Análise: Sand Land (Multi) é um adorável Mad Max com demônios

Baseado na obra de Akira Toriyama, o título faz uma das coisas mais difíceis na indústria: justifica a própria existência supostamente desnecessária.

em 25/04/2024


Ao mencionarmos o nome Akira Toriyama, a primeira coisa que inevitavelmente aparecerá na mente de qualquer pessoa é Dragon Ball. Os gamers apontarão também seu envolvimento em Dragon Quest, enquanto alguns mais assíduos da esfera otaku vão lembrar que ele é responsável por Dr. Slump, um outro incrível mangá de comédia. Com um currículo assim, é natural que um criador só vai realmente querer trabalhar como e quando quiser. É por isso que, exausto da rotina de tocar um mangá de periodicidade semanal, Toriyama se concentrou apenas em histórias curtas após o término de Dragon Ball. Publicada originalmente em 2000, Sand Land é uma delas.

Usando como palco um grande deserto gerado pela ação humana e onde a água é um dos bens mais preciosos, Sand Land conta a história de uma improvável aliança entre Rao, um velho xerife humano, e Beelzebub, o príncipe dos demônios. Os dois, ao lado do ancião Thief, partem em uma jornada pelo território árido atrás de uma lendária fonte de água que colocaria um fim no monopólio do rei que controla a região.




Ao lado de outras obras menores do mestre, como Cowa! e Kajika, Sand Land nunca foi exatamente uma referência por sua qualidade narrativa, embora tivesse uma premissa sólida. É por isso que o projeto de mídia envolvendo a marca, que consiste não só na produção de um game, mas também de um filme que posteriormente foi fragmentado em uma série de animação mais longa, conseguiu gerar algum interesse. Afinal, como é que uma história tão sucinta teria material para sustentar duas produções de grande porte? Ainda, por contarem a mesma história e serem lançados em um intervalo de tempo tão próximo, o jogo e o anime não seriam redundantes?

Multidisciplinaridade em um vasto deserto

Logo nas horas iniciais, a influência de Mad Max em Sand Land fica bastante evidente, indo desde o conceito original como trabalhado pelo Toriyama, de terra desolada e recursos escassos, até certos elementos de jogabilidade e estrutura diretamente inspirados pelo jogo de 2016 baseado na série de filmes do George Miller. De uma maneira mais específica, isso se traduz na alternância entre elementos de combate físico, exploração e combate veicular com aspectos que remetem a um RPG, como a evolução das habilidades e personalização dos veículos.




Essa questão de remeter a um RPG é uma colocação importante a ser feita porque o título, na prática, é muito menos pertinente ao gênero do que tanto seu material promocional quanto a sua atmosfera fazem parecer. É claro que a questão da exploração e a evolução dos níveis acaba gerando uma impressão, mas Sand Land acaba se assemelhando muito mais a uma aventura de mundo aberto com alguma ênfase na história, uma vez que a narrativa ambiental acaba sendo um fator bastante presente ao longo da campanha.

Assim, viajar pelos desertos é algo simplesmente lindo. O mapa foi meticulosamente trabalhado para estar sempre surpreendendo o viajante que passa pela primeira vez por algum lugar. Trata-se de um ambiente que está sempre convidando o jogador a explorá-lo com a esperança de render sempre uma peça ou outra para o até que robusto sistema de personalização de veículo.




Você vê um trabalho muito bem-feito do estúdio ILCA, os mesmos caras que foram crucificados por conta dos remakes Pokémon Brilliant Diamond e Shining Pearl (Switch), mas que, aos poucos, estão se mostrando um time novo, porém muito competente, algo que já havia sido evidenciado por One Piece Odyssey (Multi).

Talvez o único problema recorrente em todas produções do estúdio até aqui — Sand Land incluído — reside na qualidade das animações, que não correspondem à excelência visual que esses jogos conquistaram (e aí eu incluo o estilo chibi do Pokémon que foi, sim, um acerto, queria ressaltar). Não é difícil que ocorra uma quebra da imersão por conta dos movimentos travados ou de loops de animação mal regulados.




Esse revés em específico se mostra claro, por exemplo, logo no início do game, em uma sequência de stealth em que Beelzebub precisa invadir uma base militar para roubar o tanque de guerra. Com guardas patrulhando o local, é possível esgueirar-se por trás deles e assustá-los para tirá-los de cena. Nesse momento, o jovem demônio realiza uma animação de salto bem sem graça e o soldado acaba caindo duro no chão, simplesmente sumindo sem vestígios.

Daí também surge o gancho para colocar que as próprias sequências de stealth não são lá muito envolventes. Na realidade, são realmente inofensivas por não frustrarem o jogador, mas a inexistência prática de qualquer desafio acaba passando uma impressão básica de perda de tempo. Elas merecem alguns pontos por conta da tentativa, mas com certeza não chegam nem perto dos verdadeiros momentos de destaque, que são os combates tanto físicos quanto veiculares.




A porradaria física é um desses casos que começa propositalmente limitada e sem graça para ir se tornando melhor com o tempo por conta das novas habilidades a serem desbloqueadas com o progresso da campanha. Depois de um tempo, o sentimento incômodo de movimento truncado vai embora e a luta mano a mano contra os inimigos vai mostrando uma fluidez bem mais gratificante com novos combos e técnicas específicas. Adicionalmente, os parceiros Thief e Rao podem participar das brigas com habilidades passivas e automáticas, colaborando um pouco nesses momentos. Nota-se que esses combates se dão no tempo real do cenário, sem transições para sequências específicas, como um RPG normalmente faria.

O combate veicular, por sua vez, já apresenta um sistema bem mais elaborado e variado, fazendo jus ao legado do Toriyama como um exímio designer de mechas e veículos, uma de suas capacidades muito subestimadas. No caso, isso se traduz em uma versatilidade capaz de quase sempre corresponder às vontades do jogador no que diz respeito ao estilo de jogo, sendo possível escolher entre veículos com enfoque na velocidade, na durabilidade ou no poder bruto de ataque, além de haver espaço para a personalização a ponto de montarmos verdadeiros mechas capazes de tocar o terror por Sand Land.




É como se o título apostasse quase todas as suas fichas nesse sistema, uma vez que ele consegue conversar bem demais com a dinâmica de mundo aberto oferecida, com verdadeiros espaços abertos que tornam as batalhas muito mais interessantes, especialmente contra oponentes maiores e que fazem o jogador usar a cabeça para entender os melhores momentos e lugares para se posicionar e atacar.

Nota-se que nada em Sand Land é realmente complicado. Inclusive, achei um título muito charmoso e com um apelo sólido para uma molecada que ainda está fazendo sua iniciação no hobbie de jogar videogames. Nos últimos anos, é possível perceber uma lacuna de jogos voltados para esse tipo de público-alvo que ainda precisa se habituar com certas dinâmicas, especialmente voltadas para single player, uma vez que a introdução desse público hoje acaba sendo muito através de serviços online como Fortnite ou Roblox.




Nesse caso, é por isso que o stealth é tão simples e básico, porque consegue conversar com um público que ainda não está pronto para se meter em outros títulos mais elaborados desse gênero. É também por essa razão que os quebra-cabeças por vezes presentes nas dungeons não oferecem nada realmente complicado, porque conseguem iniciar um novato a esse tipo de sistema comum em outros títulos.

Sand Land é brilhante nesse aspecto por conseguir oferecer uma sólida experiência multidisciplinar que um dia foi bastante abundante entre a quinta e a sexta geração de videogames, quando a indústria estava aprendendo a lidar com as potencialidades dos ambientes 3D no game design. Pense em um jogo licenciado gostoso do PlayStation 2. Aquele que, olhando em retrospecto, nem era uma produção tão elaborada assim, mas que ainda conseguia oferecer uma diversão sólida e variada capaz de traduzir para um jogo os principais elementos do desenho animado que você assistia na televisão. Conseguiu? Pois é isso.




Dentro dessa acessibilidade, entretanto, é preciso ressaltar que, como um mundo aberto e explorável, há sequências em que o nível de personagem simplesmente não irá condizer com os desafios da região, mas não é como se o título não avisasse e sugerisse para que o jogador volte mais tarde. Há um trabalho minucioso a fim de tornar a aventura bem convidativa para diversos públicos, preocupando-se em oferecer sempre uma jornada prazerosa em que o indivíduo dita seu próprio ritmo e estilo.

É esse aspecto que faz com que Sand Land (jogo) consiga justificar sua existência ao lado de Sand Land (anime). Há um trabalho sagaz no desenvolvimento narrativo em que a história consegue ser integrada à jogabilidade naquele chavão de mostrar as coisas acontecendo, em vez de simplesmente contar.




Chega a ser perceptível a evolução de Spino como uma cidade, que funciona como um hub, uma base de operações universal, de acordo com o progresso na campanha. O povoado vai simplesmente evoluindo, algo que se mostra evidente a cada retorno ao local. Em outra situação dessa, a água tem um papel importantíssimo para a manutenção do HP do Beelzebub, sendo necessário reestocá-la de tempos em tempos, mas sem cair na execução chata que o jogo de Mad Max fez com uma mecânica igualmente similar.

De uma forma bem positiva, o ILCA não teve vergonha de inventar e preencher lacunas onde se mostrava necessário. Se for preciso inventar seções, inimigos, sequências de história e elementos adicionais que expliquem aspectos daquele universo, será feito. Novamente, essa prática era feita com certa recorrência antigamente, mas por conta de protecionismos narrativos que prezam pela uniformidade do chamado cânone, isso foi se tornando cada vez mais incomum na indústria.




Falando em uniformidade, chama a atenção como Sand Land consegue apresentar essas novas adições de uma forma natural a ponto de parecer que sempre estiveram lá, especialmente no que diz respeito ao design de personagens e inimigos, que consegue emular com muita capacidade o estilo do Toriyama. A grosso modo, há momentos que ele acaba remetendo a um Dragon Quest moderno ou, de uma maneira mais específica, Blue Dragon (X360), uma vez que o visual dos cenários, parecendo pequenos bonecos em uma maquete, me lembra um pouco o que o título da Mistwalker conseguiu fazer no Xbox 360.

De uma forma ampla, só não temos um produto mais redondinho nas mãos por questão de detalhes, especialmente aqueles voltados para o que diz respeito à qualidade de vida do produto, algo que já foi apontado em One Piece Odyssey, outra produção anterior do ILCA.




Se for para listar, são colocações até que banais que poderiam trazer uma impressão de melhor acabamento ao resultado final, como a questão das animações que quebram o fluxo (como a de entrada e saída do veículo especialmente durante os combates), ou das paredes invisíveis que insistem em cortar o nosso barato de acelerar em pleno deserto de areia.

Falando nisso, a navegação automática me parece simplesmente inútil, já que seu efeito é apenas fazer com que o tanque acelere, sem se preocupar em conduzir o veículo até o ponto marcado no mapa, por exemplo. A trava de mira bem ruim durante os combates e a câmera que, por vezes, tem problemas em acompanhar a ação na tela, também são fontes pontuais de frustração — e olha que essas três adversidades (a navegação, a trava de mira e a câmera) são reguláveis nas configurações e, ainda assim, não conseguem apresentar um desempenho decente. O painel de save manual também é estranhamente escondido dentro do menu e poderia ser de um acesso mais rápido e prático.

É triste que esses detalhes tão simples de se apontar com um teste básico de controle de qualidade tenham sido negligenciados, especialmente por se tratar de um game que realmente se preocupa com certas minúcias. Vale a pena esperar e ver se as atualizações de lançamento vão trazer correções e melhorias capazes de solucionar esses tropeços.



A fofa jornada de um velho e dois diabos na terra do sol

Sand Land consegue fazer uma das coisas mais difíceis nessa indústria cultural tão acalorada e chata da nossa época: é capaz de justificar a sua própria existência (ao lado de um anime que conta a mesma história, só que sem ser bem assim), que muitas vezes pode parecer sem qualquer sentido se formos observar apenas a superfície da proposta. Apesar de alguns percalços técnicos relativamente bobos e que chateiam mais pela suposta facilidade em identificá-los, a aventura de Beelzebub conta com um valor artesanal que exala muita graciosidade e carisma.

Prós

  • Sistema de combate e personalização veicular conseguem sustentar a jogabilidade;
  • Mundo aberto vasto e muito bonito de se explorar;
  • Tradução criativa de uma história cujo material base é relativamente limitado;
  • Progressão que respeita o ritmo do próprio jogador.

Contras 

  • Qualidade baixa das animações a ponto de atrapalhar a fluidez do título;
  • Problemas de qualidade de vida e aparente falta de teste de controle de qualidade;
  • Certos elementos, como o de stealth e os quebra-cabeças, podem deixar a desejar para um público mais exigente.
Sand Land — PC/PS4/PS5/XSX — Nota: 8.0 
Versão utilizada para análise: PlayStation 5
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital cedida pela Bandai Namco

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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