Análise: Immortality (Multi) é um labirinto narrativo único, sedutor e frustrante

Excelente como cinema interativo, mas atrapalhado por tentar ser um jogo que depende do acaso, sem uma estrutura sólida que garanta seu sucesso.

em 24/01/2024

Immortality
é incondicionalmente experimental. Por um lado, isso lhe garante o adjetivo de ser uma obra única. Por outro, esse mesmo predicado o exila enfaticamente ao status de jogo de nicho. Seu público específico deve ser composto, principalmente, dos que gostam de experimentação narrativa cinematográfica ou que, no mínimo, não se intimidam diante dela.

O título está tão longe de ideias convencionais de videogame que dá para indicá-lo até para quem não tem interesse em jogar, caso já se encaixe no nicho cinéfilo. Precisamos, portanto, começar com uma descrição sobre como exatamente é definido este jogo cinematográfico. Depois, comentarei os acertos marcantes e os erros infelizes dessa produção ousada.

O GameBlast já analisou Immortality quando foi lançado para PC em 2022. Esta análise de agora foi feita para a chegada do jogo ao PS5 e, dada a grande subjetividade da experiência, traz uma abordagem diferente da anterior.

Publiquei também um guia para iniciantes para ajudar a aproveitar melhor a experiência e evitar algumas frustrações com que me deparei.



“Ela era uma ideia”

Immortality é uma metaficção, isto é, uma ficção que reflete sobre a condição da própria ficção. Um filme dentro de um filme preenche essa definição, por exemplo. Esta obra, porém, complica as coisas um pouquinho mais. É um grande filme fragmentário e completamente não linear que, na superfície, se mostra como uma coletânea de filmagens restauradas que fingem ser parte de três filmes reais, mas que, na verdade, é um jogo de exploração narrativa mental e, ainda mais a fundo, encontramos por trás de tudo um… Calma, respira. É bem difícil descrever sem spoilers, mas vamos tentar.

Dá para explicar melhor, mas, se a confusão dessa descrição assusta, então talvez seja o bastante para entender que a obra pode não ser para você. Se desperta a curiosidade, porém, o caminho a seguir é apenas um: aprofundar. A estrada é longa, mas não podia ser diferente em uma obra de arte falha e densa como esta.

“O que aconteceu a Marissa Marcel?”

Desde o menu inicial, Immortality finge ser a tal coletânea mencionada. Ou seja, todos os elementos são parte da diegese, a realidade interna da ficção. Um exemplo prático é que, ao clicar na opção “Sobre”, nos deparamos com um texto explicativo sobre como o material de três filmes nunca lançados foram encontrados e agora estão disponíveis nesse arquivo de catálogo digital que você agora tem em mãos.


Os três filmes têm em comum serem estrelados pela mesma atriz, Marissa Marcel. O primeiro, de 1968, foi completado, mas não lançado. O segundo, de 1970, não foi concluído. O terceiro, de 1999, foi cancelado após a morte do diretor, que era o mesmo da película anterior.

O trailer chega a lançar a pergunta do mistério “o que aconteceu a Marissa Marcel?”, mas o jogo não faz isso. Ele não segura a mão de quem joga nem para indicar objetivos. Confiando na inteligência de seu expectador, Immortality deixa a coisa toda acontecer dentro da cabeça do público, uma decisão de design que não vem sem riscos. Antes de debater o tema, vejamos como é o conteúdo e o desenrolar dessa interação.



“Mais que um mistério”

Antes de ter contato com Immortality, vi que é comumente (e também oficialmente) descrito como uma trilogia de filmes, o que achei muito impreciso em relação ao que me deparei. O jogo não contém as cenas prontas dos longas-metragens, mas suas gravações, ensaios, testes, entrevistas e filmagens pessoais (fictícios, é claro). Não dá nem para dizer que a quarta parede é quebrada porque ela simplesmente não existe.

Todas as cenas de filmagens começam com a claquete, a referência da tomada e a voz de comando “ação” que marca o início da atuação. Há erros, esquecimentos, reencenações,  interrupções e vozes de bastidores dirigindo os atores. Nada disso fica deslocado da obra e, na verdade, a tornam ainda mais interessante e complexa.

Muitos trechos são ensaios fora do cenário, com cortina e holofote ao fundo e atores em roupas normais, sem os figurinos de personagens. Estes momentos servem também para enfatizar o paradoxo da atuação: não é real, mas sentimos como se fosse.



Logo, os elementos que escancaram que é tudo um faz de conta (ou seja, elementos da metaficcção) servem para amenizar passagens pesadas, como um estupro, por exemplo. Mesmo assim, a atuação ainda nos transmite a imersão que faz nossos sentimentos penderem entre a consciência da ficção e a sensação de realidade.

Somos cativados pela ambiguidade de vermos atrizes e suas personagens transitarem entre uma e outra diante de nossos olhos (lembrando da camada extra de que ambas são, na verdade, personagens interpretadas por atrizes reais que trabalharam para o jogo Immortality). Onde começam e terminam essas personas?

O melhor exemplo é a protagonista. Além de si mesma, Marissa Marcel vive quatro personagens diante das câmeras dos três filmes. Se incluirmos a atriz real Manon Gage, que faz um excelente trabalho para viver a protagonista, são cinco pessoas misturadas em nossos esquemas mentais.




Assim, podemos dizer também que Immortality é como o making of fragmentado de três filmes fictícios, tecendo comentários sobre a própria mídia representativa do cinema. Mas como interagimos com tudo isso?

“Você completou a preparação para explorar e aproveitar este projeto de restauração”

Começamos com uma entrevista de TV com Marissa. Ao final, o tutorial da coletânea diz que podemos percorrer clipes de vídeo com elementos associados entre si. Por exemplo: se clicarmos no entrevistador, vamos a outro clipe em que ele recebe em seu programa o diretor dos dois filmes finais. Se clicarmos na caneca de café, somos levados a outra cena que também tem copos ou bebidas. Já Marissa, sendo a protagonista, está presente em dezenas e dezenas de trechos.

Todas essas cenas “descobertas” passam a integrar a Grade de Clipes, um grande catálogo onde podemos voltar a elas o quanto quisermos, usando ferramentas de vídeo como adiantar o tempo, retroceder rapidamente, ir direto ao começou ou ao fim.



Não há aqui uma relação de causa e efeito entre os elementos catalogados e os clipes associades entre si. Não há aqui uma lógica em que você deduz que um quadro de fundo deve ser importante e clicar nele para chegar a uma cena reveladora, seguindo um passo a passo de pistas detetivescas precisamente colocadas.

Não, a coisa toda aparenta ser um puro trabalho de catalogação em que o que importa é a presença de determinados elementos semelhantes, não um sentido por trás deles. Clicar em sangue leva a outro vídeo que contém sangue, mesmo que seja de um filme diferente e um nada diga a respeito do outro.

Com isso, a pessoa que assiste a Immortality passa de uma cena a outra quase a esmo, como se percorresse um labirinto em busca de algo que não sabe bem o que é. Quanto mais clipes encontra, mais labiríntica fica a estrutura, mas os filmes também ficam mais completos e coesos.



Por isso eu disse acima  “quase a esmo”. À medida que avançamos, entendemos o suficiente de cada um dos três filmes para inferir algumas lacunas de compreensão. Essas lacunas se tornam objetivos mentais para tentar encontrar as peças restantes que formam o quadro geral, mesmo que não tenhamos os meios para executar uma busca assertiva.

“Sedução é um trabalho com o qual me identifico”

O caminho, portanto, só pode ser um: adentrar mais a fundo no labirinto. Felizmente, as histórias, personagens e atuações são incentivos suficientes para isso. Mesmo com a confusão da forma completamente fragmentada, é possível entrar na imersão da experiência em que uma cena puxa outra, e outra, e outra, no melhor estilo “vou ver só mais uma”.

Na maior parte do meu tempo de jogo, era isso o que eu tinha: vontade de entender melhor os filmes isolados, o direcionamento das dúvidas geradas pelas lacunas e a esperança de que tudo levasse a algum tipo de fechamento que eu fosse capaz de perceber quando o encontrasse.



No entanto, quando alcancei cerca de 80% da Grade de Clipes, subitamente surgiu o segmento obscuro que levou aos créditos finais, de forma totalmente inesperada e nada conclusiva para mim.

Mencionei acima os riscos da falta de direcionamento e, no meu caso, eles se concretizaram. A natureza inteiramente não linear da experiência me levou a ver a cena final antes que eu tivesse encontrado partes da história que respondem a perguntas cruciais. Com isso, o mistério perdeu força ao se “encerrar” sem me permitir interpretações.

Com a sensação de que deixei passar conexões preciosas, tentei vasculhar os fragmentos na busca por outros novos, aumentando o meu labirinto. Quanto mais cenas encontrava, porém, menos restavam a ser achadas e mais difícil ficava a tarefa de completude. Isso aumentou a noção de acaso e, como efeito, instintivamente, passei a revisitar cenas em atitude mais interessada em identificar possíveis itens de catálogo do que na narrativa em si.




Assim, cheguei a uma situação de conflito no qual a grande dose de acaso na mecânica de busca se tornou mais importante do que a narrativa para conseguir preencher as lacunas do próprio enredo.

Minha impressão é que o design de progressão precisaria de pontos de convergência que dessem uma pitada de linearidade disfarçada para garantir que, mesmo que cada um faça seu próprio caminho entre o mar de cenas, todos encontrarão as peças-chave que fornecem o fechamento.

Não é uma questão de querer que o jogo solucione o mistério para mim, mas de como as ferramentas são inadequadas para que eu mesmo tente intencionalmente encontrar as respostas. Em questão de investigação, há mínimos espaços para raciocínio e dedução; no máximo, a nossa intuição entra em jogo aqui e ali.



A impressão de aleatoriedade impera, tornando o trabalho de arquivista em busca de uma cena em algo repetitivo e mecânico, cheio de voltas e becos sem saída. É muito diferente do fluxo intenso que fez a estrutura fragmentária ser tão sedutora no começo, quando tudo era uma descoberta, uma peça fresca do quebra-cabeça.

Outra forma de atenuar a trabalhosa busca final seria ter mais tipos de marcadores para organizarmos melhor (tanto no jogo como na mente) as cenas já encontradas. Só podemos marcá-las como “Favoritos”. Um menu de catálogo mais prático e com mais funções também ajudaria, especialmente uma que permitisse voltarmos instantaneamente às últimas cenas que vimos, favorecendo o vai e vem que já existe no jogo ao pular de uma cena a outra.

“O que eu acabei de tomar?”

Em minhas análises, não gosto de comentar segredos dos jogos, mas preciso abordar um pouquinho dos que temos aqui, tentando ser vago para não quebrar a surpresa.



A questão é que Immortality tem muitas cenas escondidas, tão estranhas que são impactantes nos primeiros contatos com elas. Como elas parecem ser completamente desconectadas da realidade dos filmes de Marissa Marcel, o efeito de mistério é elevado ao máximo, tornando-se confusão atônita. Existe, portanto, uma narrativa sorrateira por trás da que assistimos nos fragmentos.

Existe uma maneira de encontrar essas partes obscuras e, em algum momento, a tendência é que a pessoa que joga esbarre em uma delas e passe a ficar ligada nas dicas de quando há algo rolando nos bastidores.

O problema é que o método funciona facilmente para alguns clipes, mas para outras não, precisando ser aplicado de forma específica. Assim, o que me aconteceu foi que tive vislumbres de algumas cenas escondidas e achei que eram apenas isso: vislumbres sobrepostos, cenas "fantasmas" que não se desenvolviam em vídeos completos como os outros segredos que ativei com facilidade após ter captado a lógica deles.



Acontece que são justamente essas cenas escondidas de forma ainda mais obscura que trazem as explicações sobre as principais perguntas que surgem no decorrer de Immortality. Sem elas, não há nem como imaginar a conexão entre os três filmes e os segredos que há por trás de tudo. Foi muito frustrante ver o jogo dizer que cheguei ao final mesmo com um grande abismo de falta de informações.

Toda a estrutura me levou a querer completar a Grade de Clipes (cheguei ao que calculo ser 94%), mas, na verdade, eu não sabia que o objetivo real estava em ativar segredos específicos em cenas que eu já tinha visto antes, várias vezes, em alguns casos. Quando descobri que durante todo o tempo havia deixado passar porções tão importantes, já era tarde demais para que eu tivesse a disposição de investigá-las uma a uma.



Aqui vai outro problema da estrutura simplista do jogo: dependemos da memória ou do retrabalho minucioso para revisitar as cenas escondidas. Seria muito útil se tivéssemos um segundo catálogo reservado para elas, assim como o uso de marcadores diversificados, como já mencionei.

Immortality também falha em rastrear o progresso do jogo, tendo como resultado o tal final súbito já mencionado. Uma solução possível seria criar trilhas de revelações de acordo com a completude da grade e contabilizar quais cenas escondidas importantes já foram vistas. A falta disso leva à contradição de que o entendimento depende inteiramente das cenas secretas, mas o requisito para ativar o final depende quase exclusivamente das normais que as contém.



Um controle imersivo para um filme interativo

Antes de encerrar, devo acrescentar que Immortality faz bom uso do DualSense, especialmente da vibração e da caixa de som do controle. Isso é notável quando estamos avançando ou retrocedendo pelos vídeos (o que fazemos o tempo todo), pois a intensidade do feedback háptico e do som varia de acordo com a velocidade, reforçando a materialidade sensorial de quando usávamos fitas de vídeo.

O resultado encaixa muito bem com o jogo, pois, com isso, o aparelho que temos em mãos simula a sensação de máquinas como videocassetes e sutilmente colabora para a imersão no todo. Eu realmente gostaria que mais jogos aproveitassem a combinação entre vibração e som provida pelo DualSense (Astro’s Playroom ainda é o melhor exemplo disso).



“Arte é a melhor defesa”

Mesmo como uma experiência cinematográfica profundamente interessante e envolvente, Immortality erra em fazer com que a descoberta de seus fragmentos não lineares se ampare demais no acaso, sem criar uma linha de causa e efeito que permita aplicar algum tipo de raciocínio dedutivo.

A ausência de mecânicas que providenciem um suporte lógico retira de nós qualquer meio de agência e investigação intencional, criando labirintos que são instigantes, mas, no fim das contas, dependem demais da sorte para definir se nosso caminho será satisfatório e conclusivo ou frustrante e repleto de lacunas.

Os problemas poderiam ser resolvidos com algumas modificações simples nas mecânicas de organização das cenas, assim como com uma estrutura de jogo internamente mais focada, conduzindo sutilmente o progresso quando necessário, a fim de evitar que a jornada se torne um longo e cansativo ciclo de caçar fragmentos atrás de objetivos ocultos.

Pela ousadia narrativa, filmes e atores, ainda é um título altamente recomendável ao público-alvo, cruzando os dedos para que o acaso seja gentil e conceda uma condução narrativa mais intuitiva do que foi para mim.



Prós

  • Uma experiência de cinema única e instigante que atinge seu propósito de nos fazer querer vê-la toda e saber mais;
  • O conteúdo e a forma afetam e convidam a muitas reflexões possíveis;
  • Os personagens e atores trazem performances envolventes e impactantes;
  • Os três filmes que compõem a espinha dorsal da obra são interessantes em si mesmos e em conjunto;
  • Bom uso do DualSense para favorecer a imersão.

Contras

  • A total não linearidade corre o risco de deixar passar elementos importantes para a compreensão, inclusive o de ver o fim sem ter encontrado as respostas que dariam sentido a ele;
  • Faltam mecânicas que deem mais agência a quem joga, pois não é possível seguir um rastro intencionalmente, dependendo apenas da sorte e do trabalho repetitivo de ficar clicando em elementos de cena até encontrar algo relevante, o que fica mais difícil e raro com o avançar do jogo;
  • A falta de objetivos claros pode levar a ignorar a necessidade de insistir em ativar certos segredos que são essenciais ao entendimento da obra;
  • A narrativa principal e a secreta têm contextos e tons distantes demais entre si, o que pode levar à sensação de que uma atrapalha a outra;
  • O jogo se beneficiaria de mais funções de qualidade de vida, como marcadores para organizar as cenas e opções de retornar rapidamente às últimas cenas vistas.
Immortality — PS5/PC/XSX/Mobile — Nota: 7.0
Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Heloísa D’Assumpção Ballaminut
Análise produzida com cópia digital cedida pela Half Mermaid Productions

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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