Um livro-jogo é um tipo de publicação que se propõe a contar uma espécie de narrativa projetada para envolver o leitor de uma maneira ativa, permitindo que ele tome decisões que afetam o curso da história. Em vez de seguir uma narrativa linear, como em um livro tradicional, o leitor de um livro-jogo assume o papel do protagonista e toma decisões ao longo da história. De uma maneira bem direta e objetiva, World of Horror é isso aí, mas de um jeito digital e mais dependente da exposição visual.
Um mundo de caos movido pela imprevisibilidade
Tudo começa em Shiokawa, uma pacata cidade japonesa dos anos 80 que começa a ser atormentada por presenças sobrenaturais. Um cidadão que perde a sanidade aqui, uma jovem desaparecida acolá, os habitantes percebem coisas estranhas acontecendo e a perdição trazida por entidades ancestrais cada vez mais próxima. Tudo isso é contado ao jogador por meio de uma interface propositalmente confusa.
World of Horror presta uma homenagem não só aos livros-jogos, mas também aos Adventure Games para PC que se popularizaram no começo dos anos 80, sendo que muitos deles, por sua vez, já eram tributos aos textos interativos em questão. Isso se traduz de várias formas na prática, a começar pelos visuais poluídos e interface de difícil compreensão.
Isso é intencional, uma vez que o objetivo do título seja justamente a de promover a desorientação no jogador. O recurso tem muita utilidade para construir a ambientação de World of Horror de várias maneiras diferentes. É um desconforto premeditado que só vai se esvair de acordo com a própria jogatina. O tutorial do começo tem pouca utilidade e ninguém vai realmente entender o jogo a partir dele. A única forma de finalmente compreender seu fluxo é jogando-o.
Daí, acompanhamos a história de um protagonista que, por qualquer que seja o motivo, está investigando os acontecimentos fora do comum daquele local. Embora haja uma homenagem declarada às obras de H.P. Lovecraft e Junji Ito, nota-se que ele também evoca um pouco da atmosfera misteriosa de Twin Peaks.
Quando finalmente nos situamos no meio da bagunça pixelada, é possível perceber World of Horror como ele realmente é: uma aventura narrativa completamente baseada no RNG. A cada jogatina, o jogador é apresentado a uma lista de cinco diferentes mistérios que assolam a cidade e precisam ser solucionados. Para isso, é necessário escolher as diferentes localidades do povoado e, a cada nova “visita” a um desses locais, um evento aleatório acontece.
Esse evento pode ser a descoberta de uma nova pista, a obtenção de um item, um encontro com algum personagem, a aparição de um inimigo sobrenatural ou qualquer outro acontecimento registrado no banco de dados do título. Tais eventos também proporcionam pontos de experiência e de atributo que podem ser usados para aprimorar o personagem, permitindo que ele avance de nível e adquira novas habilidades que auxiliam na investigação.
Uma vez que todos os casos disponíveis em uma sessão de jogo são resolvidos, o jogador ganha acesso ao farol, que funciona como uma dungeon final a ser solucionada. Essa área apresenta diversos tipos de desafios, que vão de penalizar o personagem caso algum atributo não esteja de acordo com as exigências do andar do local a até mesmo um quiz sobre o trajeto percorrido até ali, sem esquecer dos eventuais combates.
O sistema de batalha tem características de um RPG eletrônico, mas é bastante rudimentar. Nele, há uma barra com um limite numérico e várias ações que podem ser usadas indiscriminadamente, desde que o custo delas, ao todo, não ultrapasse o limite da barra em questão. Uma vez que todas elas são determinadas, o jogador deve apertar o botão para executá-las, fazendo com que o turno se desenrole.
Uma campanha completa de World of Horror — isto é, resolver todos os casos e impedir a perdição ao chegar no último andar do farol — dura, em média, cerca uma hora. O fator replay reside na aleatoriedade que o jogo usa para compor seu progresso, fazendo com que haja várias opções e combinações distintas para cada um dos mistérios disponíveis. Tais ramificações, por sua vez, levam a diferentes conclusões.
Esses caminhos, obviamente, vão depender da forma como o jogador lida com seu progresso, já que é possível adquirir determinados itens, habilidades e atributos que podem facilitar ou dificultar algum valor randômico do título. Nesse aspecto, ele também remete aos RPGs de mesa, cujas ações são determinadas em um conjunto que combina a rolagem dos dados com os atributos da ficha de personagem.
Nota-se que, embora haja dois modos de jogo simples que funcionam praticamente como tutoriais (a Spine-Chilling Story of School Scissors e a Extracurricular Activity), a verdadeira faceta de World of Horror se revela na modalidade Quick Play, que é quando o game entra em um estado verdadeiramente aleatório e o leque de possibilidades se torna mais evidente, com incontáveis combinações de variáveis que proporcionam condições distintas de jogabilidade.
Uma opção ainda mais elaborada é a de jogo personalizado, no qual o próprio jogador é o encarregado de selecionar as variáveis e montar seu pontapé inicial de campanha. Isso inclui a escolha do personagem principal, seu histórico e a possibilidade de limitar certas opções. No início, nem todos os elementos estão disponíveis, sendo necessário desbloqueá-los por meio de jogos anteriores.
O tropeço principal dessa centralização em um progresso gerado aleatoriamente está na dificuldade que se torna liberar todo o conteúdo. Como um álbum de figurinhas, é fácil preencher os espaços quando ele ainda está vazio, mas, ao longo do tempo, vai ficando cada vez mais complicado tirar aquelas que faltam. Não adianta ter um amplo fator de rejogabilidade se a inerente repetição desse sistema vai se tornando enfadonha.
Lovecraft diria algo como “a exposição da trama era tão fragilmente abissal quanto o véu que separa nossa insignificante existência das indescritíveis trevas das sombras insondáveis”
Em relação à qualidade narrativa, bem, World of Horror tenta. Por mais que a progressão, por si só, seja capaz de captar a atenção do jogador, a forma como a história é transmitida deixa a desejar. Esse revés se dá por alguns aspectos, sendo que a precariedade das orações é o principal deles.
No intuito de transmitir essa aura de jogo antigo, o time da redação provavelmente se apegou ao estilo de escrita de títulos similares, que sofreram bastante com as limitações do próprio hardware no que diz respeito ao espaço, seja de armazenamento, seja de exibição, já que não era incomum que os textos precisassem ser consideravelmente diminuídos para que o hardware disponível fosse capaz de exibi-los.
Isso era um problema recorrente ainda maior em games japoneses, uma vez que cada caractere do alfabeto deles normalmente corresponde a uma sílaba no código indo-arábico. Isso levava à necessidade de condensar significativamente a maior parte das mensagens. Ah, o ato de colocar TERMOS DESTACADOS EM CAIXA ALTA denuncia mais uma influência herdada desses produtos mais antiquados.
Outra razão que justifica essa simplicidade é a agilidade proposta para a progressão. Com o objetivo de permitir que cada campanha seja concluída em uma única sessão, é óbvio que atochar o seu roteiro com paredes de texto seria uma má ideia, já que leitura consome tempo. Embora seja uma decisão correta no design do jogo em si, ela mina o potencial narrativo que, teoricamente, é um dos seus principais pontos de venda.
Além disso, se você é responsável por um produto que presta uma homenagem declarada a Lovecraft, é necessário entender não só o conteúdo dos seus tomos, mas também a forma com que ele é transmitido. Quem já teve a oportunidade de ler o mestre do horror cósmico em seu idioma original sabe que ele tem um estilo de escrita distintivo, rebuscado de uma forma até mesmo redundante e sem contrações ou coloquialismo, além de uma preferência por termos de origem etimologicamente latina como uma forma de se destacar do inglês usado no cotidiano.
No que diz respeito à homenagem declarada a Junji Ito, aí não tem nada a se considerar negativamente. As histórias, mesmo sendo simples, trazem uma atmosfera de horror bem característica e as ilustrações em pixel art parecem ter realmente saído de um mangá de autoria do mangaká em questão, captando sua essência.
Adicionalmente, um revés considerável é a exposição da história na própria interface do game. Por mais que o intuito dela seja deixar o jogador perdido, a exposição das historietas não deveria ser uma delas, dado esse viés narrativo do título. Cada vez que exploramos um lugar e elucidamos um pouco mais do mistério, o resultado da investigação e o andamento da trama se mostram de forma relativamente discreta na mesma tela interativa principal.
Isso já era um problema apontado na matéria de impressões do GameBlast lá atrás, em 2020, quando o produto entrou em acesso antecipado, e persiste nesse lançamento definitivo. Falando de jogabilidade, o jogador que efetua uma ação normalmente vai se atentar a um feedback estático e de maior destaque. Se, por algum acaso, ele realizar um ato e parar em uma tela de igual capacidade de interação, a tendência é desencadear uma série de novas ações em vez de prestar atenção nas mensagens de consequência exibidas.
Vale ressaltar que essa questão só acentua a fraqueza narrativa mencionada anteriormente, já que, falando da interface e da navegação, esse é o único contra que se mantém depois que alguém se habitua ao sistema de jogo em si. Isso é porque fica relativamente tranquilo de entender a progressão básica, uma vez que a desorientação proposital em relação às informações na tela remete de maneira eficaz aos games antigos que não tinham espaço para sequer implementar um tutorial decente.
E, assim, independentemente de todas as deficiências, o charme de World of Horror é inquestionável, a meu ver. Não só pela arte pixelada cuja forma é bastante nítida, algo bem complicado de se fazer em um estilo 1-bit, mas também pela tentativa de emular o display de alguns outros sistemas, por assim dizer, ao permitir a escolha de várias paletas de cor diferentes para dar uma variada aos nossos olhos cansados com tanta monocromia. Há também opções para mudar a proporção da tela em três escalas distintas. Mesmo os bugs trazem uma elegância adicional para a experiência — e eu acho que alguns deles, inclusive, são até propositais.
Mistérios de uma originalidade tangencial que desperta um interesse latente
Apesar de falho, World of Horror ainda é interessante. Embora pareça diferentão, ele apenas flerta com o experimentalismo, já que as suas principais propostas não só já foram usadas anteriormente na indústria como também executadas com melhor propriedade, a exemplo de killer7 e The Silver Case, ambos da Grasshopper Manufacture e que apostam na construção de uma complicada trama rocambolesca transmitida por meio de uma jogabilidade pouco convencional e interface deliberadamente desorientadora. Ainda assim, não dá para falar que o produto trabalhado por anos em acesso antecipado pela desenvolvedora panstasz seja incompetente. É uma pedida válida e bem agradável para uma jogatina rápida em uma noite chuvosa.
Prós
- Fluxo de jogo funcional, imersivo e viciante;
- Artes pixeladas conseguem captar a essência da atmosfera dos trabalhos do Junji Ito;
- Campanhas geradas aleatoriamente trazem um fator replay considerável, com várias combinações possíveis;
- Mesmo poluída e confusa, é bizarramente fácil se acostumar com a interface do título, que ainda conta com opções bacanas de personalização.
Contras
- Qualidade do texto falha tanto em emular o estilo de escrita do Lovecraft quanto em provocar sentimentos de tensão ou aflição no jogador;
- Embora a proposta de campanhas aleatórias seja interessante, desbloquear tudo o que o título tem a oferecer se torna uma atividade enfadonha com o tempo;
- Por mais que seja possível de se habituar com a interface, a exposição principal da história através dela se perde na poluição visual.
World of Horror — PC/Switch/PS4/PS5 — Nota: 6.5Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise produzida com cópia digital cedida pela Ysbryd Games