Blast from the Past

Os 15 anos de Devil May Cry 4 (ou: a inesperada virtude do exagero satirizado)

Com um novo protagonista, o quarto título da série da Capcom tira uma com a cara da própria audiência que não lida bem com esse tipo de mudança.

em 16/12/2023


Há pouco mais de quinze anos, Devil May Cry 4 (X360/PS3) era o primeiro da série a não ser exclusivo para a terceira geração do PlayStation, contando também com uma versão para Xbox 360. Antes disso, apenas DMC3 tinha recebido um port em outra plataforma, em edição especial para o PC um ano depois do lançamento original.


Naquela época, a franquia havia se destacado por evoluir de um protótipo recusado de Resident Evil para uma das mais influentes e refrescantes novas propriedades intelectuais da sexta geração ao apresentar uma jogabilidade hack and slash visceral e uma história que satiriza o lado demoníaco da mitologia judaico-cristã ocidental.

Quando anunciado, o quarto game da série acabou gerando certa discussão devido ao fato de o protagonista não ser o já conhecido Dante, como nos jogos anteriores, mas um novato chamado Nero. Não apenas isso, ele era muito similar ao Dante, embora mais novo. Apesar da aparência, suas personalidades divergiam consideravelmente, algo que serviu para calcar o principal tema por trás do título: sua carga metalinguística ao tentar emular uma versão parodística de seu próprio jogador.



Ela, o namorado dela e você

Nero, cujo nome vem do imperador romano alegadamente responsável por incendiar a própria cidade que governava, é um introvertido garoto que não se gaba de sua força como seu antecessor. Sabe quando dizem que “grandes poderes trazem grandes responsabilidades”? Pois bem, a última coisa que ele queria era ser responsável e carregar um fardo nas costas. Por conta disso, escondia o seu braço demoníaco, o Devil Bringer, das pessoas à sua volta para não as chocar — foi, inclusive, tachado de emo pelo público, em referência à tal subcultura que via sua popularização no mesmo período.

Essa relação do jogo com o contexto social em que ele foi lançado não é por acaso. Devil May Cry sempre foi uma espécie de paródia dos próprios videogames, ideia atrelada à sua essência e consequente do envolvimento de Hideki Kamiya logo no primeiro título, um dos principais nomes do Clover Studio, de God Hand (PS2), e da PlatinumGames, melhor representada por Bayonetta (Multi).




Tendo isso em vista, da mesma forma que Dante é a personificação exagerada da ideia de que “jogar videogames é maneiro e descolado”, Nero acaba assumindo o outro lado dessa moeda ao representar, como um personagem de inserção, o estereótipo do gamer recluso. É quase a mesma coisa que Neon Genesis Evangelion fez com seu protagonista, Shinji Ikari, que na verdade é uma inserção alegórica de um otaku médio e tímido.

Assim, mesmo sendo um pária social com dificuldades de relacionamento, Nero acaba adentrando em uma jornada para destruir a seita religiosa chamada Ordem da Espada e derrotar seu líder. Depois de um bom naco da campanha, o personagem em questão é jogado para escanteio por um momento e finalmente assumimos o controle de Dante.

É aí que surge um dos principais problemas de Devil May Cry 4: no papel do tradicional protagonista, devemos nos aventurar praticamente pelas mesmas fases que já superamos, algo que quebra o ritmo do game e normalmente é encarado como uma forma preguiçosa e artificial de estender sua duração.



Devil May Cry é como música — e bem pauleira

Tais defeitos nos lembram, entretanto, que a principal estrela de Devil May Cry é a sua jogabilidade. Fazendo jus à história da franquia, cuja filosofia é a de estimular que o estilo de jogo seja o mais radical possível (no sentido esportista da palavra), o título tem como premissa básica a realização de combos que vão se tornando cada vez mais maneiros por conta do sistema de evolução de habilidade, fazendo com que os rampantes sejam progressivamente mais estilosos de uma maneira cíclica.

Na prática, essa jogabilidade se destaca justamente pela diversidade que ela oferece. Não somente na condução praticamente rítmica do apertar dos botões nos momentos certos com o intuito de manter os longos combos, o mérito está na variedade de formas como podemos fazê-los.

Por exemplo, ao usar o Devil Bringer para puxar o inimigo para perto da área de ataque do personagem, o jogador pode arremessá-lo para o alto, atacá-lo com os golpes amplificados pelo motor de motocicleta equipado na espada Red Queen e finalizá-lo com um poderoso golpe vertical que irá devolvê-lo de volta ao chão para poder engajar em outro combate individual de maneira fluida. Nesse aspecto, Devil May Cry 4 joga como música. De um gênero bem agressivo de hard rock ou heavy metal, mas com certeza ainda é música.




Tudo isso, claro, vai depender da capacidade do jogador em assimilar essa diversidade de controles. Sim, ainda é possível vencer o jogo sem nada disso e se apegar aos comandos simples. É perfeitamente compreensível querer jogar de maneira segura com o intuito de evitar o stress e se apegar a certas táticas que podem ser mais eficazes contra os chefões, evitando o desgaste eventualmente gerado pela dificuldade. Entretanto, se você pode fazer isso com estilo, por que vai deixar de fazê-lo? Videogames são para isso. O game over não é definitivo, no fim das contas. Afinal, é só apertar para reiniciar.

Visualmente, Devil May Cry 4 também é muito bonito, sendo produto de um momento da indústria em que os desenvolvedores ainda estavam explorando e aprendendo a respeito da qualidade e da capacidade dos até então novos sistemas vigentes. Dessa forma, é interessante como o jogo acabou fugindo um pouco dos espaços fechados com estética meio gótica, meio neo-noir, já característica da franquia, e apostou em visuais mais amplos e iluminados, contando inclusive com variações de ambientes que vão desde a igreja da introdução a até mesmo florestas abertas e fases de neve.



 “Featuring DanteVergil from the Devil May Cry Series”

Em 2015, uma edição especial de Devil May Cry 4 chegou a ser lançada para o PlayStation 4, Xbox One e PC. Além de proporcionar um visual repaginado e mais adequado para as ditas plataformas, o adicional dessa nova versão é permitir que o jogador controle outros personagens além de Dante e Nero, como Vergil, Lady e Trish.

Enquanto as garotas são nada mais do que versões modificadas dos personagens padrão e podem ser jogadas apenas em fases específicas, Vergil, por sua vez, tem sua jogabilidade reciclada de DMC3 e pode ser controlado em todas as missões. Seu principal diferencial, entretanto, trata-se de uma mecânica única de “concentração”: à medida que ele vai lutando sem sofrer danos e sem errar ataques, um medidor na tela vai enchendo e os ataques dele vão ficando cada vez mais fortes.



Meu amigo, a piada aqui é você!

Devil May Cry 4 ri do seu próprio público. Com seus personagens escrachados e roteiro exagerado, o título traz um papel de bobo da corte ao apontar o dedo para o seu jogador e pede para que ele não se leve tão a sério. É um jogo que tem gosto de ser um jogo e quer que sua audiência entenda isso numa boa, de um jeito bem-humorado.

A graça, entretanto, está como o entendimento dessa mensagem acabou se perdendo em algum momento não identificado, a julgar pelo acesso de fúria dos fãs quando seu sucessor, DmC: Devil May Cry (Multi), veio à tona com um novo protagonista e satiriza mais uma fase estereotípica do jogador de videogame: a do rebelde sem causa aparente. Esse papo, entretanto, fica para outro dia.

Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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