Análise: Deathbound é um soulslike brasileiro único com um ótimo sistema de grupo

Sete personagens de classes e ideologias diferentes, compartilhando um único corpo e uma interessante dinâmica de revezamento.

em 07/08/2024

O estúdio brasileiro Trialforge passou sete anos trabalhando em Deathbound, um soulslike com um conceito interessante: um grupo de sete personagens que habitam um único corpo e se manifestam alternadamente. Agora que finalmente o jogo está entre nós, vejamos como essa ideia funciona na prática.

Recusados pela Morte

No sinistro mundo de Ziêminal, a Vida e a Morte são duas deusas adoradas pelos povos. São elas que dão e tomam a Essência das pessoas, isto é, os espíritos. A Vida concedeu vida eterna às pessoas, mas a imortalidade não durou para sempre e foi retirada de súbito. 

Em estilo pós-apocalíptico, a civilização estava em um estágio similar ao nosso, mas, agora, tudo o que resta dessa época são as ruínas de um passado que já morreu. A cultura reassumiu estilos de vida rústicos, com inspirações medievais em trajes, armas, edifícios e instituições.



A Igreja da Morte persegue aqueles a quem chama de pagãos para purificá-los nas chamas. Nem todos os adoradores da Morte são fanáticos assassinos. Alguns povos a veneram em associação à Vida, acreditando que as deusas são irmãs, não inimigas.

Os seguidores da Vida, que habitam os escombros da metrópole de Acrátia, também têm suas discordâncias e se dividem em facções. Uma delas, os essenciamancers, realizam experimentos com os restos da tecnologia e da magia dos antigos, em busca da imortalidade perdida há tanto tempo. Quando o Exército da Morte invade Acrátia, os essenciamancers liberam suas numerosas cobaias monstruosas pela cidade para impedir o avanço do inimigo.



É nessa guerra que um dos comandantes, o cavaleiro fundamentalista da morte Therone, perde a vida em combate em um misterioso laboratório no centro da cidade. Inesperadamente, porém, ele retorna à vida e, entendendo que sua deusa o recusou para que cumpra um papel, ele prossegue na missão, até que se vê atraído por outro cadáver.

Aproximando-se do corpo, Therone absorve a Essência dele, de uma mulher, e vê seu corpo ser invadido pela consciência dela. Inexplicavelmente, os dois terão que seguir em frente e cooperar apesar de suas ideologias opostas, se quiserem descobrir que maldição os uniu em um só corpo e que os impede de morrer.



Velho mundo novo

Assim, a campanha se passa em Acrátia, e outras Essências improváveis também entrarão para o grupo de um corpo só. Ainda que as áreas do jogo tenham aspecto labiríntico, dando voltas em locais complexos e seguindo o design de abrir atalhos para retornar, elas são acessadas em sequência, formando uma estrutura de jogo que avança linearmente.

Os cenários têm arquitetura similar à das cidades grandes de nosso tempo, uma mistura que, de vez em quando, pode causar algum estranhamento ao colocar uma estética de dark fantasy em meio a ambientes prosaicos. Assim, espere para ver monstros e guerreiros de armadura e espada em um hospital, uma área industrial, túneis de metrô, ruas cobertas por vegetação e carros abandonados, e até um estádio esportivo (imagine se jogadores de futebol usassem machetes em campo. É isso.).




Mesmo com essa ressalva artística, o visual em geral é muito bem-feito e detalhado, contando com belos efeitos de iluminação para incrementar a atmosfera opressiva dessa cidade mórbida. A performance normalmente é fluida, mas houve algumas quedas, que não foram constantes nem me atrapalharam ativamente.

A linearidade de que falei combina com a proposta narrativa de seguir uma trama na qual o passado e o contexto maior são gradualmente revelados. Ainda temos o conceito soulslike de colocar fragmentos de história nas descrições de itens, mas o principal é contado diretamente por meio de diálogos entre os personagens e de memórias encontradas por eles. Assim, Deathbound apresenta interações complexas entre personagens e delineia uma narrativa mais clara que as dos jogos que o inspiraram.

Nesse ponto, quero destacar o bom trabalho da dublagem (apenas em inglês), que expressa e distingue muito bem as diferentes personalidades e origens do elenco principal. No entanto, nem os protagonistas possuem animações de expressões faciais, criando um contraste que quebra parte da imersão construída pela performance das vozes. Piscar de vez em quando, abrir a boca e franzir o cenho já ajudaria a tirar o aspecto de bonecos.

Para desvendar os mistérios, esses personagens terão que lutar.



Pelo Alento, pela Guerra, pela Paz

Por um lado, as lutas em Deathbound seguem o padrão soulslike: ataques específicos nos botões de ombro, esquiva, defesa e aparada, sempre observando os padrões de ataques do oponente à procura das brechas ideais.

O gerenciamento de Energia também está aqui, claro, mas com uma guinada própria que a associa ao dano recebido. Isto é, se você está ferido, sua energia máxima é reduzida na mesma proporção, aumentando o impacto de sofrer ataques. Enquanto a ideia em si faz sentido e é interessante para o desafio, a representação gráfica dela não tem o mesmo sucesso, sendo um tanto confusa. Isso ocorre porque tanto Saúde quanto Energia são mostradas no mesmo medidor e com diferentes cores, que aumentam e diminuem de acordo com o consumo e com a recuperação.



Assim, mesmo após estar jogando há várias horas, ainda era recorrente que eu me confundisse, ao ser atingido, sobre quanto dano recebi e quanto de Saúde ainda me restava, para mais ou para menos. Isso ocorria principalmente contra chefes, quando minha atenção estava voltada contra as aberrações monstruosas que queriam me matar, não para o losango com vários tons móveis de verde e vermelho no canto da tela.

O combate em si é um tanto pesado, às vezes lento, o que é sentido principalmente na esquiva. Ela é muito útil para ser usada por um triz, eficientemente evitando o dano em um espectral efeito de câmera lenta. No entanto, errar o timing pode significar a morte, ainda mais se inadvertidamente ficamos encurralados no canto do cenário ou atrás de algum objeto inquebrável, como presas fáceis para os chefões.

Levei um tempo para me acostumar com esse sistema, mas, quando peguei o jeito, vi que funciona. Ainda assim, senti que várias mortes minhas contra chefes, mesmo quando eu estava lutando bem, decorreram de pequenos erros meus de movimento e esquiva, o que me fez sentir que o tal peso da movimentação é menos responsivo e mais punitivo do que deveria, induzindo-me a tentar jogar de forma mais segura.

Por outro lado, a estrela do combate é realmente o sistema de transformação, como veremos a seguir.



Hora de morfar!

Vou admitir: eu sou o tipo de jogador de soulslikes que adora o gênero, mas tende à repetição de personagens (para dar uma ideia, eu platinei a trilogia Dark Souls usando o mesmo tipo de arma, a Estoc). Criar e manter um padrão de ação é uma zona de conforto que leva à baixa experimentação de outras abordagens. É claro que essa é uma forma válida de jogar, sem ser um problema em si mesmo, mas destaco essa característica minha para melhor enfatizar como Deathbound foi competente em me tirar do comodismo para aproveitar devidamente o sistema de grupos que é a alma do jogo.

A ideia é a seguinte: sete personagens morreram em Acrátia e suas Essências são absorvidas em um mesmo corpo, com suas consciências se comunicando simultaneamente. O corpo, porém, é apenas um, então apenas um indivíduo pode se manifestar por vez, alternando o elenco com o toque de um botão.

Toda a gameplay é feita ao redor desse conceito, conferindo grande coesão entre narrativa e jogabilidade. Cada personagem é diferente, encontrados um por um ao longo da campanha. Vejamos os três primeiros.



O Cruzado da Morte, Therone, é um guerreiro de espada e escudo, capaz de realizar aparadas e ripostas, clássicos do gênero. A assassina Anna tem uma faca rápida e uma besta para ataques à distância, além de poder realizar ataques pelas costas. O essenciamancer Haodai tem magias de veneno para atacar de longe e imbuir as armas dos companheiros.

Dá para ver que os componentes desse trio são bem distintos entre si, não é? Isso poderia levar as pessoas a escolher apenas um deles, contrariando a proposta do jogo. Em vez de forçar a usar seu elaborado sistema, a Trialforge usou uma gama de incentivos para mostrar os benefícios de aderir à alternância entre classes.



O primeiro é que montamos um grupo de quatro personagens e cada um deles tem sua própria barra de vida, o que aumenta a sobrevivência do grupo como um todo. No entanto, se um deles morrer, todos morrem.

O principal meio de cura também requer rotatividade: sempre que o personagem ativo causa dano, os outros recuperam Saúde. O clássico item de cura renovável está presente, mas ele tem um porém que o torna um recurso a se pensar duas vezes antes de usar: restaura 80 de Saúde para o ativo ao custo de abater 40 de Saúde dos inativos.

“Ah, mas eu quero usar sempre o pessoal que ataca a longa distância”. Não é recomendável. Anna tem um limite de 12 setas renováveis a cada descanso e precisa parar para recarregar a cada três usos.



“Então vou ficar só mandando bola de veneno com Haodai”. Também não vai. A essenciamancia tem um custo de sobreaquecimento e cada magia eleva o medidor. Uma vez que ele enche completamente, o calor explode, uma faca de dois gumes que causa dano ao próprio mago e a quem estiver próximo. Como é preciso esperar o sobreaquecimento diminuir, é perfeitamente lógico aproveitar para usar outro personagem enquanto isso.

E não é só isso. Repare que na parte de baixo da tela há um medidor de Sync, isto é, sincronia entre os personagens, que aumenta sempre que atacamos e também com outros requisitos. Eles permitem executar ataques mais fortes, chamados Morphstrikes: ao atacar com um personagem, se mudar rapidamente para outro, este realizará um ataque na sequência. Se a barra de Sync estiver cheia, o efeito consumirá mais pontos para um golpe mais poderoso.



Ainda tem mais: a combinação de personagens concede bônus e penalidades na forma de Sinergias e Conflitos, de acordo com a afinidade entre a visão de mundo de cada um, o que dá mais peso às nossas escolhas de grupos. Portanto, os personagens de Deathbound são fixos, mas a construção de builds variadas, tão importantes para RPGs de ação, se faz presente na configuração do próprio grupo de acordo com as prioridades de quem joga.

Existem várias outras nuances, mas acho que as explicações já foram o bastante para mostrar como Deathbound consegue criar um refinado sistema de revezamento de personagens que leva a combates táticos e dinâmicos em que pensamos mais de um passo à frente: golpear com um para curar os outros, aproveitar o Sync para encaixar um Morphstrike e se afastar para usar ataques à distância, por exemplo.

Ligados pela morte

O maior mérito de Deathbound é a boa execução de sua proposta de revezar múltiplos personagens em meio ao combate. Tanto a narrativa como os sistemas giram em torno desse conceito, o que dá à obra uma identidade coesa que a diferencia de outros soulslikes. Ainda que algumas questões estéticas e práticas limitem parte da experiência, é um jogo que certamente recomendo aos apreciadores do gênero.



Prós

  • O sistema de revezamento de grupo é muito bem implementado, com incentivos para variar os personagens;
  • As mecânicas únicas conferem uma sensação de identidade com gameplay diversificada do restante do gênero, com boa dinâmica entre risco e recompensa;
  • Visuais atraentes e atmosféricos, especialmente na iluminação;
  • Narrativa mais elaborada que a média do gênero soulslike, com boas soluções para mostrar os protagonistas de forma individual e de criar interações internas entre eles durante a jornada, com diferentes visões de mundo;
  • A dublagem em inglês realça as personalidades e adiversidade cultural do grupo;
  • Textos em português brasileiro.

Contras

  • Os cenários inspirados na sociedade contemporânea dão ar prosaico a trechos dessa história de fantasia sombria e podem criar contrastes estéticos estranhos;
  • A movimentação de combate é pesada, tornando a esquiva menos responsiva do que deveria e punindo os erros de circular pela arena com mais severidade, como quando ficamos nos cantos do cenário ou barrados entre objetos.
  • A ausência de animações faciais mínimas atrapalha a boa performance de atuação dos personagens;
  • Os medidores de Saúde e Energia funcionam em um único diagrama, sendo confusos de acompanhar em situações nas quais precisamos nos concentrar mais no combate.
Deathbound — PC/PS5/XSX — Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela Tate Multimedia

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
Este texto não representa a opinião do GameBlast. Somos uma comunidade de gamers aberta às visões e experiências de cada autor. Escrevemos sob a licença Creative Commons BY-SA 3.0 - você pode usar e compartilhar este conteúdo desde que credite o autor e veículo original.