Análise: Tales of Kenzera: ZAU compensa sua simplicidade com beleza e empatia

Contos de luto em uma África Oriental mitológica.

em 26/07/2024

Em uma cidade afrofuturista, o jovem Zuberi sofre com a inesperada morte do pai. Sua mãe, que está grávida, dá a ele um livro que o amado escreveu em seus momentos finais da doença. Folheando a história, Zuberi se depara com o conto de luto e fantasia de um xamã que, ao ficar órfão, faz uma proposta para o próprio deus da morte. Este é o conto de Zau.



Senta que lá vem a história

Tales of Kenzera: ZAU é um jogo criado pelo ator inglês Abubakar Salim, que trabalha em séries de televisão (ele está em House of Dragons, por exemplo) e deu voz ao protagonista de Assassin’s Creed Origins. Quando ia começar sua carreira, Salim perdeu o pai para o câncer, o que iniciou um longo e amargo processo de luto.

Uma das formas de lidar com isso foi expressar os sentimentos em uma homenagem e, mesmo sem experiência na área, ele decidiu fazer isso na forma de videogame. O pai era engenheiro de software e gostava de jogar, criando no filho algumas de suas memórias mais antigas na frente de uma tela, com Sonic e Mario. Para isso, Salim fundou uma desenvolvedora em 2019, a Surgent Studios, e fez uma parceria de financiamento e publicação com a linha EA Originals da Electronic Arts.

Aprofundando a homenagem e o caráter pessoal do jogo, ele decidiu contar uma história relacionada a seu avô, que era um curandeiro tradicional africano, e fez do protagonista, Zau, um jovem xamã que lamenta a morte do pai, também xamã, e faz um acordo com o deus da morte, Kalunga: para ter o seu Baba de volta, o rapaz vai encontrar e dar destino a três grandes espíritos que recusaram a morte.



O próprio Kalunga acompanhará Zau em toda a jornada, fazendo par nos diálogos, na construção das personalidades de ambos e no amadurecimento do xamã. A interação entre eles é muito bem feita e significativa, sendo o principal motor narrativo e emocional e marcada por uma dublagem bastante envolvente — Salim interpreta o herói, é claro. Ao longo do jogo, encontramos Ecos, trechos de histórias e memórias narradas por Zau, também totalmente dubladas.

A ambientação não é baseada em um local específico, mas na cultura bantu, um tronco linguístico que ramificou pela África subsaariana e inclui Angola e Congo, de onde foram raptadas a maior parte das pessoas escravizadas trazidas ao Brasil. No caso de Kenzera, a inspiração está na parte de língua suaíli, na parte oriental do continente, onde ficam o Quênia e a Tanzânia.

Nesse ponto, o jogo aproveita para inserir um importante traço cultural e oferece opção de dublagem em suaíli, realizada por um estúdio queniano. Como alternativa ao inglês, essa é uma boa escolha para quem gosta de imersão linguística.



Diversos nomes míticos surgem na aventura, com lendas e criaturas daquela região. Basta jogar os nomes dos chefes na internet para ver suas origens folclóricas, como o pássaro trovão Impundulu, a coruja devoradora de almas Kikiyaon e o macaco traiçoeiro Ga-Gorib. 

É isso que define Tales of Kenzera: ZAU: uma história que guarda histórias. Essa característica é explícita desde a abertura, quando controlamos Zuberi brevemente em meio ao seu melancólico turbilhão da perda.

Pessoalmente, a história foi muito significativa para mim ao representar o luto como parte do crescimento, de uma forma honesta e profunda, sem sentimentalismo barato. Senti a empatia comunicada pelo jogo porque eu também perdi meu pai ainda na infância, e minha mãe também estava grávida de meu irmão quando isso aconteceu. O luto é uma jornada que não tem um fim claro, mas que precisa ser percorrida.

Chega de histórias, vamos ao game design.



Tímido, mas eficaz

Quase todos os aspectos da execução de Kenzera são marcados por altos e baixos, então é possível ver o copo meio vazio ou meio cheio. No geral, para mim, o copo foi meio cheio.

O design de mundo, por exemplo, é muito linear, traçando um caminho sem muitas alternativas, ainda que sempre use o conceito de dar a volta em si mesmo, criando uma sensação de coesão. Há ramificações que levam a colecionáveis e desafios divertidos que têm melhorias e amuletos como recompensa, mas, em quase toda a campanha, é o próprio jogo quem guia a jornada.

Para mim, que gosto muito de exploração, essa simplicidade deixou a desejar, mas pode ser um aspecto positivo para fazer de Kenzera uma porta de entrada para os metroidvanias.



Por outro lado, há dois pontos que compensam parte dessa limitação: a movimentação e o visual dos cenários.

Indo direto ao ponto, o protagonista começa sua aventura já com habilidades clássicas do gênero: o pulo duplo, o pulo de parede e o dash, evitando cair em um começo preguiçoso como outros títulos. Aqui há um porém: o início é muito interrompido por diálogos. Isso é justificado pela pertinência da narrativa para fazer do jogo o que ele é, mas é inegável que atrapalha o fluxo da gameplay nas primeiras uma ou duas horas.

Já dos visuais, tenho elogios e uma ressalva. Não sou um grande apreciador do estilo de gráficos 2.5D, mas Kenzera me convenceu do começo até o fim. Cada nova área é vívida, detalhada e profunda em seu campo de visão, conferindo uma sensação de realmente explorar terras inóspitas longe da cidade. Os efeitos e partículas são muito bonitos e tudo flui suave e agilmente.



Minha única ressalva nesse campo é o rosto dos modelos de personagens em 3D, especialmente Zau. Os olhos grandes dele dão um ar cartunesco e quase infantil, que não combina com a voz grave dos dubladores, nem com as ilustrações de diálogo, que são expressivas e encaixam muito melhor com os personagens. Ainda bem que vemos muito mais desses bons desenhos durante a campanha do que os estranhos closes de personagens.

Ou seja: o mundo de Kenzera como um todo é simples, mas eficaz e muito belo. Copo meio cheio.

Cadê os inimigos que deviam estar aqui?

O combate cai na mesma categoria. Tomando apenas o sistema de luta, posso dizer que é muito bom, com duas fontes de poderes diferentes para alternar, cada uma com sua própria pequena árvore de habilidades, além da importância do dano elemental e detalhes interessantes, como ataques especiais e a mecânica de acertar o timing da recarga dos ataques à distância para ganhar um bônus de dano temporário.



O problema aqui está do outro lado: os oponentes. São apenas 12 tipos, contando com os quatro chefes! Com isso, passa-se a campanha inteira lutando contra ondas dos mesmos oito tipos de inimigos comuns, vez após vez. Para variar ao menos um pouquinho, eles podem vir com proteções elementais que exigem adequar a abordagem. Logo, o combate não é variado, mas consegue divertir e ser dinâmico o suficiente para não se tornar cansativo demais.

Algo chato é que Zau sofre da “síndrome de Megaman”, também conhecida como alergia a espinhos, que causa morte instantânea ao contato com coisas pontiagudas. Normalmente, isso não atrapalha, mas há alguns momentos em que precisamos repetir trechos apenas por tocar de leve em um obstáculo desses, o que parece desnecessário.



Felizmente, o sistema de salvamento de ZAU é bastante generoso e acontece automaticamente de tempos em tempos, sem haver um slot para fazê-lo manualmente. Portanto, cada morte leva a pessoa de volta a um ponto muito próximo e nunca parece uma perda de progresso considerável.

Esse não é o único aspecto em que o jogo segura a mão de quem joga, preocupado em evitar fontes de frustrações. Os objetivos atuais ficam permanentemente na tela e, toda vez que a vida do xamã está baixa, uma mensagem diz que ele precisa se curar. Isso é desnecessário, uma vez que há outro grande alerta visual que torna toda a borda da tela vermelha. Esses recursos não são problemas em si mesmos e podem ajudar os menos acostumados, mas ficou faltando uma opção de desligá-los para quem pode considerá-los distrações intrusivas.



Por outro lado, o mapa não recebeu esforços semelhantes e tem um sistema que não contribui para a exploração mais apurada: ao chegar a uma área, todo o mapa dela é revelado de uma vez, sem distinguir os locais por onde já passamos daqueles que ainda vamos vasculhar. Isso compromete a eficiência do backtracking, conceito importante para a estrutura de metroidvanias que incentiva o retorno a locais que se tornam acessíveis com uma nova habilidade.

Seria muito fácil resolver a questão: é muito comum o uso de marcadores personalizados como recursos de memória e planejamento, mas ZAU os deixou de fora. A bem da verdade, não se trata de um jogo repleto de conteúdos alternativos e segredos, mas ainda encontrei motivos suficientes para querer poder usar marcadores.



A maior parte do mundo é bastante linear. As áreas dão voltas em si mesmas e abrem alguns atalhos, mas o trajeto principal é muito bem definido, permitindo algumas bifurcações aqui e ali para encontrar Ecos e fontes de energia espiritual. O mais interessante é quando as ramificações levam a desafios de plataforma e de lutas, recompensando o jogador com melhorias e amuletos.

Fora isso, o sistema de mapas e os poucos colecionáveis realmente escondidos ou surpreendentes não incentivam a explorar cada cantinho. No fim das contas, a brevidade linear de Kenzera acaba servindo para atenuar esses pontos negativos e permite focar nos pontos fortes narrativos e estéticos, já explicados acima.

Os contos de três órfãos

Com altos e baixos, Tales of Kenzera: ZAU consegue fazer sua experiência valer a pena e ainda se destaca em alguns pontos, especialmente na narrativa profundamente humana e na arte dos cenários. A simplicidade da campanha é uma faca de dois gumes: pode agradar iniciantes, mas não deve satisfazer quem deseja desafio e exploração mais profundos.




Prós

  • A história tem algo a dizer sobre o luto e é bem representada por seus personagens e diálogos;
  • A ambientação cultural bantu foge do comum em jogos do tipo;
  • Dublagens excelentes em inglês e no idioma da cultura que deu base ao jogo;
  • Cenários 2.5D muito bonitos e com profundidade imersiva;
  • Sistema de combate dinâmico;
  • Localizado em português brasileiro.

Contras

  • A baixíssima variedade de inimigos e chefões limita o bom potencial do sistema de luta;
  • A progressão simples e linear pode indispor quem gosta de exploração;
  • O mapa não distingue os espaços visitados dos não visitados e não tem recurso de marcadores personalizados;
  • Poucos colecionáveis relevantes.
Tales of Kenzera: ZAU — PC/PS5/PS4/XSX/XBO/Switch — Nota: 7.5
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Heloísa D’Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia adquirida pelo redator em serviço de assinatura.

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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