O jogo é uma aventura pela República Americana, uma versão alternativa dos EUA que se separa da nossa realidade em novembro de 1963, quando, em vez do presidente Kennedy, sua mulher Jacqueline é quem morre assassinada. O resultado é a criação da Justiça, uma estrutura governamental que se perde ao longo dos anos e vem a se tornar uma autocracia neofascista, e da Puritânia, um grupo tecnocrata que se separou da República e que controla a região da Califórnia, agora chamada Pacífica.
Nossos heróis são um grupo de criminosos “Anormais” de todos os tipos, juntos em uma importante missão: trazer uma carga misteriosa, roubada da Puritânia, a um grupo de resistência no leste do Canadá, enquanto são caçados pela Justiça por seus poderes. Para conseguir um visto sem levantar suspeitas, eles fingem ser uma banda punk; logo, além da viagem, também devem parar de vez em quando e tocar em shows.
Se parece coisa demais, é porque é! Talvez o maior problema de Dustborn seja o tanto de coisas que o jogo quer fazer ao mesmo tempo — política, ação, música, sobrenatural —, e para as quais, honestamente, a escrita não tem a competência necessária; por vezes, nem a gameplay consegue carregar. Há muito a ser dito, então lá vamos nós!
Da poeira nasceste, à poeira retornarás
Dustborn é a história de Pax, uma jovem Anormal com o poder das palavras: com suas habilidades, ela consegue influenciar pessoas e potencializar sentimentos negativos. Abandonada pela família e sozinha em Pacífica, ela sobreviveu por muito tempo de bicos e pequenos golpes que aplicava com seus poderes (ou “Vox”), até ouvir falar da missão em que embarcaria mais tarde: uma aventura que lhe daria muito dinheiro, além da possibilidade de entender melhor seu Vox.
Na companhia de Sai, melhor amiga; Noam, ex-amante; Theo, enviado dos contratantes do grupo; e um robô sem personalidade do qual Pax desconfia, ela deixa tudo para trás na procura de sua nova vida. No caminho, a equipe segue adicionando novas pessoas: na maioria, outros Anormais, que são um grupo marginalizado pela Justiça e chamados de “Desviados” por quem tem medo dos poderes que possuem.
Aqui é onde está o maior ponto forte de Dustborn: o elenco. A dinâmica grupal é sólida e convincente; e, como indivíduos, os personagens brilham. Alguns são introduzidos muito tarde e não têm a chance de criar raízes (destaque dado para uma certa menina que é tratada como importante, mas jogada para escanteio quando finalmente aparece), mas a maioria tem bom desenvolvimento.
O dinamismo das relações apresentadas é potencializado pela mecânica de conversa, que permite a Pax modelar seus relacionamentos com o grupo. Por exemplo, Noam pode ter foco maior em voltar para sua terra natal, Hong Kong, ou em reatar o romance com a protagonista, dependendo das conversas que tiver com ela. Apesar das opções limitadas (três para cada personagem, e alguns não têm nenhuma), é um jeito interessante de dar agência ao jogador.
Essa agência também aparece no sistema de escolhas. Apesar de ser uma narrativa linear, Dustborn está recheado de pequenas decisões a serem feitas — algumas eu nem sequer percebi como coisas que eu poderia ter mudado antes do resumão de fim de capítulo, o que é um bom incentivo para rejogabilidade. Como história estilo “escolha sua própria aventura” e focada nos personagens, o jogo é um sucesso.
Overdose de informação…
Ironicamente, grande parte da história de Dustborn refere-se a um fenômeno chamado “Transmissão”: um evento 30 anos antes em que um sinal emitido do centro da República Americana espalhou um fluxo poderoso de informação pelo país, o que gerou os poderes dos Anormais. O resumo da introdução deste texto prova: o mesmo problema atormenta o próprio jogo. Fala-se em coisas demais e explica-se muito pouco.
Pior ainda: o pouco que Dustborn tem a dizer é diretamente explicado pela narrativa, como se os roteiristas não confiassem na capacidade cognitiva da audiência. As músicas que Pax escreve para o minijogo de ritmo (mais sobre abaixo) são o exemplo mais descarado disso: a principal, “We’re the Dustborn”, é sobre o próprio grupo viajante e declara “nós somos os alienígenas, nós somos os refugiados”, escancarando a metáfora para imigrantes ilegais de um jeito que me fez dizer “quem foi que deixou ela escrever a letra?!”.
Como grande fã de NieR:Automata, talvez meus padrões para jogos com conteúdo político estejam altos demais, mas o que realmente me decepciona é que absolutamente nada aqui é novo. Qualquer pessoa que venha jogar Dustborn de boa-fé concorda que ditaduras que caçam grupos minoritários por preconceito são algo ruim, e esse é o máximo de comentário fornecido. Os personagens, ainda por cima, são descritos como “revolucionários” em certo ponto, mas realmente não é o caso: a maioria só quer sobreviver, incluindo Pax.
Além da política, o jogo também se presta a apresentar uma origem bastante esotérica para os poderes dos Anormais. Um dos principais ganchos da história é a busca pela origem da Transmissão e dos Ecos, manifestações da desinformação que infectam a mente de pessoas. Em geral, apesar de servirem aos temas da narrativa até certo ponto, achei que grande parte foi supérflua, dizendo mais respeito à ideia de um mistério do que ao mistério em si.
…e de modos de jogo
Dustborn também sofre com os elementos extras do gameplay, além das conversas e decisões que guiam a história. As sequências de combate são rasas e desinteressantes, como se fossem apenas uma tentativa para apelar aos haters do gênero “simulador de andar”; como a maioria é contra os oponentes políticos do grupo, me fazem pensar novamente que esse ângulo deveria ter recebido menos atenção, se acabou sendo tão insosso. Ativar o Vox durante as lutas é particularmente chato: por vezes, nem funcionava para mim.O jogo de ritmo também foi um problema durante as partes iniciais. Para um título com tantas opções de acessibilidade, incluindo um “modo história” para trivializar o combate, muito me surpreendeu não ter recebido uma opção para tornar esses segmentos mais fáceis — principalmente porque eles influenciam na narrativa, com os personagens constantemente comentando se você jogou bem ou não.
Por fim, o pior problema da jogabilidade: a mecânica ao redor do ME-EM, aparelhinho que permite coletar Ecos para transformá-los em novas habilidades. Ao mesmo tempo, o jogo espera que você explore os ambientes e consiga mais opções de Vox, mas pune o jogador caso as encontre cedo demais.
A descrição das habilidades inclui com qual personagem você pode fazer um combo… o que inclui revelar quem vai se juntar ao grupo antes da hora. Também existem tutoriais forçados para a habilidade que o jogo espera que você tenha desbloqueado naquele capítulo, independentemente de você já a ter encontrado e utilizado antes.
Peraí, o que foi que você disse?
Talvez o pior ponto de Dustborn é algo que não é sequer culpa dos desenvolvedores. Na versão que recebi para análise, ainda não finalizada, a localização para o português brasileiro está claramente incompleta, entre trechos inteiros não traduzidos e erros de ortografia — e a experiência inteira sofreu por isso.Um dos exemplos das falhas da localização está no gênero de certos personagens. Houve a decisão de utilizar a linguagem neutra, principalmente para se referir a Noam, uma pessoa não-binária que usa o “they” singular no inglês original. Por si só, não é um problema: o que complica as coisas é que existem diversos trechos do jogo que tropeçam e usam “ele” ou “ela”. Até mesmo Theo e Sol, homens cisgêneros, são chamados de “ela” em dados momentos.
Também existem pontos em que o “they” singular é confundido com o “they” plural em geral — o que engata no próximo problema, que é a falta de entendimento do contexto. Há um momento em que se fala em alguém ser “Justice bad”, ou seja, tão ruim quanto a Justiça; a localização diz que a pessoa seria “ruim pelo conceito da Justiça”, uma frase completamente diferente. O mais absurdo foi quando a palavra “bat”, referindo-se a um taco de beisebol, virou a outra tradução: “morcego”.
A versão em português também não consegue decidir se usa os termos originais ou as alternativas localizadas. O nome “Anormal”, que andei utilizando durante este texto, só está presente durante as primeiras horas: mais tarde, vira “Anomal”, em inglês, e nunca mais volta ao português, uma decisão bizarra. Outros exemplos, como a gangue de motociclistas “Horned Riders”/”Minotoqueiros”, são usados alternadamente, por algum motivo.
Em geral, para um jogo sobre o poder das palavras, Dustborn é absurdamente mal localizado. Existe a possibilidade de a versão que eu joguei receber mais revisões e correções antes do lançamento oficial em 20 de agosto, mas, como as coisas estão, a ideia de pagar R$ 150 por um serviço tão malfeito, que depende de você entender inglês (assim derrotando todo o ponto de uma localização), é risível.
Muita areia para o próprio caminhãozinho
Dustborn é uma boa narrativa, com bons personagens, mas que se perdeu completamente querendo ser mais do que precisava. Suas melhores ideias acabam sendo enterradas em uma torrente de elementos mal desenvolvidos que, ao mesmo tempo, tomam tempo demais da história. Teria sido um jogo estilo Life Is Strange perfeito, se não quisesse tanto provar a própria existência para pessoas que nunca vão se interessar.
Prós
- História dinâmica, cheia de pequenas escolhas que ajudam a montar narrativas únicas;
- Personagens interessantes e tridimensionais.
Contras
- Escrita explica demais o próprio subtexto, mas falha em esclarecer vários detalhes do mundo ao redor;
- Comentário político é muito mais do mesmo;
- Não há como alterar a dificuldade do jogo de ritmo, cujo resultado afeta a progressão da história;
- É muito fácil desbloquear conteúdo antes do previsto e receber spoilers;
- Localização inconsistente, incompleta e, por vezes, até incorreta.
Dustborn — PC/PS5/XSX/PS4/XBO— Nota: 5.0
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Quantic Dream