Uma questão delicada na indústria de jogos é que, comumente, as pessoas que criam os jogos não são donas de suas obras, mas sim a companhia que as empregou na produção. Por isso, mesmo quando alguém é o grande responsável por dar vida a um game, seu poder acaba com o lançamento e o eventual fim do vínculo de trabalho.
Para alguns desenvolvedores, a única opção para dar continuidade ou retomar seu legado criativo é por meio dos sucessores espirituais. Temos aqui duas palavras carregadas de significado: é “sucessor” porque vem preencher uma lacuna deixada pela ausência de algo que ficou no passado e é “espiritual” porque carrega parte da essência desse algo.
Alguns desses jogos são criados por fãs que se profissionalizam, mas o caso da análise de hoje segue o que descrevi acima do desenvolvedor que não tem direitos sobre sua produção anterior. De forma direta, Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes é um sucessor espiritual da série de JRPG Suikoden, iniciada no primeiro PlayStation pela mão da Konami.
Os três primeiros jogos de Suikoden foram escritos, dirigidos e produzidos por Yoshitaka Murayama, o que lhe dá o reconhecimento de ser o criador da série. Fora da empresa, no entanto, o máximo que ele pôde fazer foi fundar um novo estúdio com colegas veteranos, o Rabbit & Bear Studios, e criar algo novo que capturasse o espírito daqueles jogos antigos.
Assim nasceu Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes, que, assim como seu antecessor, é uma fantasia sobre guerra, que reúne mais de 100 personagens em um grupo de resistência.
Nota: Murayama faleceu antes de poder ver seu novo trabalho chegar ao mundo.
Como peças em um tabuleiro
Como uma crônica de guerra, a história traz duas forças rivais que lutaram entre si alguns anos atrás: o Império de Galdea e a Liga das Nações, composta de quatro povos diferentes. Nosso protagonista é o jovem guerreiro Nowa, recém-ingresso na Patrulha, um grupo de mercenários sob pagamento da condessa Perrielle, uma das líderes que compõem a Liga.
Embora os países estejam em um período de paz, a política interna do Império tende às ambições do Duque Aldric, que, por meio de artimanhas, manipula a diplomacia para justificar uma guerra que atenda aos seus interesses de domínio e de encontrar as lendárias Lentes Primevas. Runas mágicas são inscritas nas Lentes e seu uso é bem comum nos exércitos, mas as que o duque busca podem levar a consequências muito maiores e misteriosas.
Com o tempo, o plano do Duque se desenvolve para uma guerra e Nowa conduzirá os heróis a uma estratégia de resistência que, ao mesmo tempo, busca reconstruir a comunidade fragmentada pelas ofensas imperialistas e os laços entre as nações da Liga. O tema é conhecido de quem joga JRPGs, de forma que, superficialmente, pode parecer um mais do mesmo. A execução, no entanto, é dinâmica, envolvente e enriquecida pela boa escrita, tornando a história uma das melhores partes de Eiyuden Chronicle.
Há outros personagens de grande destaque. A própria Perrielle é uma de minhas favoritas, mas devo mencionar os outros dois que dividem a capa do jogo com Nowa. São Seign, um tenente do Império, e Marisa, uma Guardiã das Criptas Rúnicas. Eles não têm tanta proeminência como Nowa, mas são carismáticos e desempenham papéis interessantes na segunda metade da campanha.
O todo desse conjunto é como um greatest hits dos dois primeiros jogos de Suikoden: há a cobiça pelas runas de poder, o grupo rebelde, o castelo reerguido, o destino de amigos que se veem inimigos por motivos de força maior, e por aí vai. O principal, como disse antes, está na centena de herois que nomeia o subtítulo.
“Gotta catch ‘em all!”
Se 100 personagens parece um número muito elevado, é bom dizer que nem todos eles integram o bando da forma costumeira dos JRPG, isto é, em batalhas. Muitos se aliam à Patrulha e a Nowa por fins narrativos, ajudando a construir uma comunidade vibrante e diversificada que se sustenta sobre a soma dos papéis individuais que cada um desempenha segundo sua capacidade.
Aqui temos um aspecto central no jogo: a restauração de uma cidade-fortaleza que será a base de operações e o lar. O gradual recrutamento de personagens fornece a sensação de progresso, mas a reconstrução do castelo não acompanha o mesmo ritmo, deixando muitos personagens ociosos enquanto não temos os recursos para construir as instalações adequadas.
Em geral, os cenários do jogo são bonitinhos, mesmo com polígonos serrilhados, sombras quadriculadas e texturas de resolução questionável. Não vão incomodar nem impressionar, ainda que eu tenha gostado da profundidade do efeito de desfoque em alguns momentos e de como os ambientes de batalha parecem ter recebido dedicação mais apurada e encaixam bem com o clima das lutas. Somando a isso, os inimigos são desenhados em detalhes e animados adequadamente, com vívida atenção.
A apresentação da centena de heróis é muito boa, nos sprites, nas ilustrações de menu e retratos de diálogos e, a cereja do bolo, na dublagem (em inglês e japonês), fazendo um bom trabalho com as dúzias de vozes que representam a grande multidão de aliados e rivais. Todas as cutscenes são inteiramente dubladas, o que, honestamente, superou minhas expectativas.
Ainda assim, mesmo com personalidades distintas e motivos próprios para se juntar à causa, a maioria dos personagens não tem muito mais que sua presença a oferecer para o aprofundamento do enredo. A maioria decide se juntar a Nowa já no primeiro contato. Alguns pedem para cumprir uma tarefa simples e um ou outro gera uma missão secundária que nos fará passar algum tempo com o personagem em questão. No entanto, qualquer um que não faça parte do elenco central não volta a ter participação pessoal para além de algumas falas no passo a passo da história principal, apenas para marcar presença.
Mesmo assim, acho que a campanha de reunir aliados é a melhor parte do jogo, nos fazendo querer conhecer mais e mais personagens que possam se juntar à nossa causa e, eventualmente, fazer a diferença no ambiente da comunidade.
É como dar rosto e personalidade a uma mecânica de jogo ao colocar um indivíduo como responsável pelo funcionamento dela, como o armazenamento de itens, o teletransporte, a obtenção de recursos, a compra de equipamentos e a condução dos minigames. Assim, por mais superficial que seja a existência de vários desses personagens, ela ainda carrega sua parte de significado para colaborar com o todo.
O dilema das batalhas automáticas
Logo de cara, Eiyuden Chronicle forma um grupo de seis pessoas, que é o máximo simultâneo em combate. Visualmente, as batalhas encenam um bom panorama com cenários convincentes, muitos lutadores envolvidos e uma câmera levemente dinâmica.
Os sistemas, porém, não se sobressaem. Primeiro, mesmo havendo uma fila de iniciativa que mostra a ordem de executar as ações, a escolha delas é feita no início de cada turno, sem possibilidade de adaptar em reação ao que o inimigo faz. Segundo, os personagens não possuem muitos golpes para usar, então prepare-se para aplicar comandos repetitivos com seu grupo.
Terceiro, os pontos de experiência só são concedidos aos envolvidos na batalha, o que significa que sempre haverá alguém com nível abaixo da maioria, o que reforça os motivos para realmente não usar esse alguém. Ainda assim, como os pontos são concedidos em proporção inversa ao nível, quem tem nível mais baixo ganha muito mais e, sem grande demora, consegue alcançar o patamar dos demais. Na prática, isso quer dizer que é preciso “treinar” os personagens com alguma frequência.
E, sim, haverá muitas lutas, considerando que o sistema de batalhas é baseado em encontros aleatórios. Muitas vezes, eu só queria avançar logo no local, mas continuava sendo emboscado pelo mesmo repertório de inimigos da dungeon em questão. Com isso, não demorei a me ver recorrendo a uma opção que não gosto e raramente uso: batalhas automáticas.
No começo de cada turno é oferecida a opção de tirar o controle direto de nossas mãos e deixar o computador decidir as ações. Isso é tentador, especialmente quando consideramos como temos que apertar o botão de confirmar doze vezes para fazer nossos seis soldados efetuarem suas poucas opções de ataques. Para mim, porém, essa é uma tentação à qual eu preferia não ter motivos para ceder, mas as batalhas comuns não são instigantes, ágeis ou sequer divertidas o bastante para contrabalancear a praticidade de acelerar os encontros aleatórios por meio da automação.
As lutas contra chefes, por outro lado, são desafiadoras e em várias delas me vi tendo que usar todo o estoque de itens em mãos para evitar a derrota. Algumas têm Artifícios, mecânicas únicas que dão uma interessante variada no combate, e eu até queria que mais delas aproveitassem essas ideias.
Mesmo assim, para testar até onde vai o recurso automático, cheguei a enfrentar uma batalha contra chefão inteiramente nesse modo, o que rendeu uma vitória na dificuldade Normal. Pelo menos, o comportamento automático pode ser configurado para cada personagem em certo grau de detalhes.
De certa forma, deixar nas mãos do computador pode funcionar como substituto à ausência de um “modo fácil”, uma vez que Eiyuden Chronicle só permite escolher entre Normal e Difícil. Existem até opções para elevar ainda mais o desafio em aspectos selecionados. Infelizmente, o jogo quer que a decisão seja definitiva e não permite mudança ao longo da campanha, o que é mais uma decisão datada que não contribui à experiência de quem joga.
Vale acrescentar que, em momentos-chave, nos vemos diante de batalhas campais em que movemos tropas inteiras por uma grade. O sistema é simplório e não merece sequer ser comparado ao estilo de RPG tático, parecendo estar ali apenas pelo recurso narrativo de detalhar o desenrolar dos embates entre os grandes exércitos. Sinceramente, esse aspecto me satisfez e tem o atenuante de acontecer apenas de vez em quando, então não senti falta de maior profundidade estratégica.
Tradicional ou moderno?
Há outros pontos em que o RPG peca na falta de opções de qualidade de vida para quem joga, como o sistema de salvamento arcaico que só permite fazê-lo em hospedarias e pontos de salvamento nas dungeons. Estes são até frequentes, o que minimiza o impacto de não poder salvar o progresso na hora que quiser.
Se as limitações de salvamento são contornáveis, as de interface de menu e de gerenciamento de personagens chegam a incomodar pelo trabalho. Parece contraditório que o jogo queira passar a sensação de formar um exército de indivíduos, mas restrinja as informações no menu principal aos seis personagens do grupo atual. Somente podemos verificar os demais recrutas em locais específicos, como estalagens.
O mesmo vale para as Runas: só podemos equipá-las nas lojas. Portanto, ao encontrar umas três delas em uma mina abandonada, tive que esperar o fim daquele segmento da história e o meu retorno à cidade para poder testar quem usaria qual. Fazer compras e otimizar a distribuição de equipamentos também cai na burocracia de um gerenciamento restritivo e pouco convidativo.
A própria troca de personagens tropeça nessa mesma questão e só pode ser realizada na estalagem. Na verdade, existe uma exceção: podemos convocar a estalajadeira para a vaga de personagem de apoio, que não entra em combate e concede um bônus ou opção. Neste caso, ela libera a troca de heróis nos pontos de salvamento, o que penso que deveria ser o procedimento normal. Mesmo que seja uma boa ajuda, só temos uma vaga de apoio e provavelmente a manteremos ocupada para suprir outra necessidade.
Ainda posso mencionar a falta de um diário de missões secundárias. É possível ver na tela do mapa o histórico dos objetivos principais e o atual, mas as tarefas opcionais ficam a cargo de quem joga.
Por exemplo: ainda nas primeiras horas, encontrei um caçador que prometeu se juntar ao meu grupo se eu caçasse cinco javalis. A proposta não ficou registrada em lugar algum e eu não sabia nem se os bichos que eu já havia enfrentado contavam para a meta, tampouco houve qualquer aviso de conclusão do requisito. No avançar da campanha, chegamos a ter muitos recrutamentos simultâneos em aberto, mas sem lembretes dos requisitos para finalizá-los. Recomendo fazer anotações ou capturas de telas para dar conta disso.
Ainda no tema das limitações do jogo, tenho que apontar que a tradução tem escolhas duvidosas, como optar por adaptar “Equipment” para “Aparato”, em vez de usar o termo direto “Equipamento”, super convencional para o tipo de jogo.
Outros pontos são problemáticos e até completamente errados. Exemplo: traduzir “crane” por “pássaro”, em referência à ave grou, quando claramente era de um “guindaste” que se estava falando. É muito bom que o jogo tenha tradução para nosso idioma, mas é uma pena que os erros não sejam meramente casuais ou raros. Chega ao ponto de o tutorial falar de PV para Pontos de Vida e PH para Pontos de Habilidade, mas toda a interface de menu e batalha manter, respectivamente, HP e SP.
A concordância de gênero é o caso de erro mais frequente, o que tenho encontrado com tanta frequência em jogos menores em geral que acho um indício preocupante da falta de investimento em tradução e revisão textual nessa indústria. Em um JRPG como Eiyuden Chronicle, isso é ainda mais importante; afinal, estamos falando de uma obra com textos constantes.
A grande exceção positiva na qualidade de vida é o eficiente sistema de viagem rápida, que até demora um pouquinho para aparecer, mas que é prático, abrangente e combina muito bem com os objetivos de percorrer o mundo em busca de novos aliados.
Sucessor de sucesso?
Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes claramente foi feito com empenho para entregar uma experiência épica sobre montar um exército de resistência em meio a uma guerra inglória. A narrativa não tem como dar importância a um elenco tão vasto, mas, no geral, faz um bom trabalho com o que tem em mãos, contando uma história envolvente, bem escrita e bem dublada. A tradução não segue o mesmo nível e vários sistemas parecem andar próximos demais às produções antigas em que se baseiam, perdendo a chance de se modernizar para permitir um gerenciamento mais eficiente.
O resultado final é um bom JRPG que sofre de limitações, que ainda podem ser resolvidas com alterações aqui e ali de sistemas, opções e menus, trazendo em si o potencial para realmente brilhar em seu meio.
Prós
- O clássico tema da rebelião contra o império é desenvolvido em uma história bem escrita;
- A campanha dá importância ao recrutamento do máximo de personagens e à reconstrução da base e da comunidade local;
- Boa apresentação dos personagens em visual e dublagem;
- Algumas batalhas contra chefes rendem desafios interessantes;
- Textos localizados em português brasileiro.
Contras
- Boa parte do enorme elenco não tem história pregressa nem participação pessoal relevante;
- Faltou implementar sistemas de qualidade de vida para trazer o JRPG para um patamar mais moderno, como um diário de missões secundárias;
- Gerenciamento de personagens burocrático e limitado;
- O sistema de batalha funciona, mas é raso ao ponto de permitir jogar boa parte no modo automático;
- Mesmo sendo bonitinho em geral, carece de polimento em alguns aspectos visuais;
- Problemas de tradução e revisão de texto.
Eiyuden Chronicle: Hundred Heroes — PC/PS4/PS5/XBO/XSX/Switch — Nota: 7.5Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Ives Boitano
Análise produzida com cópia digital cedida pela 505 Games