Análise: Bō: Path of the Teal Lotus se esforça para ser um Hollow Knight embebido em saquê

Metroidvania reúne beleza e jogabilidade disfuncional em um produto de pretensões consideráveis.

em 26/07/2024


Costuma-se falar demais que a verdadeira criatividade da indústria de jogos está nos indies, mas isso é apenas meia verdade. Para cada título realmente inovador e diferenciado neste tipo de cânone, dezenas de outros surgem também se vendendo como produções especiais, mas no fundo estão apenas surfando na onda desses verdadeiros sucessos. Bō: Path of the Teal Lotus é um exemplo muito claro desse fenômeno.

Horounaito: Shirukusongu

Logo de cara, é perceptível sua belíssima apresentação emulando um estilo artístico folclórico japonês, algo que se estende dos visuais à trilha sonora. Entretanto, não demora muito até que vários itens do checklist de um desses indies mercantis comecem a se tornar evidentes, como a forma com que ele remete de imediato ao Hollow Knight em uma tentativa óbvia de conquistar o mesmo público de jogadores (que certamente anda bem carente, uma vez que a lenda urbana que é Silksong acaba deixando um vácuo nesse nicho).




Pois bem, Bō é nosso protagonista. A raposinha yokai celestial é enviada pelos deuses no intuito de impedir um grande mal que se alastra por aquelas terras, tal como reza a profecia. Assim que aterrissa, ela é recepcionada por uma outra raposa chamada Asahi, que, a despeito de seus próprios conflitos, meio que assume um papel de mentora na aventura.

Assim, cabe ao jogador controlar Bō numa jornada através de uma série de cenários temáticos distintos e clichês que, na prática, só se salvam por conta do apelo estético do seu estilo japonês característico. A questão é que, narrativamente falando, Path of the Teal Lotus é um verdadeiro desperdício. Não é problema a história ser simplista, mas a escrita dos diálogos dos personagens chega a ser constrangedora (com destaque negativo para os corvos que quebram a quarta parede), tornando todo o enredo bem desinteressante.




Nota-se também que parte da exposição da mitologia é exposta em alguns pergaminhos espalhados pelo mundo de jogo, mas a fonte e a formatação de tais textos em tela — comprimidos em uma espécie de coluna — fazem da leitura algo bem desestimulante.

É claro que uma história aquém das expectativas muitas vezes acaba ficando em segundo plano, especialmente porque, tratando-se de um sidescroller, ainda mais um metroidvania, o que importa é justamente o gameplay e como ele se relaciona com o design do mundo apresentado. Assim, logo de cara é necessário se habituar com as mecânicas de pulo que se apresentam como o principal diferencial de Path of the Teal Lotus.




No caso, trata-se de uma mecânica chamada de pogo, cujo nome é derivado diretamente do famigerado pogobol, aquele brinquedo que consiste em uma bola de borracha com uma argola que serve de plataforma para a pessoa que sobe nela e tenta pular e manter o equilíbrio como uma espécie de pula-pula. A aplicação dessa ideia no jogo se dá através dos ataques direcionados para baixo que o protagonista executa com seu cajado, fazendo com que ele ganhe um impulso adicional de pulo. Isso permite uma movimentação em que quase nunca será necessário encostar no solo, caso a mecânica seja devidamente dominada.

A questão é que a aplicação prática dessa ideia foi executada de um jeito bem precário. Isto é, o jogador vai brigar muito com a mecânica de pulo, algo que é um problema crasso porque, tratando-se de um game de plataforma, uma das palavras de ordem para todo o gênero é justamente precisão. Ou seja, não adianta nada o jogador conseguir dominar por completo esse sistema se não há acurácia no reconhecimento de impacto.




É de praxe para o gênero que novas habilidades sejam desbloqueadas ao longo da campanha e que resultem na liberação de novas áreas a serem exploradas, mas as seções do começo, nas quais a raposinha yokai conta apenas com o bastão e sua capacidade disfuncional de salto, acabam se mostrando bem mais desafiantes do que as porções finais do título por conta dessa carência de regulagem de uma mecânica tão essencial para o jogo.

Uma vez que conseguimos acesso a novas habilidades, como um bastão que serve para rebater projéteis, um martelo que causa tremores no chão ou até mesmo uma espécie de hookshot que faz com que Bō seja puxado em direção aos inimigos, o combate começa a se mostrar mais dinâmico e envolvente, funcionando de uma maneira bem melhor do que as seções de plataforma.




Nesse aspecto, embora os inimigos comuns sejam pouco criativos ou variados nos padrões de ataque, quase todos os chefões se mostram oponentes bem marcantes e desafiantes de uma maneira quase justa. Quando nos damos conta, percebemos que se adaptar aos padrões de ataque dos bosses e encaixar uma movimentação em que conseguimos esquivar e atacar nos momentos certos se dá de uma maneira quase rítmica, entrando em um fluxo acrobático bastante gratificante de se executar.

Ser atingido faz com que Bō perca vida, cujo sistema gira em volta de pontos individuais que podem ser recuperados em troca de determinada quantidade de chá no nosso bule mágico. Derrotar oponentes rende mais chá. Desencadear combos contra inimigos em pleno ar faz com que o chá ferva. O chá fervendo permite que a raposinha utilize a forma máxima de seu ataque secundário, que extrai sua força de diferentes tipos de darumas (um tipo específico de boneco tradicional folclórico) que podem ser colecionados ao longo da campanha.




Esse ataque secundário pode ser utilizado também ao custo do chá do bule e há oito tipos distintos de darumas, o que ajuda a diversificar as estratégias de combate, já que há aqueles de viés defensivo e outros com finalidade mais ofensiva. Entender a usabilidade de cada um desses bonecos e saber trocá-los na hora certa traz um frescor constante à jogatina e muitas vezes acabam servindo como válvula de escape contra oponentes mais complicados.

Para complementar, há também os omamori (uma espécie de amuleto religioso) que podem ser equipados e que garantem algumas habilidades extras a Bō, como aumento no dano causado ou na velocidade de movimento, regeneração passiva, etc.




Por via de regra, os chefes são bem divertidos de se lutar contra. Entretanto, o desafio é quase justo (como supracitado) por conta da sempre presente imprecisão da mecânica pogo, o que faz com que os ataques tenham que ser cirúrgicos de uma maneira artificialmente difícil. Em tal aspecto, aumentar a angulação do bastão para os ataques direcionados para baixo até resolveria o problema, mas  por enquanto, ficamos à mercê dessa frustração recorrente.

Esse tipo de complicação poderia até ser visto como um problema simples de habilidade, sendo que, visando um game mais acessível, os desenvolvedores colocaram um modo de desaceleração do motor de jogo. Isso torna possível jogar Bō: Path of the Teal Lotus na metade da velocidade natural dele. A ideia prática é bacana, mas não resolve de vez o problema porque, na verdade, ele está no reconhecimento dos inputs e na relação entre a área de contato do ataque da raposinha com a dos oponentes.




Adicionalmente, os chefões também bem que poderiam ter algum indicador ou medidor da vida restante. Em platformers mais clássicos, como Donkey Kong Country ou mesmo algum Super Mario, às vezes é possível ter alguma noção a respeito de quantos ciclos de ataque um chefão normalmente aguenta antes de trocar de estágio ou ser derrotado. Aqui, entretanto, fica difícil mensurar o desempenho porque tudo o que nos resta é ficar batendo a torto e a direito na expectativa de dar resultado.

O primeiro metroidvania do nenê, caso as mecânicas funcionassem

Enquanto os chefões conseguem representar o auge criativo de Path of the Teal Lotus, o mesmo não pode ser dito para a outra faceta do título: suas sequências de plataforma. Embora cada novo ambiente seja verdadeiramente deslumbrante a um nível visual, nota-se que a inspiração não é das melhores no que diz respeito ao design de fases do jogo.




Efetivamente, ele aposta tudo o que tem na sedução visual exercida pelo seu estilo gráfico como uma forma de maquiar o quão genérica é sua estrutura para um metroidvania. Os segredos são anormalmente fáceis de se encontrar nas fases e é perceptível uma constante linearidade na progressão da aventura.

Embora haja um momento de bifurcação nos caminhos que podem ser tomados em determinado momento da jornada, eles na verdade contam com uma ordem certa para serem seguidos. É necessário ir e voltar entre eles, realizando um backtracking bastante incômodo e que parece existir só para inflar o tempo da campanha base.




Tal revés é acentuado no instante em que os pontos de viagem rápida são escassos e muito distantes entre eles. Uma solução para essa constante romaria seria se houvesse uma forma de fazer uma escapada rápida para algum desses pontos em questão, como um item consumível, mas infelizmente não é o caso.

Outro aspecto de frustração pontual é a existência de situações em que certos elementos interativos no cenário (especialmente um ou outro que é utilizado como apoio para o pulo-pogo) não estão muito bem destacados, o que torna difícil o reconhecimento imediato deles. Acaba sendo muito dependente da tentativa e erro para entender o que funciona e o que não funciona nesse aspecto. Isso quando o espaço de contato não decide falhar mesmo com esse tipo de objeto.




Ao menos, se tem algo que o game acerta é na quantidade e no posicionamento dos checkpoints — representados por pequenos altares — ao longo da campanha. Servindo como bases pontuais, eles também servem para recuperar a vida de Bō e equipar os omamori. Teria sido uma boa ideia se eles pudessem ser usados como pontos “só de ida” de viagem rápida como uma forma de escapar rápido dos lugares, certamente uma oportunidade perdida.

Em termos de progressão, é inegável que há algumas passagens de Path of the Teal Lotus que chamam a atenção puramente pela sua composição estética, seja visual, seja auditiva, com uma trilha sonora maravilhosa que remete a jogos como Samurai Shodown e Muramasa: The Demon Blade. É sempre uma grata surpresa ver o monstrengo gigante se movimentando nos planos de fundo dos cenários enquanto ele assola aquelas terras, por exemplo.




Há também uma sequência bastante específica em que a raposinha precisa atravessar uma ponte sendo assolada por um maremoto. A menção é válida por conta do antagonismo em suas competências, uma vez que consiste em um trecho que sucede tanto em impressionar devido aos seus incontáveis detalhezinhos artesanalmente trabalhados quanto em frustrar por se tratar de um trecho cuja travessia rende falhas constantes da mecânica pogo, o que faz com que a travessia tenha que ser reiniciada inúmeras vezes.

Todavia, essa elegância oriental perfeitamente cunhada serve apenas como uma máscara para a falta de distintividade na composição geral daquele mundo, que se sustenta em uma estrutura bem genérica de áreas temáticas de floresta, caverna e montanhas nevadas, basicamente. A execução não é incompetente ao se apoiar nesse tipo de simplicidade, mas para um produto que se apresenta de forma tão ousada e pretensiosa, esse choque de realidade acaba jogando de forma negativa contra.




Sob tal ponto de vista, o já mencionado Muramasa: The Demon Blade, da Vanillaware, faz absolutamente tudo o que Bō: Path of the Teal Lotus se propõe, mas de um jeito bem mais conciso, envolvente e inventivo ao conseguir consignar elementos de metroidvania e hack and slash (e até RPG) em uma aventura que também engendra o exato mesmo capricho artesanal no seu aspecto gráfico e se perfaz em um conjunto anos-luz mais competente em todos os critérios possíveis.

Dá para dizer que há picos em que a grandiosidade ansiada pelo game é legitimamente alcançada (especialmente nos bosses), mas eles acabam sendo ofuscados por tudo o que os antecede e sucede. Até mesmo o embate apoteótico contra o chefão final acaba sendo vítima disso. Afinal, convenhamos: é muito para a cabeça finalmente dar cabo do bichão e ainda ter que ficar fazendo sequenciazinha de plataforma depois disso.



Qual é o barulho que a raposa faz?

Se você despe Bō: Path of the Teal Lotus de toda sua maquiagem oriental, o que resta é um metroidvania no limite da competência. Trata-se de um produto que chegou ao mercado com defeitos bastante evidentes na sua mecânica principal (o pulo-pogo) e no design das fases, que primariamente dependem do funcionamento pleno de tal sistema. É claro que ele está longe de ser efetivamente ruim, mas é um jogo vítima de sua própria pretensão, que comete o erro de se apoiar demais em sua casca bonita para compensar a carência de alma em seu cerne.

Prós

  • Emulação modernizada da estética tradicional japonesa foi conduzida com inquestionável maestria;
  • Batalhas contra os chefes quase sempre bem marcantes e divertidas;
  • Planejamento dos checkpoints representa o que há de melhor no level design do jogo
  • Sistemas secundários envolvendo os daruma e os omamori trazem alguma diversificação positiva da jogabilidade

Contras

  • Mecânica de pulo-pogo disfuncional;
  • Design de fases genérico com áreas temáticas pouco criativas;
  • História pouco envolvente com escrita de diálogos risível;
  • Escassez de pontos de viagem rápida;
  • Progressão linear e excesso de backtracking;
Bō: Path of the Teal Lotus — PC/PS5/XSX/Switch — Nota: 6.5
Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Beatriz Castro
Análise produzida com cópia digital cedida pela Humble Games

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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