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Análise: Vampire Therapist nos lembra que a imortalidade pode ser psicologicamente exaustiva

Um Vampiro cowboy aprende um novo ofício como psicoterapeuta em uma visual novel envolvente, mas com infelizes problemas de otimização.

em 01/08/2024


Quando a gente se depara com um nome como Vampire Therapist, o Terapeuta Vampiro, convenhamos que não há exatamente estranhamento, visto que boa parte da mídia aborda tais entidades de diversas formas. É uma proposta interessante, mas não exatamente distante de Entrevista com Vampiro, por exemplo. A aleatoriedade bate com uma força absurda quando o tal terapeuta é, além de um vampiro, um cowboy diretamente provindo do Velho Oeste norte-americano.

O protagonista em questão é Sam, um vampiro cowboy americano que acabou chegando à Alemanha e foi contratado como terapeuta por um outro sanguessuga ancestral chamado Andromachos. Andy, como o tal patrão é chamado, não é exatamente nosso paciente, mas um empreendedor que viu potencial na capacidade de ouvir e de conversar de Sam e que o emprega para ajudar outros de sua espécie.




A questão é que, enquanto Sam é um cara astuto e boa gente, ele nunca recebeu uma educação especializada formal nessa área. É aí que entra o papel de Andy, que também assume uma função de mentor e nos instrui a respeito de várias das chamadas distorções cognitivas sobre as quais a jogabilidade básica desta visual novel se sustenta. Durante a campanha, o jogador se depara não só com um leque interessante de clientes, que trazem seus anseios para as sessões, como também passa a refletir a respeito da história do próprio cowboy, que vai sendo deflagrada aos poucos.

Estruturalmente, o título segue em ciclos de sessões que começam com Andy servindo de terapeuta para Sam antes que o cowboy assuma as rédeas e comece a receber seus clientes, como um cientista com transtorno de múltipla personalidade; uma vampira renascentista que entrou em crise existencial depois de assistir a Star Wars: Rise of Skywalker — opa, Space Wars: Rise of Spacewalker —; um ator shakespeariano clássico traumatizado com os palcos; e uma outra sanguessuga ancestral que se adaptou aos tempos modernos como streamer.




Nota-se que, apesar de contar com uma escrita perspicaz, o humor de Vampire Therapist não é tão absurdista como o de What We Do in the Shadows, considerando o filme e a série algumas das inspirações mencionadas no próprio material promocional.Ainda assim, a história é cativante e imersiva, estimulando o jogador a continuar, uma vez passada a primeira sessão chata com o Andromachos, quando a narrativa finalmente embala e começamos a não só a conversar com o portfólio de clientes, mas também se afeiçoar ao protagonista Sam.

Para não acusar Vampire Therapist de propaganda enganosa, é justo dizer que a relação que a visual novel acaba estabelecendo com a série é a forma como ambos conseguem, por vezes, se focar no cotidiano refletido pela insignificância da superficialidade da vida eterna. É por isso que o jogo não se preocupa em construir uma mitologia, ele não se importa com isso. O foco está em abordar a futilidade de uma não vida e nos problemas banais do dia a dia de cada um.



O Diário do Vampiro

Embora Vampire Therapist exiba com um aviso enorme (e necessário) de que nada nele substitui a prática de uma terapia de verdade e que não capacita ninguém a exercer o papel de um psicólogo, um de seus diferenciais está na forma com que ele traz e adapta certos conceitos científicos reais da psicologia e os implementa na jogabilidade básica.

Especificamente, trata-se de uma abordagem que envolve as distorções cognitivas, uma linha de pensamento da chamada teoria cognitiva que, explicando a grosso modo, serve para identificar deturpações que os indivíduos possam fazer de si mesmos e de sua relação com a realidade no intuito de saná-las e, assim, propiciar uma melhoria na sua saúde mental.




Desta forma, as distorções são um conjunto de vários conceitos, como rotulação, falácia de controle, personalização, desqualificação de positivo e outros, que servem como uma maneira de compreender os anseios do cliente/paciente e ajudá-lo com os problemas apresentados.

Na prática, a nível de gameplay, as distorções cognitivas são aplicadas de uma forma que remete bastante a Ace Attorney, a série de advogados da Capcom, no sentido de que os clientes precisam discorrer sobre todos os seus problemas e, então, cabe ao jogador fazer a análise de uma fala (ou um grupo de falas) do depoimento em questão e aplicar a dissociação cognitiva mais pertinente para a ocasião.




Embora Sam inicie o jogo com apenas algumas poucas leituras logo de início, as sessões que ele tem com Andromachos logo fazem com que ele aprenda outras, expandindo um pouco a jogabilidade. Para que consiga se lembrar, o cowboy anota tudo em um caderninho que registra tanto as notas teóricas quanto as observações pontuais sobre os clientes, além do diário particular com as próprias observações sobre os acontecimentos do dia.

Tal caderno é facilmente um dos maiores charmes de Vampire Therapist, já que ele ajuda a consolidar a personalidade de Sam como um protagonista verdadeiramente interessante, além de servir como uma espécie de cola para o jogador lembrar o que significa cada uma das distorções cognitivas presentes, mesmo que seja possível selecionar apenas um grupo delas antes de cada nova sessão, reduzindo propositalmente o leque de possibilidades e até mesmo evitando algumas situações de contradição.




Ainda assim, não há punição. Se você erra alguma análise de distorção, basta tentar de novo e tentar seguir a dica dada por Andromachos, que surge como uma voz do além igual ao Professor Carvalho quando tentamos usar a bicicleta dentro de algum lugar fechado. Isso se estende também a algumas das opções narrativas que vez ou outra podem surgir: se você opta por seguir pelas consideradas incorretas pelo jogo, ele simplesmente pede para tentar de novo em vez de seguir o fluxo até algum momento de convergência da história.

Nesse aspecto, o que resta é uma sensação um pouco constrangedora pela insistência em fazer com que o jogador tenha que escolher a resposta que o jogo quer, bem como o sentimento de se sentir enganado por conta da falsa possibilidade de escolha.



As cortinas se fecham, mas nem sempre elas abrem

Considerando que uma das partes mais interessante do gênero é a possibilidade da concepção de narrativas multiformes, isto é, que se destrincham em diversas linhas narrativas que dependem do caminho seguido de forma arbitrária pelo leitor, a impressão que eu tenho é que o responsável por Vampire Therapist não chegou a fazer alguma espécie de benchmarking com outras VNs e entender como elas poderiam servir de aprendizado na manufatura do título.

Por exemplo, algo de que eu senti uma falta sincera foi a ausência de um acesso rápido ao log de diálogos, uma forma de rever rapidamente alguma fala que passei com maior agilidade do que deveria. Esse é um elemento básico para qualquer visual novel e a sua ausência acaba por prejudicar bastante a solidez do produto. Também seria legal uma seção de galeria para dar uma olhada nos personagens e cenários em detalhes.




Também há algumas decisões questionáveis de minigames que, por vezes, costumam bugar e impedem a progressão; não trazem um tutorial a respeito do que deve ser feito ou como a jogabilidade funciona (como a meditação, mesmo depois do patch de correção); ou simplesmente não oferecem nenhum feedback claro avisando que o objetivo foi cumprido ou fracassou, (como o minigame de sugar o sangue da veia).

Carentes de otimização, as transições de tela são outro problema recorrente. Representadas por uma sequência de cortinas abrindo e fechando como uma forma de disfarçar os elementos sendo carregados, há uma desregulagem bem perceptível e chata pelo fato de que não é incomum que certos assets falhem ou surjam com um atraso bem maior do que o esperado.




O desenvolvedor já tomou ciência desse último problema e, a julgar pelos logs de atualização, é a prioridade de correção, mas é importante ressaltar que se trata de um revés persistente até a publicação da análise. Aliás, Vampire Therapist segue em um processo constante de correção de bugs, mas isso é incômodo e prejudicial para o produto. Afinal, ele é vendido como um lançamento completo , sem estar em Acesso Antecipado ou coisa do tipo. Esse monte de atualizações pontuais poderia ser evitado se houvesse um QA mais apurado.

Tudo bem que ele é feito com baixo orçamento (informação retirada diretamente do F.A.Q. disponível na Steam), mas é por causa desse tipo de situação que os acessos antecipados existem: para aproveitar o feedback da comunidade antes de considerar a aplicação suficientemente madura para um lançamento definitivo.  



Um belo vampirão sedutor e atraente, mas com um pedaço de sangue coagulado na presa

De modo geral, Vampire Therapist é muito bem-intencionado e a escrita consegue ser envolvente. Você vê que o desenvolvedor solo que compõe a Little Bat Games teve a sua ideia (que funciona muito bem, ressalta-se) e investiu nela com carinho. Isso fica bem evidente no acabamento positivo das artes dos personagens, na questão do diário do protagonista, na bagagem teórica apresentada pela história e até mesmo na atuação de voz dos personagens. Infelizmente, este é um produto que não consegue apresentar solidez no desempenho, que foi prejudicado por conta de uma decisão de negócios errônea — não optar pelo acesso antecipado. Ainda assim, vale a pena ficar de olho no progresso das atualizações até que a visual novel alcance sua maturidade.

Prós

  • Embora o comecinho seja chato, a história se desenvolve de um jeito bem envolvente;
  • A maior parte dos personagens são carismáticos e trazem problemas e anseios bem criativos;
  • Direção de arte competente e atuações de voz bem charmosas;
  • Aplicação interessante dos fundamentos da psicologia cognitiva.

Contras

  • Falsa impressão de liberdade nas escolhas da narrativa;
  • Os minigames mais atrapalham do que contribuem para a experiência geral;
  • Otimização aquém do aceitável em determinados aspectos, como os trechos de transição entre as cenas;
  • Carência de certos aspectos comuns para o gênero de visual novel, como um log com os diálogos passados.
Vampire Therapist — PC — Nota: 6.0
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Little Bat Games 

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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