30 anos de The King of Fighters e o impacto cultural da série na América Latina

Uma discussão de como nossa resiliência diante de crises socioeconômicas tornaram a série da SNK parte da nossa identidade cultural (e vice-versa).

em 25/08/2024


É possível dizer com convicção que Street Fighter é a franquia de jogos de luta mais popular da história, que conseguiu pavimentar um gênero e com certeza permeou os ambientes de jogatina durante o segundo boom dos fliperamas na década de 90. Apesar de tal consolidação, essa suposta folga na dominância pode, indubitavelmente, ser questionada dependendo do contexto socioeconômico de um indivíduo. Sim, vamos falar um pouco de The King of Fighters, que hoje completa seus trinta aninhos de existência.

A popular franquia da SNK surgiu como o primeiro crossover “oficializado” da indústria ao fomentar uma espécie de franquia mestiça ao unir as principais marcas da empresa em um só título. A ideia surgiu já de forma embrionária em Fatal Fury Special, de 1993, quando Ryo Sakazaki, de Art of Fighting, fez uma pontual aparição especial como personagem secreto. A partir daí, a ideia se desenvolveu dentro de si própria em um novo beat ’em up, chamado Survivor, em que as estrelas da casa seriam reunidas em times de três integrantes e sairiam na porrada em progressão lateral contra inimigos diversos.

Survivor logo foi preterido diante de um impasse: ao juntar vários artistas marciais de diferentes séries, por que não fazê-los lutar entre si? Assim, surfando na popularidade do gênero trazida justamente por Street Fighter, surge The King of Fighters ’94.




Ao contrário de seu concorrente direto, a quantidade de comandos era reduzida — apenas quatro botões em vez dos seis da franquia da Capcom — e havia um motivo para tal: aqui, era preciso dominar a jogabilidade de três personagens diferentes ao contrário do tradicional 1v1, uma vez que as lutas se configuram em esquemas de melhor de cinco em que um novo lutador do trio assumia o combate no lugar do derrotado no round anterior.

Além disso, KOF ’94 foi o primeiro de uma franquia de sucesso que, por muitos anos, seguiu um calendário de lançamentos em periodicidade anual, pré-datando um fenômeno que hoje é bastante controverso e encabeçado, principalmente, por franquias de futebol, como PES e FIFA (ainda que outras marcas o façam similarmente de forma menos descarada, como é o caso de Pokémon que, se observar bem, recebe jogos e conteúdos da linha principal nessa mesma periodicidade desde 2008, tendo apenas três anos de pausa — 2011, 2015 e 2024).

Um dos principais segredos por trás de The King of Fighters ’94, contudo, foi que ele se tratou de um game desenvolvido para a máquina conhecida como Neo-Geo MVS. Naquela época, os softwares de arcade eram feitos para as plataformas de maneira completamente dedicada. Ou seja, para conseguir o novo Street Fighter II Turbo, seria necessário comprar um novo aparelho de fliperama, com gabinete e tudo, e praticamente substituir a anterior, o Street Fighter II — The New Challengers, independentemente do fato de ambos utilizarem a placa CPS2 como base. Isso sem falar do espaço físico ocupado por dois gabinetes.




O MVS (sua versão doméstica também era da mesma linha, mas formalmente conhecido como Neo-Geo AES) acabou com essa patifaria ao oferecer um único sistema universal com capacidade de trocar o jogo dentro dele com uma facilidade similar à de um console caseiro. Diante da adversidade socioeconômica, The King of Fighters e o Neo-Geo se tornaram, então, um exemplo muito interessante de um fenômeno conhecido como Síndrome de Galápagos.

A Síndrome de Galápagos

O termo originou-se como uma analogia a uma observação realizada por Charles Darwin em A Origem das Espécies que dizia respeito a como o ecossistema daquele local se desenvolveu, em termos evolutivos, de uma maneira completamente diferente de um lugar menos isolado (id est, o resto do mundo). No mundo globalizado, essa nomenclatura se aplica a como um mercado em específico reagiu e se desenvolveu de maneira completamente diferenciada diante do contato com algum produto, marca ou similares.

Um exemplo clássico para descrever a Síndrome de Galápagos — ou melhor, é o contrário, já que o termo foi cunhado justamente para descrever essa anomalia — é a forma como o Japão abraçou as potencialidades das redes 3G em celulares de uma maneira bastante diferenciada se comparada ao resto do mundo, como utilizando-o para compras, jogos e outros aspectos da vida. Tenha em mente que, enquanto isso é, nos anos 2020, quase uma realidade global com os smartphones, essa adoção do celular como uma ferramenta intrínseca às tarefas do cotidiano já ocorria no começo dos anos 2000 do outro lado do globo.




Mais do que isso, esse fenômeno evoluiu de uma maneira completamente diferente do resto do mundo, uma vez que os celulares flip — hoje virtualmente mortos no nosso mercado a não ser por algumas versões simplificadas visando a um público mais idoso ou por modelos caríssimos com tela dobrável  — ainda têm tanto espaço no varejo quanto os smartphones bem mais modernos.  Esses mesmos celulares em flip, inclusive, ainda receberam um nome próprio para diferenciá-los dos iPhones e Galaxies da vida: garakei (ガラケー), uma espécie de neologismo que une as palavras keitaidenwa (携帯電話), o equivalente a telefone celular, e Garapagosu (ガラパゴス), que é uma transcrição fonética da palavra Galápagos.

O surgimento de várias culturas específicas ao Japão — que vão além dos Garakeis, só para constar — dependem de vários aspectos que vão do social ao econômico. Trata-se de uma sociedade que ainda é ligeiramente fechada em relação às inovações gaijins (principalmente porque muitas dessas que para nós são uma novidade já são uma realidade, de outra forma, para eles).




Essa percepção sociocultural diferenciada geograficamente é abordada por várias frentes, inclusive. Na comunicação, por exemplo, um movimento encabeçado por Jesús Martín Barbero em Dos Meios às Mediações defende que o entendimento de uma mensagem, hoje, é muito mais condicionado à percepção do público do que às intenções reais do emissor, visto que 1) a mensagem tem sua força por si só e 2) aspectos sociais, culturais e econômicos específicos moldam diferentes receptores que gerarão compreensões adaptadas e decorrentes das próprias realidades e formações intelectuais.

Isso, obviamente, se estende às marcas, uma vez que elas carregam um valor agregado, uma mensagem a respeito de si próprias que elas pretendem vender ao consumidor. É claro que, como constatado, trata-se de algo que ainda vai depender do próprio público-alvo, visto que, apesar de ser possível traçar estratégias de marketing para direcionar o entendimento, a compreensão é dada a partir de seu próprio contexto social.



O fliperama da padoca

A essa altura do campeonato, um leitor mais atento já deve ter percebido para onde este texto está caminhando. Pois bem, enquanto o mundo todo disparava Hadoukens, a comunidade de jogadores latino-americana — que apesar de não ser uma comunidade tão isolada quanto ilhas como Galápagos e Japão — soltava Crack Shoot. Isso se deve, mais uma vez, basicamente, ao contexto econômico da coisa.

O Neo-Geo MVS, então, foi crucial para que esse fenômeno em específico acontecesse.  Lembra-se da anedota do Street Fighter II? Pois então, exceto por fenômenos incrivelmente bizarros e tão específicos quanto a popularidade de KOF na América Latina (como o famigerado Street Fighter de Rodoviária™), comprar uma máquina nova a cada vez que uma versão atualizada do jogo saía era fora de cogitação para nosso mercado, que fora deixado em frangalhos pelas recém-derrocadas ditaduras que até então dominavam países como Brasil, Argentina, Chile e outros, além do México, cuja economia havia ido para o ralo com a Crise do Peso Mexicano que, olha só, aconteceu justamente em 1994 — é incrível como as datas batem, não?







Assim, a solução de vários donos de padaria e vendinhas de esquina era justamente adquirir o similar mais prático da SNK. Ao contrário das placas da Capcom, o Neo-Geo tinha um custo de manutenção baixo e era sempre abastecido com novidades. Eu, sendo um “Seu Joaquim da Padaria”, não precisaria adquirir um novo gabinete toda vez que saísse um novo título. Era só comprar o jogo de maneira individualizada — e, obviamente, de forma bem mais barata e prática, por conta do tamanho — e trocá-lo. 

Se eu quisesse disponibilizar Darkstalkers, Street Fighter Alpha e X-Men Vs. Street Fighter, teria que comprar três máquinas diferentes. Isso que ainda poderia aparecer um rebento ranhento querendo jogar alguma coisa obscura ou aleatória que eu não tenho e que ele provavelmente viu meia informação em uma revistinha, como Armored Warriors, e seria difícil suprir essa demanda, mesmo que todos esses mencionados sejam arquitetados sobre mesma placa, a CPS2.

Agora, se na minha padoca eu tenho três gabinetes de Neo-Geo MVS com Samurai Shodown, Metal Slug e The King of Fighters ’96 e o mesmo moleque ranhento aparecesse cobrando, sei lá, um World Heroes da vida, eu poderia simplesmente responder com um “volta na semana que vem”, porque seria bem mais fácil conseguir o que ele pediu (isto é, até onde era fácil importar esse tipo de material na época) e, consequentemente, estabelecer um laço com sua freguesia doida para gastar a mesada com fichas. Aí, a SNK entra no mérito de fazer games absurdamente mais difíceis, o que correspondia a um número infinitamente maior de fichas gastas. A relação de lucro-custo, com o cartucho, era muito maior nesse caso e compensava um eventual investimento.

Mesmo ciente da força da franquia na América Latina e de seus esforços para agradar esse público, a SNK ainda comete deslizes, como o estágio da selva em KOF XIII, algo que a própria empresa reconheceu no livro THE KING OF FIGHTERS: The Ultimate History.



É óbvio que, ainda assim, o jovem possa querer Street Fighter. Naquele contexto, entretanto, o MVS seria a única opção que ele teria de jogo, então era um KOFzinho ou nada. Quem adquirisse gosto pela coisa, acabaria gerando laços afetivos. Também se leva em conta que o fluxo informacional a respeito do que há de mais novo na indústria dos games não era tão intenso quanto o de hoje (visto que a internet ainda não havia se consolidado). As novidades chegavam com um considerável delay, então era mais fácil controlar o hype na molecada.

Mais do que isso, algo muito importante a se ressaltar é que ainda havia a questão da pirataria, que quase não foi comentada aqui. Era muito fácil produzir bootlegs dos cartuchos do Neo-Geo MVS, seja o processo de extração, seja de gravação da mídia. Versões alteradas se perdiam em meio às originais em um processo similar ao que condecorou o mitológico Street Fighter de Rodoviária™. O entendimento do que era uma cópia legítima para uma falsa ainda era muito específico e nebuloso para um público comum.



El King de Los Hermanos

Assim, entende-se, enfim, que conhecer as peculiaridades do público-alvo pretendido é essencial para conseguir fisgá-los dentro de suas especificidades — e elas vão muito além da questão do game design. O entendimento do preço de seu produto, por exemplo, é algo que pesa em mercados emergentes que nunca saem dessa situação (de emergentes). A forma de distribuição, idem.

A percepção do público também é importante porque esses mesmos fatores externos à cultura dos jogos de forma individualizada afetam o entendimento do seu produto por parte deles e, assim, você consegue vislumbrar potencial em alguns mercados específicos que podem ter estabelecido o chamado capital emocional.

Resultados da classificação norte-americana do torneio oficial da SNK de 2022.
O que foi visto aqui foi justamente a criação, mesmo que sem querer, de uma cultura comunitária de fãs. Até hoje, os latino-americanos dominam em massa — isto é, quando o governo norte-americano não dificulta a vida dos caras com a questão do visto, o que é um acontecimento recorrente no meio — as categorias dos jogos da SNK quando promovidos durante a EVO. 

A SNK, apesar de, por muito tempo, ter sobrevivido a trancos e barrancos por conta da sua declaração de falência no começo do milênio, sabe da relação que o público tinha com seus produtos, que eram de fácil acesso — algo que é muito irônico, na verdade, visto que o Neo-Geo caseiro, o AES, era um videogame estupidamente caro até para os padrões modernos (U$ 649,99 no seu lançamento, em 1990). 
É por isso que há uma atenção bastante especial da empresa (que agora é parte da Electronic Gaming Development Company, uma subsidiária de uma organização saudita sem fins lucrativos chamada Fundação MiSK) em relação não só a tal público, mas também a outros mercados emergentes que passaram por um processo similar ao nosso, como a China e outros países menos desenvolvidos do leste asiático. 

Assim, ela começou a implementar elementos que visassem tais comunidades tão específica e apaixonadas, como foi com a inclusão de lutadores de diferentes nacionalidades provindas do cone sul, como Ángel, Ramón, Isla, Zarinna, Nelson e Tizoc. Também não é incomum se deparar com o suporte da empresa a torneios locais, com direito a até mesmo postagens em espanhol em português.




“Gracias a Dios nací en Latinoamerica”

A América Latina ama The King of Fighters. De um jeito improvável e sobrevivente, tal como a própria SNK, que o tempo todo cai e consegue se reerguer das cinzas, o povo latino é resiliente e adequa a sua realidade ao que tem. É por isso que KOF tem um espaço especial no coração latino-americano. 

Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Referências online: Travelscene (via Medium), Investopedia, KotakuWired
Imagens e Fotos reproduzidas da internet ou tiradas de materiais promocionais
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É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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