Quando a gente se depara com um nome como Vampire Therapist, o
Terapeuta Vampiro, convenhamos que não há exatamente estranhamento, visto que
boa parte da mídia aborda tais entidades de diversas formas. É uma proposta
interessante, mas não exatamente distante de Entrevista com Vampiro, por
exemplo. A aleatoriedade bate com uma força absurda quando o tal terapeuta é,
além de um vampiro, um cowboy diretamente provindo do Velho Oeste
norte-americano.
O protagonista em questão é Sam, um vampiro cowboy americano que acabou
chegando à Alemanha e foi contratado como terapeuta por um outro sanguessuga
ancestral chamado Andromachos. Andy, como o tal patrão é chamado, não é
exatamente nosso paciente, mas um empreendedor que viu potencial na capacidade
de ouvir e de conversar de Sam e que o emprega para ajudar outros de sua
espécie.
A questão é que, enquanto Sam é um cara astuto e boa gente, ele nunca recebeu
uma educação especializada formal nessa área. É aí que entra o papel de Andy,
que também assume uma função de mentor e nos instrui a respeito de várias das
chamadas distorções cognitivas sobre as quais a jogabilidade básica desta
visual novel se sustenta. Durante a campanha, o jogador se depara não só com
um leque interessante de clientes, que trazem seus anseios para as sessões,
como também passa a refletir a respeito da história do próprio cowboy, que vai
sendo deflagrada aos poucos.
Estruturalmente, o título segue em ciclos de sessões que começam com Andy
servindo de terapeuta para Sam antes que o cowboy assuma as rédeas e comece a
receber seus clientes, como um cientista com transtorno de múltipla
personalidade; uma vampira renascentista que entrou em crise existencial
depois de assistir a Star Wars: Rise of Skywalker — opa,
Space Wars: Rise of Spacewalker —; um ator shakespeariano clássico
traumatizado com os palcos; e uma outra sanguessuga ancestral que se adaptou
aos tempos modernos como streamer.
Nota-se que, apesar de contar com uma escrita perspicaz, o humor de Vampire
Therapist não é tão absurdista como o de What We Do in the Shadows,
considerando o filme e a série algumas das inspirações mencionadas no próprio
material promocional.Ainda assim, a história é cativante e imersiva,
estimulando o jogador a continuar, uma vez passada a primeira sessão chata com
o Andromachos, quando a narrativa finalmente embala e começamos a não só a
conversar com o portfólio de clientes, mas também se afeiçoar ao protagonista
Sam.
Para não acusar Vampire Therapist de propaganda enganosa, é justo dizer que a
relação que a visual novel acaba estabelecendo com a série é a forma como
ambos conseguem, por vezes, se focar no cotidiano refletido pela
insignificância da superficialidade da vida eterna. É por isso que o jogo não
se preocupa em construir uma mitologia, ele não se importa com isso. O foco
está em abordar a futilidade de uma não vida e nos problemas banais do dia a
dia de cada um.
O Diário do Vampiro
Embora Vampire Therapist exiba com um aviso enorme (e necessário) de que
nada nele substitui a prática de uma terapia de verdade e que não capacita
ninguém a exercer o papel de um psicólogo, um de seus diferenciais está na
forma com que ele traz e adapta certos conceitos científicos reais da
psicologia e os implementa na jogabilidade básica.
Especificamente, trata-se de uma abordagem que envolve as distorções
cognitivas, uma linha de pensamento da chamada teoria cognitiva que,
explicando a grosso modo, serve para identificar deturpações que os
indivíduos possam fazer de si mesmos e de sua relação com a realidade no
intuito de saná-las e, assim, propiciar uma melhoria na sua saúde mental.
Desta forma, as distorções são um conjunto de vários conceitos, como
rotulação, falácia de controle, personalização, desqualificação de positivo
e outros, que servem como uma maneira de compreender os anseios do
cliente/paciente e ajudá-lo com os problemas apresentados.
Na prática, a nível de gameplay, as distorções cognitivas são aplicadas de
uma forma que remete bastante a
Ace Attorney, a série de advogados da Capcom, no sentido de que os clientes precisam
discorrer sobre todos os seus problemas e, então, cabe ao jogador fazer a
análise de uma fala (ou um grupo de falas) do depoimento em questão e
aplicar a dissociação cognitiva mais pertinente para a ocasião.
Embora Sam inicie o jogo com apenas algumas poucas leituras logo de início,
as sessões que ele tem com Andromachos logo fazem com que ele aprenda
outras, expandindo um pouco a jogabilidade. Para que consiga se lembrar, o
cowboy anota tudo em um caderninho que registra tanto as notas teóricas
quanto as observações pontuais sobre os clientes, além do diário particular
com as próprias observações sobre os acontecimentos do dia.
Tal caderno é facilmente um dos maiores charmes de Vampire Therapist, já que
ele ajuda a consolidar a personalidade de Sam como um protagonista
verdadeiramente interessante, além de servir como uma espécie de cola para o
jogador lembrar o que significa cada uma das distorções cognitivas
presentes, mesmo que seja possível selecionar apenas um grupo delas antes de
cada nova sessão, reduzindo propositalmente o leque de possibilidades e até
mesmo evitando algumas situações de contradição.
Ainda assim, não há punição. Se você erra alguma análise de distorção, basta
tentar de novo e tentar seguir a dica dada por Andromachos, que surge como
uma voz do além igual ao Professor Carvalho quando tentamos usar a bicicleta
dentro de algum lugar fechado. Isso se estende também a algumas das opções
narrativas que vez ou outra podem surgir: se você opta por seguir pelas
consideradas incorretas pelo jogo, ele simplesmente pede para tentar de novo
em vez de seguir o fluxo até algum momento de convergência da história.
Nesse aspecto, o que resta é uma sensação um pouco constrangedora pela
insistência em fazer com que o jogador tenha que escolher a resposta que o
jogo quer, bem como o sentimento de se sentir enganado por conta da falsa
possibilidade de escolha.
As cortinas se fecham, mas nem sempre elas abrem
Considerando que uma das partes mais interessante do gênero é a
possibilidade da concepção de narrativas multiformes, isto é, que se
destrincham em diversas linhas narrativas que dependem do caminho seguido de
forma arbitrária pelo leitor, a impressão que eu tenho é que o responsável
por Vampire Therapist não chegou a fazer alguma espécie de benchmarking com
outras VNs e entender como elas poderiam servir de aprendizado na manufatura
do título.
Por exemplo, algo de que eu senti uma falta sincera foi a ausência de um
acesso rápido ao log de diálogos, uma forma de rever rapidamente alguma fala
que passei com maior agilidade do que deveria. Esse é um elemento básico
para qualquer visual novel e a sua ausência acaba por prejudicar bastante a
solidez do produto. Também seria legal uma seção de galeria para dar uma
olhada nos personagens e cenários em detalhes.
Também há algumas decisões questionáveis de minigames que, por vezes,
costumam bugar e impedem a progressão; não trazem um tutorial a respeito do
que deve ser feito ou como a jogabilidade funciona (como a meditação, mesmo
depois do patch de correção); ou simplesmente não oferecem nenhum feedback
claro avisando que o objetivo foi cumprido ou fracassou, (como o minigame de
sugar o sangue da veia).
Carentes de otimização, as transições de tela são outro problema recorrente.
Representadas por uma sequência de cortinas abrindo e fechando como uma
forma de disfarçar os elementos sendo carregados, há uma desregulagem bem
perceptível e chata pelo fato de que não é incomum que certos assets falhem
ou surjam com um atraso bem maior do que o esperado.
O desenvolvedor já tomou ciência desse último problema e, a julgar pelos
logs de atualização, é a prioridade de correção, mas é importante ressaltar
que se trata de um revés persistente até a publicação da análise. Aliás,
Vampire Therapist segue em um processo constante de correção de bugs, mas
isso é incômodo e prejudicial para o produto. Afinal, ele é vendido como um
lançamento completo , sem estar em Acesso Antecipado ou coisa do tipo. Esse
monte de atualizações pontuais poderia ser evitado se houvesse um QA mais
apurado.
Tudo bem que ele é feito com baixo orçamento (informação retirada
diretamente do F.A.Q. disponível na Steam), mas é por causa desse tipo de
situação que os acessos antecipados existem: para aproveitar o feedback da
comunidade antes de considerar a aplicação suficientemente madura para um
lançamento definitivo.
Um belo vampirão sedutor e atraente, mas com um pedaço de sangue coagulado na presa
De modo geral, Vampire Therapist é muito bem-intencionado e a escrita
consegue ser envolvente. Você vê que o desenvolvedor solo que compõe a
Little Bat Games teve a sua ideia (que funciona muito bem, ressalta-se) e
investiu nela com carinho. Isso fica bem evidente no acabamento positivo das
artes dos personagens, na questão do diário do protagonista, na bagagem
teórica apresentada pela história e até mesmo na atuação de voz dos
personagens. Infelizmente, este é um produto que não consegue apresentar
solidez no desempenho, que foi prejudicado por conta de uma decisão de
negócios errônea — não optar pelo acesso antecipado. Ainda assim, vale a
pena ficar de olho no progresso das atualizações até que a visual novel
alcance sua maturidade.
Prós
- Embora o comecinho seja chato, a história se desenvolve de um jeito bem envolvente;
- A maior parte dos personagens são carismáticos e trazem problemas e anseios bem criativos;
- Direção de arte competente e atuações de voz bem charmosas;
- Aplicação interessante dos fundamentos da psicologia cognitiva.
Contras
- Falsa impressão de liberdade nas escolhas da narrativa;
- Os minigames mais atrapalham do que contribuem para a experiência geral;
- Otimização aquém do aceitável em determinados aspectos, como os trechos de transição entre as cenas;
- Carência de certos aspectos comuns para o gênero de visual novel, como um log com os diálogos passados.
Vampire Therapist — PC — Nota: 6.0
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Little Bat Games