Análise: Like a Dragon: Infinite Wealth (Multi) mostra que RPGs de turno ainda têm seu lugar sob o sol

Este novo título alcança um patamar inédito não só para a franquia, mas para todo um gênero que anda precisando reafirmar seu valor para o mercado.

em 09/02/2024


Uma das coisas mais interessantes em Yakuza: Like a Dragon (Multi) é que o jogo não teve medo algum de subverter tudo o que a franquia tinha construído até então. Isso se aplica em várias frentes, da jogabilidade em si ao próprio universo criado até aquele momento da série, a julgar pela dissolução que a própria Yakuza, como instituição, sofreu ao longo da narrativa. Depois de alguns spin-offs, chega a ser impressionante como Like a Dragon: Infinite Wealth foi capaz de realizar essa façanha com exímia maestria em mais uma oportunidade.

♫ Hula Hula de lá (Ichiban), quebra-quebra daqui (Ichiban), ô Ijincho iaiá, é o Ichiban no Havaí ♫

Depois dos acontecimentos do jogo anterior, nosso novo herói, Ichiban Kasuga, agora trabalha em uma agência de empregos e tem como maior especialidade a recolocação de ex-yakuzas no mercado de trabalho. Vivendo como um herói e personalidade local em Ijincho, sua nova vida pacata é virada de cabeça para baixo quando ele é acusado de atividades ilícitas que claramente não cometeu. Isso fez com que não só ele perdesse o emprego, mas também os seus associados, como Adachi e Nanba, os seus colegas de time do jogo anterior e que igualmente tiveram a possibilidade de recomeçar a vida.




No meio dessa bagunça, Ichiban, que havia sido criado como órfão em uma soapland (uma espécie de casa de prostituição específica do Japão), descobre que sua mãe está viva e supostamente vivendo no Havaí.

Saindo do país pela primeira vez na vida, Ichiban parte em direção ao estado americano em questão, onde logo de cara é enganado por um taxista de índole questionável, drogado e roubado por uma moça bonita que se passava por uma empregada, se depara com as principais cabeças da organização criminosa local e ainda acaba na cadeia por atentado ao pudor. Felizmente, ele acaba sendo salvo por Kazuma Kiryu, que estava lá em uma missão atribuída a ele pela organização secreta Daidoji, para quem o Dragão de Dojima passou a prestar seus serviços depois que forjou sua morte ao fim de Yakuza 6: The Song of Life.




A partir daí, a história do jogo se desenrola em uma trama relativamente tradicional da série que envolve os grupos mafiosos em conflito e a força maior que é a verdadeira responsável por todo o esquema do submundo. Agora, temos um toque havaiano e ocidental que coloca uma pitada de conspiração através da fé religiosa no meio da trama, além das participações muito bem-vindas de atores que por si só já trazem uma graça a mais à aventura, como é o caso de Danny Trejo e Daniel Dae Kim.

Disso, vem uma análise sobre estigma histórico atrelado à série Yakuza de que ela, por muitas vezes, é encarada como um produto muito japonês, com uma série de características inerentes e malucas que potencializam a percepção bizarra que os ocidentais têm do Japão. Agora, chegou a vez do estúdio Ryu Ga Gotoku retaliar, fazendo com que a viagem de Ichiban ao Havaí acabe sendo um estudo curioso, uma espécie de paródia, sobre a visão que os próprios japoneses têm do Ocidente — ou, ao menos, dos EUA.




Paralelamente, há todo o drama de Kiryu e sua luta contra um câncer em estágio terminal. Além de ser um membro recorrente da party de Ichiban, o Dragão de Dojima também assume as rédeas da campanha em alguns momentos de jogabilidade, sendo que boa parte de sua trajetória envolve questões como o conformismo com o fim e a valorização de seu legado, algo que assume um tom meio que metalinguístico, já que esse se mostra como (mais um) último adeus do lendário Yakuza para o jogador.

Nota-se que essa fatalidade de Kiryu vem com algumas súbitas realizações e lembranças a respeito de sua vida, como uma retrospectiva de seus próprios feitos na franquia — incluindo Like a Dragon: Ishin! (Multi), cujos acontecimentos são descritos pelo Dragão de Dojima como um “sonho esquisito”. Presenciar tais momentos espalhados pelo mapa correspondem a uma evolução prática de Kiryu em termos mecânicos, o que acaba fomentando uma interessante assonância ludonarrativa no sentido de que a evolução psicológica do personagem está de mãos dadas com o seu poder técnico de combate.



Não é Alola, mas temos que pegar!

Enquanto tenta desmantelar o esquema instaurado no submundo havaiano e desembaraça os fios da trama que o levarão à sua mãe, Ichiban também pode tirar um tempo para aproveitar sua primeira viagem ao exterior. De forma prática, trata-se de uma série de atividades paralelas diversas que fazem com que a representação do Havaí de Like a Dragon: Infinite Wealth pareça realmente viva.

Isso se traduz de várias formas, indo desde os minigames mais clássicos, como os de karaokê, dardos, fliperama e cassino, a outros exclusivos deste novo título. Um deles é a rota dos bondinhos, em que Ichiban, em um sistema que lembra um rudimentar Pokémon Snap, ganha uma câmera e precisa utilizá-la para fotografar os esquisitões de sunga escondidos no trajeto.




Em outra situação, Kasuga precisa montar em uma bike para ajudar nas entregas de um estabelecimento chamado Crazy Eats, em uma jogabilidade que remete bastante a Crazy Taxi, da própria Sega, e que provavelmente deve ter servido de pontapé inicial para o desenvolvimento do título novo da série que foi anunciado há alguns meses.

Crazy Eats não, aliás. Chamaremos pelo seu excelente nome traduzido: Loucão Lanches, em mais um acerto impecável dos responsáveis pela localização do jogo. Enquanto Like a Dragon Gaiden tinha me chamado atenção por conta de algumas inconsistências na qualidade do serviço de tradução entregue, Infinite Wealth volta à excelente forma apresentada em Yakuza: Like a Dragon.




Ainda nas atividades paralelas, duas delas, entretanto, merecem um destaque maior, já que elas conseguem realizar o feito de ultrapassar a barreira do simples minigame e apresentam uma robustez que tranquilamente renderia jogos próprios. De caráter reduzido? É verdade, mas ainda assim teriam seu espaço cobrando lá seus quinze ou vinte dólares na Steam, como fazem tantos produtos indie de simplicidade ainda maior.

Primeiramente, vem a campanha dos Sujimon. Para se ter uma ideia, em Yakuza: Like a Dragon, a galeria de inimigos, que se chamava Sujidex, funcionava como uma espécie de catálogo ao estilo Pokédex (daí o nome) em que cada oponente derrubado era registrado como um favor para o Professor Morikasa.




Em Infinite Wealth, por sua vez, a linha de história envolvendo os Sujimon é expandida e agora é possível recrutar tais inimigos exóticos que o time de Ichiban enfrenta nas ruas para que eles participem de rinhas em uma espécie de liga com direito a até mesmo uma Elite 4 e um embate contra o grande Campeão. A graça é que o Ryu Ga Gotoku ainda teve a audácia de implementar um sistema de raids pelas ruas de Honolulu que emula, virtualmente, o sistema já presente em Pokémon Go.

A segunda campanha paralela diz respeito à ilha Dondoko. Assim como os Sujimon têm a influência clara dos monstrinhos de bolso da Game Freak, o sistema de gerenciamento da ilha Dondoko claramente remete a uma das maiores euforias coletivas do período da pandemia de COVID-19: Animal Crossing.




Em determinado momento da campanha principal, Ichiban acaba sendo levado a uma ilha que um dia havia sido um grande resort, mas que foi completamente inutilizada por conta dos piratas do lixo que descartam todos esses materiais no local. Cabe ao nosso herói do cotidiano, então, se envolver na administração do empreendimento, tornando lotes tóxicos em saudáveis novamente para que possam ser construídas habitações e outras atrações para os eventuais visitantes.

Para isso, um sistema de crafting com incontáveis possibilidades foi atrelado a essa campanha da ilha Dondoko. Para se ter uma ideia da vastidão de opções, pense que boa parte de todos os assets produzidos para os cenários do Havaí, Ijincho e Kamurocho ao longo de anos da franquia pode ser forjada aqui. Adicionalmente, é necessário ir aumentando o nível dos lotes e derrotar os inimigos piratas para que a classificação do resort suba e ele possa receber novos visitantes com maior poder aquisitivo, o que desemboca no ciclo de revitalização do local.




Levando esses pequenos detalhes em consideração e somando-os à campanha principal, que sozinha já conta com um tempo considerável de duração, chega a ser compreensível quando Masayoshi Yokoyama, o chefe do Ryu Ga Gotoku, avisou que o jogador que decidir se aventurar pelo título de uma forma muito intensa pode acabar enjoando daquele que é o maior Yakuza já produzido na história da franquia.

Entretanto, vale a pena notar que Infinite Wealth não se mostrou cansativo ao longo das dezenas de horas investidas nele. Muito pelo contrário: a intenção dessa fala é expressar que um título tão bem cunhado pode (e até deveria) ser aproveitado de uma forma mais tranquila, seguindo o próprio ritmo do jogador, que pode optar por terminar a história de uma forma direta, aproveitar as férias com as atividades paralelas espalhadas pelo Havaí ou simplesmente cair de cabeça nas batalhas Sujimon ou da ilha Dondoko.




Há uma filosofia clara no Ryu Ga Gotoku em ser generoso no que diz respeito ao conteúdo embutido em seus títulos. Chega a ser admirável de se considerar, principalmente por se tratar de um estúdio com um calendário de lançamentos relativamente atarefado nos últimos anos: só entre 2023 e o começo de 2024, foram três. Ainda, o estúdio segue na contramão de uma indústria cada vez mais gananciosa, que infelizmente normalizou a entrega de experiências incompletas no intuito de fazer com que o consumidor siga pagando cada vez mais para preencher as lacunas.

É claro que muito dessa agilidade vem da reutilização de assets, mas, no fim das contas, trata-se de um modelo de trabalho que funciona e entrega produtos suficientemente únicos do mesmo jeito. Enquanto a empresa responsável pela franquia não aparecer no noticiário por se meter em acusações de abuso trabalhista, que continuem assim porque está dando resultado. 



Uma verdadeira aula no gênero

Ichiban Kasuga vê o mundo com outros olhos. Viciado em RPGs desde moleque, ele enxerga os próprios combates como se fossem um grande Dragon Quest, algo que se traduz na própria jogabilidade de RPG de turno oferecida pelo título. Já foi desse jeito na transição feita por Yakuza: Like a Dragon e segue assim em Like a Dragon: Infinite Wealth, mas com algumas melhorias que ajudam a justificar sua posição como uma verdadeira sequência.

A primeira mudança mais gritante diz respeito à locomoção dos personagens. Enquanto esse aspecto se dava de maneira automática no antecessor, aqui há uma espécie de zona determinada de movimento em que o próprio jogador pode posicionar o boneco da forma como preferir, o que facilita alguns ataques pelas costas e a utilização dos objetos do cenário como armas contra os inimigos.




Essa única mudança foi suficiente para trazer uma dinâmica de maior precisão nas batalhas, visto que a pré-visualização do trajeto das investidas permite a concepção de estratégias e da melhor forma de montar combinações de movimentos entre os outros membros da equipe, que podem participar tanto do ataque quanto emendar novos movimentos de oportunidade entre a troca de turno.

Com a área de combate se tornando um aspecto crucial das batalhas, a distância de que um personagem utiliza um golpe acaba ganhando importância também, influenciando no dano infligido contra os inimigos, que podem ser arremessados para longe contra um ataque muito poderoso e acabam recebendo dano adicional do impacto.




Pode parecer muita coisa, mas mesmo se considerarmos os tipos de dano (elementais ou de tipo de arma) ou os QTEs que ampliam os efeitos dos ataques, tudo é tão simples e prático que a compreensão plena de todas as possibilidades chega até a ser desnecessária. Olhando turno a turno, aparenta ser uma grande bagunça; contudo, na prática, funciona, o que torna a jogabilidade bizarramente divertida.

Essas mudanças tão simples, porém tão substanciais, acabam servindo como um benchmarking muito interessante para o gênero dos RPGs como um todo, visto que ele quebra os paradigmas que fundamentam algumas das discussões mais infrutíferas dos últimos anos na indústria.




No caso, Like a Dragon: Infinite Wealth mostra para outras empresas (cof cof Square Enix cof cof) que os RPGs de turno ainda têm seu lugar ao sol como um gênero popular em pleno 2024. Esse debate obviamente vem de uma manobra para tentar justificar os rumos controversos que certas franquias andam tomando sob a justificativa fraudulenta de que o gênero não tem mais para onde evoluir e, por isso, mudam seu estilo.

Isto é, só porque tal empresa que se diz uma suposta especialista histórica em RPGs de turno não consegue trazer novidades para o gênero, não significa que não haja espaço para tal. Aí, há um movimento de manada que começa a tentar justificar essas mudanças como um movimento natural do mercado, o que simplesmente não é verdade. E isso vale não só para a qualidade e sucesso alcançados por Infinite Wealth, como também para outros títulos lançados recentemente, como é o caso de Persona 3 Reload (Multi) ou mesmo Baldur's Gate 3 (Multi).




Afinal, logo no papel é notável o quão singular é a proposta de um RPG como Like a Dragon. Considerando os infinitos mundos de fantasia que o gênero já proporcionou, trazer todas as mecânicas características do gênero a um contexto pretensamente verossímil já é uma proposta diferenciada. Fazer isso funcionar a ponto de justificar a aplicação do gênero dentro da própria narrativa já faz com que o game seja considerado uma forma individualizada de poesia.

Também é muito bom ver que Infinite Wealth se atentou a alguns problemas de seu antecessor e conseguiu trazer um jeito de, se não os sanar, ao menos equilibrá-los. Em específico, isso se aplica bem à mudança do palco de Yokohama para o Havaí, que não só trouxe um frescor bacana à série, como igualmente consegue transmitir a impressão de um verdadeiro centro turístico movimentado e frenético, contrastando com a pacatez de Ijincho.




Além disso, nota-se que, embora este seja o mais longo Like a Dragon da franquia, a narrativa se mostra fluida, sem aquele maneirismo de demorar para pegar no tranco que é tão característico das entradas anteriores da série.

Nesse aspecto, talvez a única questão negativa que persista é a reutilização da Dragon Engine, uma vez que, em um hardware como o do PlayStation 5, a franquia já está apresentando sinais de estagnação gráfica. Entretanto, desta vez, vale a passada de pano por conta da facilidade que ela oferece ao permitir a integração da jogabilidade de porradaria beat’em up tradicional da franquia (no modo Ressurgimento do Dragão de Kiryu) ao sistema de RPG turno.

A única situação em que Infinite Wealth acaba ficando para trás em relação ao seu antecessor diz respeito às ocupações, que são o equivalente às classes de um RPG tradicional. Num contexto moderno, tais classes funcionam como profissões comuns aplicadas ao combate, como Detetive ou Guarda-Costas. Enquanto em Yakuza: Like a Dragon era necessário ir até a uma agência de emprego e checar se o personagem se qualificava para os cargos, no novo título o desbloqueio vem depois de uma súbita realização durante certas atividades de turista, como ver o engolidor de fogo em ação ou surfar.




No caso, o revés não está na explicação para a liberação dessas novas ocupações, mas na forma como elas simplesmente não têm lá muita graça. Digo, classes como Piromaníaco e o Aquanauta parecem ter uma aplicação em combate muito óbvia se comparadas ao Sem-Teto, Crupiê, Cozinheiro ou Rainha da Noite, por exemplo. Além disso, o título não estimula o jogador a pensar fora da caixinha e testar combinações diferentes, já que as ocupações padrão de cada personagem já são as que fazem melhor uso de seus atributos.

Também foi sentido certo desequilíbrio na curva de evolução. Infinite Wealth parece ter sido concebido sem a necessidade mínima de ficar grindando para evoluir os personagens, favorecendo quem simplesmente quer prosseguir na história sem que haja esse tipo de preocupação. Essa é a proposta do título e está tudo bem, mas o cumprimento de todas as histórias secundárias na hora em que elas aparecem acaba criando uma situação em que a party alcança níveis maiores do que os desafios naturais da própria campanha. A dificuldade mais alta até mascara esse defeito, só que não é suficiente para saná-lo de fato.

O feitiço havaiano de Ichiban Kasuga 

Ichiban Kasuga é um protagonista que cativa devido ao seu enorme coração. Apesar da cara de mau, ele é um diamante precioso e único, aquele cara do qual você não só quer ser amigo, mas também até gostaria de proteger caso alguém lhe fizesse mal, mesmo que ele consiga se virar sozinho. Like a Dragon: Infinite Wealth é a extensão de seu próprio protagonista. É um jogo único que consegue nadar contra todas as adversidades de uma indústria viciada e ainda assim entregar uma experiência brilhante. É uma daquelas ocasiões em que é necessário soltar aquele chavão batido e dizer que se trata de um produto que nos faz lembrar do motivo de gostarmos de videogame. 

Prós:

  • Mecânicas de RPG de turno aprimoradas em relação às do jogo anterior, mas ainda agradáveis tanto aos veteranos quanto aos novatos no gênero;
  • Ichiban continua um protagonista incrível;
  • O drama paralelo de Kiryu é tratado com uma delicadeza interessante;
  • Narrativa instigante e que faz jus ao histórico da franquia;
  • O novo contexto tropical trouxe um respiro bacana para a série;
  • O Havaí é enorme e denso (de um jeito positivo);
  • O Ryu Ga Gotoku segue se superando nas atividades secundárias.

Contras:

  • As novas ocupações não são interessantes, tanto a nível temático quanto a nível mecânico;
  • Fazer as missões paralelas e brincar de se perder no Havaí cria uma situação de desequilíbrio no desafio oferecido pela campanha principal.
Like a Dragon: Infinite Wealth — PC/XBO/XSX/PS4/PS5 — Nota: 9.0
Plataforma utilizada para análise: PlayStation 5
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Sega

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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