Análise: LipTrip ~My Boss Is My Heat Suppressant!?~ (PC) consegue subverter o subgênero omegaverse em poucas horas

A nova visual novel girls love da SukeraSomero traz por terra os conceitos de um subgênero controverso.

em 18/03/2024

O subgênero omegaverse ainda é majoritariamente explorado em obras boys love, mas, recentemente, ele vem se expandindo para a demografia girls love, como é o caso de LipTrip ~My Boss Is My Heat Suppressant!?~, visual novel criada pela SukeraSomero, empresa-irmã da SukeraSparo.

Embora eu passe longe de produtos classificados como omegaverse (explicarei o porquê mais adiante), ambas as desenvolvedoras têm um bom currículo na demografia girls love e são conhecidas por obras que fogem do padrão esperado de uma forma ou outra — eis o motivo de LipTrip cair no meu radar.

Quando alfa e ômega se encontram

A trama de LipTrip gira em torno de Rino Maiguma, recém-contratada para a posição de assistente editorial na revista digital Fuller, da NK Publishing. Do outro lado, temos a editora-chefe da publicação, Chizu Kiyotsu, uma alfa competente e adorada por seus subordinados, graças ao seu temperamento amistoso.

Apesar de ter sido contratada pela companhia para atender à cota de funcionários ômega, Rino está determinada a provar que pessoas desse subsexo podem ser tão competentes quanto as alfas. No entanto, seu primeiro encontro com Chizu é bastante desastroso: o contato com sua chefe faz com que a nova funcionária entre no cio de maneira anormal, de modo que nem seu remédio de supressão de hormônios faz efeito.

Para contornar a situação — e com certa culpa por deixar a subordinada em um estado alarmante —, Chizu se oferece para “apagar o fogo” de Rino. Curiosamente, esse “tratamento diferenciado” acaba funcionando, mas os feromônios da ômega logo começam a afetar a capacidade racional da alfa. Sendo assim, o que apenas parecia uma relação puramente física entre as duas mulheres, praticamente uma troca de benefícios, abre espaço para algo mais.

A subversão do subgênero omegaverse

O subgênero omegaverse (ou ABO) surgiu no auge das slash fictions, na década de 1990 e início dos anos 2000, sobretudo as que retratavam o relacionamento homoerótico entre homens. Dentre as principais características do omegaverse, estão uma dominação hierárquica que separa os humanos em três subsexos (alfa, beta e ômega — daí ABO), além de seus biológicos (homem e mulher), e comportamentos sexuais baseados no reino animal (cio, atração por feromônios e sexo para reprodução, entre outros).

Trata-se de um subgênero controverso, pois o omegaverse, na maioria das vezes, é usado para romantizar comportamentos abusivos, estereótipos e tendências fetichistas como hermafroditismo em mulheres e gravidez masculina, sendo que estas, muitas vezes, são usadas para inviabilizar a luta por direitos de pessoas transexuais. Por esses e outros motivos que não são pertinentes a esta análise em si, eu fujo de toda e qualquer obra classificada como omegaverse.


No entanto, apesar de LipTrip contar com certas características do omegaverse, a visual novel nada mais é do que um romance girls love tradicional, sem tirar nem pôr. A grande sacada da SukeraSomero, na minha opinião, foi trabalhar a questão instintos x desejo, fazendo com que a trama subverta esse subgênero controverso.

Em outras palavras, não existe a dominação hierárquica que “força” a química entre as protagonistas; inclusive, o único momento em que uma personagem alfa tenta marcar Rino à força, outra “marca registrada” do omegaverse (“instinto vem antes da razão”), é tratado como crime.

Desse modo, temos nesta VN uma brilhante quebra de estereótipos do subgênero em questão, com direito a uma excelente reviravolta no final, mas vou parar por aqui para não dar (mais) spoilers. A única coisa que posso dizer é que mordi minha língua por ter duvidado precocemente da qualidade do produto da SukeraSomero.

Um romance de escritório até simples demais

Em termos visuais, LipTrip traz design de personagens de Minori Chigusa, artista responsável por mangás como Assault Lily: Secret Garden -Sweet Memoria- e Convenient Semi-Friend, além de artes para Vtubers. Enquanto a arte da mangaká se destaca sobretudo nas CGs da visual novel, infelizmente, apenas Rino e Chizu possuem modelos, sendo os demais personagens retratados vagamente (vide imagem abaixo) ou inexistentes visualmente.

Outro infortúnio é que temos mais um jogo em que os cenários são repetitivos e escassos, bem como a trilha sonora pouco marcante. Felizmente, LipTrip conta com dublagem integral em japonês, com Yui Inari (Rino) e Moko Aimai (Chizu), duas dubladoras já conhecidas no ramo das visual novels; porém, algum problema durante a mixagem de som fez com que a voz de Aimai fique praticamente inaudível se a BGM estiver ligada a um volume relativamente alto.


Talvez o principal problema seja o equilíbrio entre duração (aproximadamente três horas) e conteúdo, já que a dinâmica entre as duas personagens é praticamente ditada pelas relações sexuais que aprofundam o relacionamento entre Rino e Chizu. Particularmente falando, isso não é um incômodo para mim, já que as cenas são bem-escritas e descritivas, mas quem preferir apenas acompanhar a história linear deve esperar pelo lançamento do jogo no Steam, que, como de praxe, sofrerá cortes no conteúdo erótico.

Ainda no quesito da duração, algumas passagens acabaram sendo pouco desenvolvidas, passando a sensação de que haveria espaço para explorar mais a dinâmica entre as protagonistas se a visual novel fosse um pouco mais longa. De toda forma, se pensarmos como um produto voltado apenas ao homoerotismo entre mulheres, LipTrip cumpre bem com seu papel.


Em relação ao texto, a localização para o inglês é boa na maior parte do tempo, com apenas alguns errinhos de digitação e formatação acontecendo aqui e ali. Claro, dada a duração da campanha, seria de bom tom que eles não acontecessem, mas acredito que nenhum jogo seja imune a esse tipo de problema.

De resto, LipTrip conta com as típicas ferramentas de vida básicas das VNs, como quick save/load, texto automático e backlog; além disso, é possível regular a velocidade dos diálogos, tanto para a leitura normal quanto para a automática, e volumes das músicas e das vozes. Por fim, o jogo traz um glossário com oito terminologias utilizadas em omegaverse que são surgem durante a trama, sendo que, em algumas entradas, há um breve bate-papo (também dublado) entre Rino e Chizu, como se as personagens estivessem conversando sobre seus pontos de vista em relação a esses termos.

Mais uma ótima visual novel girls love no mercado

LipTrip ~My Boss Is My Heat Suppressant!?~ é uma adição bem-vinda ao repertório de títulos com temática girls love, especialmente porque consegue se desenvolver sem se apoiar nos elementos controversos do subgênero omegaverse e até mesmo subvertê-lo, transformando-se em uma boa história homoerótica entre mulheres — mesmo que haja um espaço para melhor desenvolvimento do romance entre Rino e Chizu, que não foi bem aproveitado.

Infelizmente, há certos pontos que poderiam ter sido melhor pensados, como os cenários e músicas pouco marcantes, a falta de arte para personagens secundários e os pontuais problemas de áudio e texto. De todo modo, se pensarmos que é um material mais voltado ao conteúdo sexual (ainda mais se levarmos em consideração as características do omegaverse), esta visual novel cumpre com seu papel.

Ilustração de Minori Chigusa para comemorar o lançamento da visual novel.

Prós

  • Em se tratando de uma visual novel homoerótica entre duas mulheres, cumpre muito bem com seu papel de focar nas relações sexuais entre as protagonistas;
  • O design de personagens de Minori Chigusa é bastante agradável e expressivo, especialmente nas CGs;
  • A história, apesar de curta, consegue subverter o controverso subgênero omegaverse;
  • Por falar em omegaverse, o jogo conta com um glossário com oito entradas que são usadas ao longo da trama, sendo que algumas delas incluem um breve bate-papo entre Rino e Chizu;
  • Presença de ferramentas de qualidade de vida típicas em VNs, como quick save/load, texto automático, backlog, regulagem de velocidade do texto e volume;
  • A dublagem integral em japonês conta com vozes já conhecidas no ramo de visual novels.

Contras

  • Cenários e músicas pouco marcantes, assim como os personagens secundários, que não possuem design próprio;
  • Problemas na mixagem de áudio deixam as falas de Chizu praticamente inaudíveis se a música está em um volume relativamente alto;
  • Alguns deslizes pontuais tanto na digitação quanto na diagramação nas janelas de diálogo na localização em inglês;
  • Algumas pessoas podem se sentir incomodadas com o excesso de conteúdo sexual em uma visual novel de curta duração.
LipTrip ~My Boss Is My Heat Suppressant!?~ — PC — Nota: 8.0
Revisão: Davi Sousa
Capa: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital adquirida pela própria redatora

Também conhecida como Lilac, é fã de jogos de plataforma no geral, especialmente os da era 16-bits, com gosto adquirido por RPGs e visual novels ao longo dos anos. Fora os games, não dispensa livros e quadrinhos. Prefere ser chamada por Ju e não consegue viver sem música. Sempre de olho nas redes sociais, mas raramente postando nelas. Icon por 0range0ceans
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