Quando o estúdio sul-coreano Round8 anunciou sua ideia de uma adaptação soulslike para a história de Pinóquio, não parecia algo para se levar muito a sério. Com o tempo, porém, o projeto mostrou-se não apenas um bom jogo, mas também uma construção de mundo rica e interessante.
É bastante claro que a base de Lies of P realmente vem do romance infantil criado em 1883 pelo italiano Carlo Collodi, mas há muito mais mexendo as cordas dessa história. Enquanto o horror dá as caras por meio do Frenesi dos Títeres, a Doença da Petrificação, os Alquimistas e as pinceladas cósmicas da religião local, creio que a ficção científica é um campo mais central ao contexto.
Temas caros à sci-fi estão presentes na identidade do jogo, em especial o questionamento do que é ser humano, um ponto de convergência com a história do boneco de madeira que queria se tornar um menino.
Os títeres são uma variante dos robôs, que, enquanto ficção, são derivados da ideia de que o humano é feito à imagem e semelhança de um Criador e, por isso, também deseja ele mesmo criar vida semelhante a si. Essa vida artificial existe em outro sentido de existência e levanta o questionamento das próprias fronteiras que definem a humanidade.
A inteligência artificial também é um espelho em que vemos alguma semelhança. Será ilusão, ou realmente podemos nos entender melhor por meio dessa imagem projetada? Certamente, poderíamos refletir os limites do livre-arbítrio e a ética do Grande Pacto e sua origem literária nas Três Leis da Robótica, de Isaac Asimov. Não hoje.
Outros arquétipos da ficção científica se manifestam em Lies of P, como o progresso industrial, a cidade do futuro, o gênio da ciência, a epidemia, a exploração do trabalho e a distopia fruto da ciência que deu errado. Poderíamos viajar em cada um desses pontos, há bastante material para analisarmos a obra como um produto sociocultural multifacetado. Desta vez, vou me ater apenas ao conto que dá vida ao jogo. Quem sabe outro dia venha a oportunidade?
- Por hoje, concentraremos na história de Krat e seus títeres.
- A segunda parte focará nos Alquimistas e sua busca pela ascensão à imortalidade.
- A terceira desatará os nós das revelações finais e contará a história que envolve P, Geppetto e Sophia.
- A quarta e última parte reunirá as histórias paralelas que formam a vida de Krat.
Captei todas essas histórias a partir dos diálogos, notas, descrições de itens e telas de carregamento. O objetivo não é criar teorias e hipóteses, então deixei de lado os pontos mais incertos, mas ainda há algumas lacunas que precisei preencher para conectar eventos, especialmente no que envolve a cronologia confusa.
As mentiras de Krat
Esta é, antes de tudo, uma história de Krat, a pequena cidade que, na virada para o século XX, se tornou um farol luminoso diante do mundo — isto é, antes de se apagar completamente em uma escuridão que a lançou no abismo.
Há muito tempo, São Frangelico descobriu uma igreja no alto de um penhasco, onde encontrou o anjo de uma asa. Aos pés da encosta, foi formada a Cidade do Luar, uma vila muito pobre onde os peregrinos se preparavam para subir por meio de cordas e polias precárias até o local sagrado. Perto dali, no litoral, brotou uma vila de pescadores de arenque, que recebeu o nome de Krat. Ainda na atualidade, a cidade leva o peixe em seu brasão.
Certa vez, cerca de 600 anos atrás, houve um colapso no solo de fazendas nos arredores de Krat. Naquelas profundezas, foram encontrados dois elementos até então desconhecidos: um mineral azulado chamado Ergo e o Kroud, uma substância inorgânica que cresce, possivelmente por meio do consumo do próprio Ergo que a cerca. O local perigoso foi selado, sendo chamado de Covil do Diabo ou Relíquia de Trimegisto.
Com os séculos, a vila alçou o patamar de cidade e foi o berço de uma aristocracia local, como as famílias Cerasani e Volfe, mas ainda era um recanto provinciano, sem relevância no cenário maior. Isto é, até que o Ergo chamou a atenção de estrangeiros.
A Cidade do Luar, no entanto, permaneceu muito pobre e os padres da catedral viam ali uma oportunidade de ajudar os necessitados, assim como o anjo ajudou Frangelico. Por isso, décadas atrás, o amado arcebispo Andreus acolheu os Alquimistas que haviam se estabelecido na Ilha próxima a Krat e se oferecido a financiar a reconstrução da antiga catedral encontrada pelo santo. Para Andreus, era também a chance de trazer crescimento à cidade e ao povo. Foi a partir desse vínculo que os Alquimistas plantaram suas sementes em Krat.
Os Alquimistas se devotaram a estudar as qualidades únicas do Ergo. Esse recurso misterioso mostrou-se como uma fonte de energia incomparável e foi a base para o enorme desenvolvimento que decorreu aceleradamente em tão poucos anos. Eles chamaram estudiosos estrangeiros, incluindo o grande artesão Giuseppe Geppetto, que fundou a Oficina, uma união composta por engenheiros e técnicos. Geppetto é o homem que ilustra a capa deste artigo, ostentando o broche com o brasão da Oficina.
Pareceu, então, natural que os Alquimistas ascendessem como uma força política em Krat. A ganância das famílias antigas os levaram a firmar acordos com os cientistas recém-chegados, participando da exploração das minas de Ergo. Como os segredos desses tesouro deveriam ser protegidos, a família Volfe não hesitou em fazer os trabalhadores sumirem.
Como um indício de quem domina a cidade, a Ponte dos Alquimistas exibe os símbolos da ordem, orgulhosamente traçando o único caminho que leva do centro de Krat ao prédio da prefeitura.
Não foi de se espantar quando o líder deles, Valentinus Monad, casou com a filha da família mais nobre de Krat, Rosa Isabelle Monad, uma mulher de tal prestígio filantrópico e cultural que a rua mais glamourosa da cidade, com suas luzes e casas de entretenimento tão apreciados pela alta sociedade, levou seu nome. Já o marido, recebeu uma imponente estátua na praça da estação central. O casal deu à luz Sophia Monad, uma personagem central da nossa história. Voltaremos a ela em outra parte.
As mentiras dos títeres
O principal motivo do rápido crescimento de Krat foi a aplicação do Ergo nos títeres. Os autômatos já existiam no mundo naquela época, mas atingiram um grande patamar nunca visto de inteligência e capacidade como fruto da nova tecnologia.
Com um avanço tão impressionante, foi necessário criar um mecanismo que mantivesse o controle dos títeres. Assim, em um projeto conjunto entre Geppetto e o gênio Lorenzini Venigni, surgiu o Grande Pacto, uma programação que restringe o funcionamento dos títeres dentro de quatro leis que os obrigam a obedecer aos seus criadores, impedindo-os de machucá-los e de mentir. Afinal, ninguém gostaria que os títeres fugissem ao controle. Ou será que gostaria?
A verdade que ninguém queria reconhecer era que o Grande Pacto era falho. Alguns títeres desenvolviam consciência própria e tomavam decisões que levantavam as suspeitas de seus donos. Títeres violentos cometeram crimes que levaram os Alquimistas, a Oficina e as famílias antigas a fundar os Espreitadores, milícias encarregadas de caçar os autômatos considerados defeituosos e perigosos.
Além de ser uma maneira de mitigar os riscos de suas criações, a iniciativa ocultava a questão diante da opinião pública. Será que Krat estaria disposta a abdicar de seu progresso e riqueza produzida pelos títeres em nome da segurança? Certamente suas elites não estavam.
A primeira títere a demonstrar sinal de consciência elevada foi Camille, uma governanta de Geppetto. Certa vez, Camille apresentou comportamento diferente de suas funções predeterminadas e agiu por conta própria para salvar o bebê de quem cuidava. Era Carlo, filho de Geppetto.
O grande apego que ela demonstrou ao menino abriu os olhos do artesão quanto ao verdadeiro potencial do Ergo que era empregado nos títeres como fonte de energia. A mudança em Camille também foi para ele um indício da verdadeira natureza do Ergo, como veremos mais tarde. A títere foi homenageada por Geppetto com uma estátua no pátio da Casa de Ópera Estella.
Os casos de títeres que despertaram emoções a partir da devoção a seus mestres foram se tornando recorrentes, como o de Polendina, mordomo de Antonia Cerasani, a socialite dona do Hotel Krat. Sabemos até de histórias de humanos que amaram títeres e foram amados de volta, ainda que se questionassem o que esse amor significava. Para alguns, a dúvida não os impedia de pensar na intenção de casamento.
Há também Pulcinella, mordomo que adotou um papel paternal após a morte precoce dos pais de seu senhor, Lorenzini Venigni, o gênio industrial que se tornou o homem mais rico da cidade.
Por outro lado, os montes de títeres inutilizados eram descartados no Pântano Inóspito, uma região acidentada fora do perímetro da cidade. Antes, a região continha apenas minas de carvão, que ficaram obsoletas desde a descoberta dos usos especiais do Ergo. Ali, ficava escondida dos olhos dos cidadãos a evidência de que algo estava muito errado com a produção industrial que lhes havia trazido riqueza.
Ao longo dos anos, o problema ecológico culminou na inutilização do solo e na criação do Monstro Verde do Pântano, uma criatura deformada que cresceu tremendamente devorando o Ergo residual dos inúmeros cadáveres de títeres. Um Espreitador suspeitava que a criatura fazia parte de um experimento dos Alquimistas, embasado em seu rancor e na presença de seguidores da ordem que guardavam o lugar com seus corpos degenerados de cobaias.
As mentiras de Arlecchino
O caso mais exemplar de violência de um títere provavelmente é o de Arlecchino, um construto que se sentiu vivo ao matar pessoas e viu nisso a conexão com seus criadores: o ato assassino é o que o torna humano.
Em uma noite fatal, ele encurralou a família Venigni e matou pai e mãe, deixando o jovem Lorenzini vivo, não por misericórdia, mas pela curiosidade de ver como o trauma moldaria o caráter da criança.
Lorenzini Venigni, porém, era um gênio de coração puro. Aos dezoito anos, fundou a melhor fábrica de títeres já vista e construiu seu caminho para se tornar o príncipe da alta sociedade, o homem mais rico, inteligente e carismático de Krat, pobre apenas de modéstia. Seu objetivo de vida é a obsessão por tornar as ruas de Krat seguras para pessoas e títeres. Foi por isso que, com a ajuda de Geppetto, Lorenzini criou o Grande Pacto e buscou aprimorá-lo continuamente.
(Sim, tudo indica que a inspiração dessa história vem de Batman e Coringa, com uma dose de Brau-1589, do mangá Pluto)
A investigação do assassinato foi pressionada pelos Alquimistas e a Oficina, sendo divulgada oficialmente como um caso de assalto seguido de morte para encobrir a verdade. Nem o próprio Venigni conseguiu acesso aos documentos.
Mais tarde, Arlecchino aprendeu a se conectar à rede de Ergo de Krat e se interessou pela história de P, o protagonista do jogo e a mais avançada criação de Geppetto, a quem ele viu como seu igual: um títere assassino, sem amarras; um humano. Querendo conhecer seu semelhante, Arlecchino assumiu a identidade de Rei dos Enigmas, criando charadas para testar o valor de P e conduzi-lo até a sala da Trindade, onde está incapacitado.
As mentiras do Frenesi
Pouco tempo antes do despertar de P, Krat foi acometida por um surto da Doença de Petrificação, que começou a dizimar a população. Depois, sobreveio ainda outra catástrofe, o Frenesi dos Títeres.
O massacre começou na badalada rua Rosa Isabelle e espalhou-se por toda a cidade até alcançar a estação de trem, para onde fugiram as pessoas que tentavam abandonar a cidade. Os títeres as aniquilaram, como se quisessem impedir sua fuga. Apenas o Hotel Krat permaneceu seguro do Frenesi porque seus sistemas de segurança impedem a entrada de títeres.
A fábrica de Venigni foi tomada pelos títeres, que passaram a produzir no local mais tropas para o Frenesi sob o comando de Fuoco, o Rei das Chamas, um enorme títere capaz de produzir fogo para alimentar as fornalhas industriais. Ele já havia demonstrado consciência em situações anteriores, levantando suspeitas sobre seu devido funcionamento. Porém, quando houve o Frenesi, Fuoco passou a agir em lealdade a um novo líder, o Rei dos Títeres, em nome de um extermínio cujo objetivo só ficará claro mais à frente.
Os rumores dizem que o Rei dos Títeres habita a Casa de Ópera Estella, localizada no topo da colina que coroa a rua Rosa Isabelle. Ele parece conhecer P e esperar por sua chegada, pois preparou uma encenação no palco para tentar abrir os olhos do títere de Geppetto e tentar uma aproximação pacífica. Essa é outra história à qual precisaremos retornar mais tarde para revelar a identidade do autômato monarca.
Geppetto e Venigni foram acusados pela tragédia e houve até Espreitadores que caçaram o artesão, que foi salvo por P. Dotado de grande senso de responsabilidade, Venigni seguiu com Pulcinella até a fábrica para tentar impedir a produção, mesmo não sendo um lutador. Também ele foi salvo por P, que em seguida derrotou Fuoco.
Por fim, o protagonista derrotou o Rei dos Títeres, mas a história não acabou. Os títeres que estavam sob influência do Rei pela comunicação via ondas de Ergo ficaram inertes e apáticos, melancolicamente lamentando a queda de seu líder. Muitos outros, no entanto, continuaram o banho de sangue atacando qualquer coisa viva que encontrassem pela frente.
As mentiras continuarão
Os mistérios continuam sem respostas. Se não foram o Rei dos Títeres e seu vassalo Fuoco os responsáveis pelo Frenesi, quem teria sido? Na próxima parte, daremos continuidade à história da decadência que devastou a cidade de Krat nas mãos dos Alquimistas.
Sobre Lies of P
- Impressões de Lies of P: a demo exibe com orgulho um soulslike ao pé da letra
- Análise: Lies of P transforma Pinóquio e a Belle Époque em um dos melhores soulslike
- Dicas para ajudar iniciantes a sobreviver aos suplícios de Krat — Parte 1
- Dicas para ajudar iniciantes a sobreviver aos suplícios de Krat — Parte 2
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 1: Krat e seus títeres
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 2: As ambições dos Alquimistas
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 3: As mentiras reveladas
- Lies of P: entendendo toda a história — Parte 4: As histórias paralelas (20/10/2023)
Revisão: Heloísa D'Assumpção Ballaminut