportunidade de conversar e aprender mais detalhes da história quanto de se familiarizar com as belíssimas paisagens de Cigalo.

Também merece destaque especial o design de nível. Espalhadas pelo planeta estão diversas estruturas abandonadas, construídas pelo Consórcio, entidade similar a uma corporação ou país que usou Cigalo como base de operações por muitos anos. Cada uma é uma pequena caixa de quebra-cabeças, entre solução de problemas e testes simples de inteligência espacial, e a linguagem visual coesa do jogo faz do processo de navegação por elas uma experiência intuitiva e relaxante.

O único ponto negativo é que tanta liberdade de exploração pode levar o jogador a esbarrar onde não deveria estar. Normalmente, Caravan SandWitch é dividido por capítulos que correspondem ao desbloqueio de certas ferramentas, mas, principalmente no meio do jogo, é muito fácil encontrar áreas que são inacessíveis até determinado ponto. Pode até ser gostoso voltar sabendo a solução, mas, muitas vezes, eu sequer entendia por que não conseguia passar; faltou mais clareza.

Outra falha importante do título que se fez presente na minha experiência foi um bug de câmera constante, que fez a tela piscar repetidas vezes. Para mim, foi meramente desconfortável, mas, para um jogador que sofresse de doenças fotossensíveis, como epilepsia, poderia ter causado problemas mais sérios. O jogo recebeu atualizações enquanto eu jogava para consertar outros erros, e espero que este em específico esteja sanado após seu lançamento.

Amigo, estou aqui

Além das delícias de explorar um pequeno mundo aberto, o outro grande trunfo de Caravan SandWitch é sua história e personagens. Cigalo pode ter sido abandonado pelo Consórcio, mas o povo que ali nasceu e cresceu jamais desistiu do planetinha. Desde a população nômade, que vive da terra e da boa vontade dos locais, até as titulares Bruxas da Areia, protetoras de um importante segredo, todos têm uma conexão profunda com o ambiente. 

Até mesmo Sauge, que deixou Cigalo seis anos antes para estudar nas Cidades Espaciais do Consórcio, acaba por ter a própria aventura de reconexão enquanto procura por Garance. Espalhados pelo mundo estão diversos pontos onde a protagonista fez memórias de infância com a irmã, Nèfle e os pais Cèpe e Basile; ela sempre tem algo a dizer sobre onde costumava explorar, ou quais áreas lhe foram proibidas quando criança.

Junto das histórias antigas, escrevem-se novas. O jogo conta com uma série de missões opcionais, focadas em cada personagem que Sauge encontra em suas andanças. Cada uma progride a narrativa maior de certa forma, seja ao esclarecer grandes detalhes do enredo, ou ao dar atenção para quem aparece pouco, solidificando o sentimento de comunidade. 

Em certo ponto, um personagem pergunta a Sauge por que ela é tão dedicada a ajudar até mesmo quem mal conhece, e ela simplesmente responde que é o que a faz bem. É assim que esses momentos são: confortáveis e leves, como o resto da história.

Um dedinho de política

Eis a última peça do quebra-cabeça, e um tópico que muitos na comunidade gamer, inclusive no ambiente dos “cozy games”, onde este título está inserido, preferem evitar: o lado político de Caravan SandWitch. Esta doce jornada por um planeta semi-abandonado contém, na verdade, uma tese sobre os efeitos do colonialismo.

O Plane Toast é um time francês, país que, na vida real, ocupou por mais de um século o território do Haiti, o devastando tão profundamente por seus recursos naturais que os efeitos podem ser vistos até hoje, em imagens de satélite feitas pela NASA. A mesma coisa aconteceu em Cigalo: antes um imenso pântano, onde o povo aborígene Reineto, composto de sapos sencientes, vivia livre, agora o planeta é quase totalmente desértico, com vegetação esparsa. Há apenas uma minúscula região de terra indígena, a Floresta Coaxante, onde a diminuta população resiste.

O tema é tratado com a seriedade e nuance que merece, sob várias perspectivas — incluindo pessoas que sentem falta dos colonizadores. Um jovem casal, por exemplo, pergunta a Sauge como foi a vida nas Cidades Espaciais, e se valeria a pena investir na ideia de levar Abricot, criança dos dois, para lá quando crescesse; pensam que talvez houvesse mais chances de uma vida melhor por lá. Fica a cargo do jogador dar a própria opinião.

É uma experiência que eu também conheço do outro lado da tela. Uma amiga muito querida nasceu em Uganda, país africano ocupado pelo Reino Unido entre 1888 e 1962, e já deixou o lar duas vezes para estudar nos EUA e no Canadá, as ex-colônias de ocupação do Império Britânico. Assim como o jogo retrata, é comum que pessoas mais ricas de países condenados pela colonização acabem por procurar oportunidades justamente com as pessoas que as roubaram no passado.

Apesar dos temas sérios, contudo, a narrativa nunca parece fora do lugar. As discussões não acontecem de forma exatamente sutil, mas também não pesam demais a mão. Para comparar a um outro jogo que analisei recentemente para o GameBlast, trago o exemplo de Dustborn: lá, havia muita postura revolucionária, mas temas centrais fracos. Falava-se muito em “bater em fascistas” e pouco sobre as reais marcas do fascismo, contentando-se apenas com dizer que a desinformação é algo ruim. 

Em Caravan SandWitch, por outro lado, o jogador é apresentado aos fatos da vida em Cigalo e convidado a fazer paralelos com o nosso mundo real, pensando por conta própria em quem está certo ou errado. É um exercício de crítica menos direto — e talvez até mais apropriado ao diálogo. Algo a ser recomendado mesmo e, principalmente, a quem discorda do que é dito ou não tem opinião formada.

Não é na Terra, mas é como se fosse

Caravan SandWitch, como toda boa ficção científica, conta a história do nosso planeta sem usá-lo como pano de fundo. A paixão pelas ideias que defende pode ser vista em todos os aspectos da narrativa, principalmente no carinho com todos os personagens e com a comunidade maior que formam. Tudo isso está envolto em uma experiência de gameplay simples e tranquila, que faz da aventura em Cigalo uma verdadeira alegria. 

Prós

  • Bons controles, fáceis de entender e aperfeiçoar;
  • Ótimo design de nível dita bem o ritmo de cada fase;
  • Personagens amáveis e bem escritos, que servem ao propósito da narrativa;
  • Conteúdo extra dá bons motivos para jogar até completar tudo;
  • Aspecto político é bem construído e não pesa demais.

Contras

  • É muito fácil esbarrar em áreas que precisam de ferramentas além do arsenal do jogador, o que pode levar a muito tempo perdido tentando solucioná-las;
  • Bugs de câmera são frequentes e podem ser um risco para quem sofre de doenças fotossensíveis.

Caravan SandWitch — PC/PS5/Switch — Nota final: 9.5
Versão utilizada para análise: PS5


Revisão: Beatriz Castro
Análise produzida com cópia digital cedida pela Dear Villagers


Jornalista formada pela PUC-SP e eterna apaixonada por videogames, especialmente aqueles japoneses de mistério. Sempre tem alguma redação gigante para escrever depois que zera um Yakuza.
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