Lies of P é declarada e orgulhosamente um soulslike, subgênero de RPG de ação com mecânicas punitivas iniciado por Demon’s Souls em 2009 e popularizado por Dark Souls, em 2011.
Quando finalizamos Dark Souls, temos a opção de reacender a primeira chama ou deixá-la apagar. Eu apenas segui o fluxo e reacendi tudo, algo que pareceu melhor que a alternativa da escuridão. Afinal, o Morto-vivo Escolhido estava ali para isso, não era? Não era? Não? Sim, eu entendia quem era Gwyn e a melancolia de sua existência, e não, eu não entendia muito mais que isso. Cheguei, zerei, taquei o fogo em Lordran e devolvi o disco de PS3 ao meu colega.
Anos depois, com uma grande carga de assistir vídeos interpretativos de YouTube, eu cheguei à conclusão de que, se tivesse a oportunidade de entender a campanha enquanto jogava, minha escolha seria a inversa. Por mais que eu ame Dark Souls e Bloodborne, eu levo a frustração de aceitar que não vou compreender muito bem o que está acontecendo, para onde vou e quem são essas criaturas desgraçadas de quem eu só sei o nome que enfeita a barra de vida e que tenho que matá-las antes que me matem.
Felizmente, Lies of P tem uma história bem mais acessível que a média dos soulslikes. O principal da trama é visto em diálogos e cenas ao longo da campanha. À medida que a aventura de P avança, recebemos explicações diretas sobre os locais, as dúvidas e os objetivos.
Ainda temos os tradicionais fragmentos espalhados por várias partes do jogo, como peças de um quebra-cabeças que devemos montar para ver o quadro mais amplo. Isso não quer dizer que a estrutura seja críptica. Ao contrário, busca-se construir um contexto rico e planejado que dê sentido à aventura sombria de P contra títeres, carcaças e humanos.
A história não é perfeita e carrega certos clichês, um vilão mais simples do que eu gostaria e algumas contradições aparentes aqui e ali. No entanto, quanto mais me aprofundei nela, mais apreciei os detalhes e motivações — uma mostra disso é como meu relato do conto se expandiu para quatro artigos!
Como na primeira parte vimos a história de Krat e os títeres que construíram sua glória, nesta segunda, os Alquimistas são revelados dos bastidores e assumem os holofotes no palco do desastre que assombrou a cidade. Os links para os demais artigos sobre Lies of P estão no final.
As mentiras de Pistris
Já vimos antes como os Alquimistas chegaram a Krat e ascenderam ao poder até mesmo acima das famílias antigas que dominavam Krat há séculos. Entre eles, havia o ambicioso Simon Pistris Manus, braço direito do líder Valentinus Monad.
Com planos megalomaníacos que ecoam em sua risada de vilão, Manus foi implacável para assumir a liderança do poderoso grupo, continuando a busca pela vida eterna a partir do mesmo caminho que seu pai, Pistris, havia trilhado. Para isso, interveio contra o seu superior, tentando ocupar o comando da ordem, o que ele conseguiu após a morte de Valentinus — não encontrei confirmação de que Manus estivesse diretamente envolvido, mas é provável. Essas circunstâncias são muito importantes e serão abordadas na terceira parte.
(É digno de nota que Pistris significa "monstro marinho" em latim, uma alusão ao animal que engole Geppetto e Pinóquio na história original)
Pistris explicou em suas pregações que, muito tempo atrás, nos tempos de São Frangelico, os desejos humanos um dia alcançaram uma estrela boa. É sabido que os pedaços de meteoros conhecidos como Fragmentos de Estrela são capazes do Chamado da Fenda, um desejo que cruza dimensões para clamar pela benevolência de alguma entidade que o atenda. É assim que P pode invocar o Espectro para auxiliá-lo em combate.
Pois bem, aquela estrela ficou curiosa, desceu à terra e assumiu forma humana esplendorosa, à qual as pessoas logo chamaram de Anjo, como um enviado de deus ou como um próprio deus. O anjo era imortal e quis conceder a imortalidade às pessoas, mas muitos não aceitaram a dádiva e, tomados pelo medo e a raiva, despedaçaram o ente celestial. Essa história deve ser parcialmente referente ao cristianismo, mas isso não faz parte de nosso assunto.
Um dos pedaços que sobraram foi o Braço de Deus, uma relíquia sagrada que durou através dos tempos e passou de mão em mão entre aqueles que a roubavam por motivos próprios. Sabemos que a relíquia esteve com Alquimistas estrangeiros, com os Alquimistas de Krat, com o arcebispo Andreus e com Geppetto, antes de voltar à posse de Manus perto do fim desta história.
As mentiras de Andreus
Como vimos antes, o arcebispo Andreus, um homem de devoção e generosidade tão admiradas pelos fiéis que o comparavam ao santo Frangelico, foi quem primeiro aceitou os Alquimistas quando estes chegaram à pobre Krat, cerca de 30 anos atrás. Além da cidade, a catedral enriqueceu muito com esse contato e, com ela, também Andreus.
Mesmo sendo um homem muito generoso, o crescimento de seu poder o corrompeu e ele sucumbiu à ganância. Assolado pelo remorso, o arcebispo tentava reprimir sua culpa em negação, preferindo apontá-la apenas aos Alquimistas. Com isso, interferir nos planos deles foi uma maneira de se justificar, dizendo que faria isso pelo povo, não por si mesmo. Uma mentira, é claro.
Andreus tinha uma serva chamada Cecile, mulher que já havia cometido assassinatos, movida por algo que o arcebispo entendia como uma compulsão do sangue. Ela se redimiu e se devotou à fé, mas comportamentos sonâmbulos criaram no líder o temor de que fosse sinal dos pecados dela retornando. Ele viu nisso uma oportunidade de enviá-la à Ilha dos Alquimistas para receber tratamento lá, mas, na verdade, queria que ela roubasse o Braço de Deus.
A intenção de Andreus era usar a relíquia para se conectar ao Anjo divino, mas ele imaginou que o efeito seria o inverso: ele foi transformado não pela salvação que pregava, mas por seus verdadeiros desejos gananciosos. Tornou-se uma fera deformada devoradora do Ergo que aflora dos seres vivos, crescendo muito em tamanho à medida que comia.
Os habitantes de Krat que se refugiaram na catedral durante o Frenesi dos Títeres não sabiam o destino que os esperava. Apenas Cecile, já doente, permaneceu viva quando P chegou ao local e enfrentou o arcebispo, mas ela faleceu pouco depois, ainda com seu coração dedicado à memória do bom sacerdote que a regenerou em seus piores momentos.
As mentiras de Simon Manus
De alguma maneira, o Braço de Deus foi obtido por Geppetto, que o escondeu em um trem da Oficina. Com o estado avançado da degradação de Krat, o Braço era o que faltava a Manus para que ele pudesse colocar a parte final de seu plano em prática.
O objetivo? Abdicar de sua humanidade, ser despedaçado tal qual o deus que concedia a imortalidade e ressuscitar como uma divindade desperta. A preparação para o momento final, em que o Braço seria usado por Manus para levar seu desejo aos céus, levaria Krat ao fim.
Não era segredo que a superação da condição humana mortal sempre esteve no topo das obsessões dos Alquimistas, mas os métodos empregados foi o que diferenciou o comando de Simon Manus. O fanatismo superou qualquer limite ético em nome do ideal de evolução e muitas vidas foram ceifadas. Krat e a Cidade do Luar se tornaram grandes laboratórios repletos de cobaias.
Para Pistris, seu filho Simon foi um fracasso no processo de ascensão. O jovem idolatrava seu pai e queria cumprir os propósitos dele, mas a frustração em sentir-se reprovado e abandonado pelo pai o fez espelhar seus sentimentos: para ele, o pai era como um deus surdo que falhou em ressuscitar. Simon decidiu que alcançaria a evolução que Pistris não obteve.
Os Alquimistas sob a tutela de Manus sabiam que o Ergo era a chave para atingir suas intenções. Um longo processo foi desencadeado a partir da Abadia Arche, uma enorme torre inacabada na Ilha dos Alquimistas. Lá, construíram uma máquina poderosa o suficiente para absorver toda a substância na região de Krat, mas ainda era perigosa para ser usada. Primeiro, precisariam descobrir uma maneira de liberar todo aquele Ergo trancado no subsolo, nos títeres e nas mentes humanas.
Os experimentos intencionavam descobrir como concentrar Ergo em uma cobaia para produzir mutações teoricamente evolutivas. Um problema era conseguir isso sem que a pessoa morresse e a aposta insana estava em unir um processo duplo de enfermidade e cura, uma purificação da essência à qual apenas os melhores poderiam sobreviver.
As mentiras da Doença da Petrificação
Não se sabe com certeza a origem da Doença da Petrificação, mas os surtos coincidem com a descoberta das minas de Ergo no passado distante e, depois, com a exploração do minério pelos Alquimistas, anos atrás. Talvez esteja relacionada ao Kroud, mas muito pouco é dito sobre essa substância e qualquer afirmação seria meramente hipotética — ainda que a hipótese de relação seja forte.
Clinicamente, a doença causa alterações físicas, deixando o sangue da vítima azulado e eclodindo escamas minerais pelo corpo, como podemos ver no rosto de Antonia Cerasani. Suspeitosamente, a cor azul é associada ao Ergo. Já o nome da enfermidade vem da paralisia progressiva do corpo, até o ponto em que o doente não mais realiza suas funções vitais.
Também são afetadas as faculdades mentais e a pessoa em estado avançado é acometida por delírios, sem perceber a realidade, ao ponto de uma mãe, já cega pela doença, receber um pequeno títere e achar que é seu bebê — uma mentira misericordiosa de P para apaziguar os últimos momentos da desconhecida confinada na zona de quarentena.
Agora, uma nova onda epidêmica cobriu Krat, mais devastadora do que nunca. Prontamente, os Alquimistas acolheram doentes para pesquisar uma cura. Foi recomendado que todos se trancassem em suas casas para evitar a contaminação, mas muitos tentaram fugir pela estação de trem ou buscaram refúgio na Catedral. Os primeiros foram encurralados pelo inesperado Frenesi dos Títeres e os segundos nunca mais foram vistos.
Um Alquimista menor, chamado Clark Shore, roubou as pesquisas dos seus superiores que investigavam uma suposta cura para a Doença da Petrificação. O plano era vender o elixir para fazer dinheiro enquanto fazia o bem, o que lhe rendeu a alcunha de Dr. Cura-Tudo.
A verdade era mais sinistra e Shore ficou horrorizado quando viu que o medicamento produzia uma transformação muito pior nos pacientes: de sua agonia brotavam necroses, erupções, convulsões, violência e monstruosidades inimagináveis. Muitos morreram dos sintomas, outros morreram quando os tentáculos da doença eclodiram de seus crânios como pequenos ramos brotando da terra em um vaso. Os que sofreram mais mutações ficaram conhecidos como Carcaças, um estado pior que a morte.
Assim, ficou claro que a epidemia foi provocada pelos Alquimistas de Simon Manus para deixar a cidade refém dos experimentos que deveriam salvar vidas, mas, na verdade, conduziam apenas o próximo passo na obsessão pela criação de vida eterna. Aos olhos de Manus, as Carcaças surgidas a partir do tratamento da Doença da Petrificação eram parte do caminho para a evolução da espécie humana.
Os mais fortes, porém, sobreviveram como criaturas mutantes de pele pálida, penetradas por tubos que administram o elixir. Estes são os lacaios dos Alquimistas. Uma das experiências que alcançaram maior sucesso foi a de trazer de volta à vida Victor, o Campeão, um lutador muito conhecido por sua grande força, o que fazia dele uma cobaia ideal para sobreviver aos métodos nefastos dos cientistas.
O maior êxito foi obtido com os experimentos realizados em Adriana, uma irmã da ordem dos Alquimistas que pregava as palavras de Pistris. Ela aceitou receber em seu corpo o perigoso elixir, arriscando-se entre os terríveis efeitos colaterais e a chance de evoluir.
Sua força e devoção permitiram que sobrevivesse ao processo e se tornasse aquela que ficou conhecida como Laxasia, a Absoluta; isto é, uma forma humana completa (a alcunha em inglês é Laxasia, the Complete) e, suponho, imortal. Mesmo sendo superior aos demais Alquimistas da Ilha, ela permaneceu leal a Simon Manus e o serviu como protetora, pois o amava.
É claro que houve oposição às atividades insanas da ordem e devo mencionar alguém que conhecemos apenas por textos. O jornalista chamado Medoro empenhou-se em expor a ameaça dos Alquimistas, mas não conseguiu impedir a catástrofe que se derramou sobre Krat, mesmo contando com conexões importantes dedicadas a salvar a cidade, como Sophia Monad, Lorenzini Venigni e o Espreitador Alidoro, o Cão. No final, Medoro também sucumbiu à Doença da Petrificação.
As mentiras convergem para o final
Nossa viagem pela lore de Lies of P se aproxima do fim, mas ainda restam muitas mentiras e as principais verdades para tratarmos mais à frente, na parte derradeira desta série de textos que se aprofundaram em tão inesperada adaptação de um conto infantil. O final tratará diretamente da história de P, Geppetto, Sophia, mas teremos uma parte extra para trazer os recortes de outros personagens que tiveram seus papéis nessa farsa de títeres presos às cordas dos titereiros.
Sobre Lies of P
- Impressões de Lies of P: a demo exibe com orgulho um soulslike ao pé da letra
- Análise: Lies of P transforma Pinóquio e a Belle Époque em um dos melhores soulslike
- Dicas para ajudar iniciantes a sobreviver aos suplícios de Krat — Parte 1
- Dicas para ajudar iniciantes a sobreviver aos suplícios de Krat — Parte 2
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 1: Krat e seus títeres
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 2: As ambições dos Alquimistas
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 3: As mentiras reveladas
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 4: As histórias paralelas
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut