Contudo, é aqui que as semelhanças começam e terminam. Tavern Talk é o próprio jogo; em vez de se contentar com a ideia base do simulador de bar, ele a expande em um repensamento do RPG tradicional, conceito que está muito mais próximo do título do que qualquer um de seus colegas. E se você vivesse uma aventura de fantasia medieval não em pessoa, mas pelas histórias dos heróis que passam pelo seu estabelecimento?
É muito mais interessante do que parece. O jogo conta com um elenco em rotação de 21 personagens diferentes, cada um com sua própria história, alinhamento moral e carta de tarô correspondente (!), lentamente apresentados e aclimatados à Estalagem do Andarilho, a taverna e casa do jogador na terra de Asteria. A serviço deles, você prepara bebidas encantadas e compila missões para quem as quiser.
Garçom, aqui nessa mesa de bar…
Tavern Talk é um RPG com muito orgulho, o que se reflete tanto na ambientação quanto nos próprios personagens. Do ladino caladão com passado trágico à clériga devota cheia de vontade de salvar o mundo, os visitantes da taverna poderiam muito facilmente estar em qualquer mesa de Dungeons and Dragons por aí. O jogo está ciente: não faltam piadinhas sobre o gênero, como uma personagem acusando o jogador, o Estalajadeiro, de “falar igual NPC”, ou a censura de palavrões “pelo limite de idade”.
Poderia ser tudo clichê e chato, ou mesmo autoconsciente demais, com muita facilidade, mas uma escrita cuidadosa e nuançada evita tudo isso. Os arcos de Tavern Talk, muitas vezes, envolvem a desconstrução desses mesmos estereótipos, de maneira a humanizar o elenco e criar figuras realmente memoráveis. O crescimento de cada um é notado pelo diário dentro do jogo, com notas orgulhosas vindas do Estalajadeiro, e a variedade de clientes ajuda a dar vida ao cenário da taverna.Às vezes, porém, esse processo não soa muito natural. Nos momentos mais fracos da história, os personagens tendem a apresentar uma inteligência emocional inconsistente, caindo em frases prontas, do tipo que se ouve em sessões de terapia, com frequência. Lembro de ter ouvido uma menina de dez anos parando para dar um conselho com linguajar maduro demais para o tom do personagem dela, por exemplo.
Outro grande problema com relação ao elenco é o próprio tamanho. Com dezenas de pessoas para o manuseio da narrativa, é natural que alguns sejam mais priorizados do que outros — mas existem casos realmente frustrantes. Um dos personagens some da história por várias horas de jogo e, quando volta, já conhece todo mundo. Quando o protagonista escreve sobre como aquela pessoa evoluiu, eu não a vi o suficiente para acreditar.Também há alguns personagens que sequer recebem uma entrada no diário, e eu, pessoalmente, acredito que estes deveriam ter sido cortados; parece que só vieram encher linguiça, em um jogo que, normalmente, dá propósito a todos os visitantes, e, fora do contexto de terem sido baseados em apoiadores do Kickstarter, empobrecem a narrativa. Um em particular só aparece para dar conselhos e frases de efeito e sumir de vez, combinando ambos os problemas.
Porém, gostaria de terminar esta seção em
mais um ponto positivo: a representatividade de Tavern Talk é muito bem
pesquisada, especialmente na variedade da experiência não-binária. Temos
dois personagens de gênero neutro bem diferentes, além de uma série de
outros que usam pronomes masculinos, femininos e neutros alternadamente.
Um deles muda de nome toda hora, o que é uma experiência que eu mesma
já cheguei a ter com um amigo não-binário — são detalhes que mostram que
os roteiristas se importam de verdade.
Salvando o mundo, um drinque por vez
Todos os aventureiros de Tavern Talk vêm com sede de bebidas encantadas que correspondem aos stats clássicos de D&D: é a função do jogador dar aos viajantes o que eles precisam, por meio de um simples minigame de mixologia. A adição posterior de infusões, ingredientes extras que acrescentam ainda mais poder aos drinques, é a única parte levemente mais difícil da equação.
A dificuldade baixa pode ser um ponto positivo para quem só veio pela história, porém, às vezes, chega a ser tão baixa que é frustrante. É quase impossível errar; o jogo está constantemente dando o passo a passo exato de tudo. Em certo ponto, achei que teria de buscar alguma dica quando uma pessoa que nunca vi antes disse que queria “o de sempre”, mas recebi a resposta assim que abri meu livrinho de receitas: um papelzinho dizendo qual era o pedido em questão.
Além disso, um dado personagem sempre irá pedir exatamente a mesma coisa. A feiticeira quer um drinque para clarear as ideias, a sereia quer um para ficar mais forte, o céu é azul, e o fogo queima. Seria charmoso se alguns personagens tivessem o seu “de sempre”, e você tivesse de se lembrar, mas não é o caso quando todos agem como se estivessem pedindo algo novo toda vez.
A melhor parte é o design da tela do minigame em si. Despejar os ingredientes no copo é divertido, dando a sensação de estar realmente criando uma poção mágica; qualquer erro cometido pode ser servido a Andu, animal de estimação do Estalajadeiro que também adora receber carinho, o que é uma maneira diegética (e muito fofa) de se corrigir sem desperdiçar nada.
A aventura é logo ali
A última peça do quebra-cabeça, e o que mais diferencia Tavern Talk de seus conterrâneos simuladores de bar, diz respeito à mecânica de rumores e missões. Enquanto conversa com seus clientes, o jogador vai coletando partes de uma história; ao final do dia, três rumores podem ser combinados em uma única missão.
Aventureiros que desejam uma missão precisam falar com o Estalajadeiro e, se quiserem, podem receber uma bebida mágica que ajude na aventura. O jogo oferece duas opções: por exemplo, alguém buscando enfrentar um certo monstro pode considerar tanto uma tática ofensiva quanto uma defensiva, e cabe ao jogador escolher qual é a mais apropriada, criando um drinque específico para a ocasião e influenciando os rumos da história.A mecânica funciona perfeitamente, mas ainda sob o mesmo ponto negativo da mixologia: não há desafio algum. Os rumores recebidos têm todos cores específicas, de modo que é impossível juntar três não relacionados, a não ser que o jogador queira muito errar. Remover a fricção desse passo faz com que a necessidade da existência dele seja questionável; a dificuldade reduzida deveria ser pelo menos uma opção, não obrigatória.
As missões em si, por outro lado, são todas ótimas. A ideia de ser um personagem secundário nas andanças dos verdadeiros heróis é interessante, e as narrações das histórias são vívidas e bem-escritas, no perfeito tom de uma conversa de bar. Essas pequenas aventuras, além de contribuírem para o desenvolvimento diferente dos personagens dependendo da escolha do jogador, são lindamente costuradas em um enredo maior, que fica cada vez mais tenso com o passar do tempo.
A conta, por favor!
Apesar de errar a mão em alguns aspectos, Tavern Talk é um sucesso como simulador de bar e como RPG. O jogo usa o melhor dos dois gêneros a serviço de uma narrativa única, que garante seu lugar ao lado de suas maiores inspirações. Com certeza não vou me esquecer tão cedo de Fable, Caerlin, Rhea, Kyle e companhia.Prós
- Fornece uma perspectiva diferente dentro do modelo convencional de RPG;
- Elenco grande dá a sensação de que a taverna é um lugar vivo;
- Prosa sempre adequada ao tom, tão bem-humorada quanto tensa;
- Representatividade significativa, que não cai na tokenização;
- Enredo muito bem amarrado e envolvente.
Contras
- Distribuição desbalanceada de tempo de tela de personagens;
- Pouca variedade no processo de preparação dos drinques;
- Jogo frequentemente entrega de bandeja a solução de qualquer problema;
- Alguns trechos do diálogo são muito pouco naturais.
Tavern Talk — PC/Switch — Nota: 8.5Versão utilizada para análise: PC