Mesmo que jogos baseados em texto sejam difíceis de encontrar atualmente, vez ou outra eles pipocam como produtos independentes, como é o caso de [I] Doesn't Exist, da produtora DreadXP. IDE, como os desenvolvedores abreviam a obra, a princípio, parece uma aventura simples que remete aos títulos textuais de outrora, especialmente nos gráficos, mas vai muito além de "pegar a chave" e "abrir a porta".
/iniciar jogo
Quando iniciamos IDE, a primeira tela que vemos é uma simulação que evoca a sensação de estarmos ligando um PC baseado em DOS. Após esse primeiro contato, caímos em um tutorial ditado por um cogumelo e somos apresentados ao nosso avatar — um bonequinho bem simples que é referido pelo NPC fúngico por "isto" (it, em inglês) e descrito como algo inútil e que só funciona sob comandos.
Nesta tela em preto-e-branco, nos familiarizamos com o básico do jogo ao precisarmos explorar o cenário, pegar uma chave, colocá-la dentro de um cofre e sair pela porta. É a partir deste momento que o jogo ganha novos ares e temos a impressão de que finalmente sairemos em uma jornada textual.
O nosso avatar, outrora um bonequinho pixelado, agora assume uma silhueta mais humana, mesmo que os gráficos ainda simulem os 8-bits. Nossa missão neste novo mundo — uma floresta que poderia ser considerada normal se não fosse por seus elementos surreais, como um compasso e um relógio que cresceram no tronco de árvores — é abrir o cofre, reaver a chave e destrancar a porta.
Para isso, precisamos andar para a esquerda e para a direita, interagir com os elementos do cenário, recolher e usar itens na hora certa. Em teoria, tudo é muito simples, requerendo apenas digitar comandos compostos por um verbo e um objeto — a única ressalva é que IDE não possui suporte ao português ou a outros idiomas, fazendo com que o jogador precise ter conhecimento em inglês para aproveitar o jogo.
/abrir a porta
Uma vez em posse da chave, podemos finalmente abrir a porta e sair da floresta. É neste momento que a aventura, antes textual, toma outro rumo: nosso avatar ganha consciência própria e decide se rebelar contra nós, dizendo que não quer mais receber ordens de ninguém.
Como resultado, começamos a conversar com o bonequinho, que está no meio de uma crise existencial. No entanto, o cogumelo não está nada contente com a consciência do avatar e começa a interferir em suas decisões, usando o próprio jogador como intermediador; sendo assim, IDE deixa de ser uma simples aventura textual em sua essência e passa a trazer diversos temas, como depressão, ansiedade e sensação de não pertencimento.
Por exemplo, em dado momento, precisamos encarar um labirinto que não traz nada além de perguntas projetadas para colocar o jogador em xeque em relação a elas; seguir um ou outro caminho pode até fazer com que demos voltas em círculos ou cheguemos a um beco sem saída, precisando voltar para escolher outra direção, mas, no geral, a saída é sempre a mesma.
De toda maneira, o resultado está longe de ser igual: por mais que tentemos sempre reproduzir os mesmos caminhos, dependendo do andamento da conversa com o avatar (e com o cogumelo também, vale ressaltar). Pessoas mais atentas logo perceberão toda a simbologia por trás do jogo como um todo, mas não cabe a mim dar spoilers e estragar esta experiência introspectiva.
Outra diferença interessante que a DreadXP incluiu nesta porção para além da porta, que simula uma aventura em primeira pessoa, foi o uso do mouse, nos permitindo rotacionar a câmera para ler os textos gravados nas paredes e no chão, além das saídas de certas áreas e interação com alguns elementos dos cenários.
/verificar inconsistências
IDE é um jogo extremamente curto, tanto que, em quatro horas, eu já havia completado quatro campanhas. Mesmo em sua brevidade, determinadas interações geram reações inusitadas, como a possibilidade de nomear o avatar; todavia, fora algumas vagas pistas dadas nas 11 conquistas presentes no Steam, o jogo não nos dá indicativos de quando tomar uma ação diferente.
Nessas quatro campanhas que completei, fui capaz de desbloquear 7 dessas conquistas, mas a que mais me intrigou por sua descrição ainda não alcancei. Desse modo, tentativa e erro é uma constante em IDE, e não digo isso apenas pela presença de troféus.
Por ser um jogo disponibilizado apenas em inglês, existe a questão da barreira linguística, que prejudica ainda mais esse fator de tentativa e erro. Mesmo que eu tenha fluência no idioma em questão, a impressão que tive foi de que o jogo não consegue computar sentenças mais complexas, retornando diálogos como "não entendi o que você quis dizer" durante certas interações com o cogumelo e o avatar.
Além disso, não sei se proposital (como parte da experiência) ou acidentalmente (em decorrência de bugs), senti que o aplicativo travou em diferentes pontos durante minhas campanhas após digitar comandos e mensagens, a ponto de eu esperar por minutos para ver se alguma coisa acontecia. Diante desses impasses, fui obrigada a sair do jogo, mas, curiosamente, fui capaz de abrir o menu e escolher a opção de voltar à tela inicial — por isso, acredito que certos códigos precisam ser revistos pelos desenvolvedores.
Neste contexto, nem sempre a opção de contar apenas com salvamento automático é uma boa ideia, já que um travamento, como os que presenciei, pode nos obrigar a rever porções inteiras de diálogos já passados. Não chega a ser uma situação tão incômoda, já que podemos aproveitá-la para tentar inserir comandos diferentes sem a necessidade de iniciar uma nova campanha per se, mas, de uma forma ou de outra, a imersão é quebrada dessa maneira.
Outro ponto que quero salientar é que IDE é um jogo cuja ressonância varia de jogador para jogador. Isso quer dizer que pessoas que sofrem de transtornos mentais, como depressão e ansiedade, podem estar mais suscetíveis a efeitos colaterais dos temas abordados na campanha — e falo isso por experiência. Certamente, trata-se de um jogo não aconselhável a todos os públicos, que esconde alguns gatilhos em suas entrelinhas, mas isso não o torna ruim ou maléfico de forma alguma.
Ressalvas à parte, quero elogiar a ambientação proporcionada por este indie, em especial a trilha sonora, que ajuda e muito a construir a imersão proposta. Os gráficos também são cativantes à sua maneira, exaltando a simplicidade dos títulos nos quais IDE foi inspirado, e a narrativa instiga a curiosidade para chegar até o final.
/concluir análise
[I] Doesn't Exist cumpre seu papel como uma aventura textual imersiva e que traz temas importantes, mesmo que nas entrelinhas, capaz de atiçar a curiosidade dos jogadores que param para prestar atenção nos detalhes e nas simbologias presentes neste indie da DreadXP. Mesmo que curta, a campanha cativa com sua atmosfera bem-construída e narrativa sólida, com destaque para mudança na jogabilidade em determinados pontos, e traz, no sistema de conquistas do Steam, indícios, mesmo que vagos, de experimentações que podem ser feitas durante a jogatina.
No entanto, a falta de localização para outros idiomas pode ser um empecilho para muitos, já que o jogo só está disponível em inglês, e a abordagem de certos temas sensíveis pode servir de gatilho para pessoas que sofrem de transtornos mentais como depressão e ansiedade. Alguns travamentos ocasionais também foram encontrados durante as minhas campanhas, forçando-me a reiniciar o aplicativo do último ponto salvo automaticamente.
Ademais, para quem estiver a fim de (re)viver a experiência de jogar uma aventura textual, mesmo que com alguns pontos demandando tentativa e erro, [I] Doesn't Exist proporciona uma experiência sólida e moderna dentro do gênero.
Prós
- Trama bem-construída que instiga a curiosidade de jogadores mais atentos a simbologias e detalhes durante a campanha;
- Total imersão, em especial proporcionada pela trilha sonora;
- Gráficos charmosos que evocam a simplicidade dos jogos textuais de outrora;
- Abordagem de temas sensíveis e profundos nas entrelinhas;
- O sistema de conquistas do Steam indicia experimentações que podem ser feitas ao longo da campanha;
- A mudança na jogabilidade em certos pontos traz um ar de modernidade ao gênero jogo textual.
Contras
- Aparentemente, o jogo não computa comandos complexos, fazendo com que algumas interações sejam baseadas em tentativa e erro;
- Certos acontecimentos narrativos podem servir como gatilho para pessoas mais sensíveis, em especial as que sofrem de transtornos mentais;
- Bugs ocasionais que forçam o reinício do aplicativo e quebram a imersão;
- Curtíssima duração;
- O jogo não dá indícios de ações que podem ativar eventos diferentes, bem como as descrições das conquistas são vagas nesse sentido;
- Disponível apenas em inglês, gerando uma barreira linguística para quem não domina o idioma.
[I] Doesn't Exist — PC — Nota: 7.5[Atualização em 15/09/2023 - 18h50] A DreadXP confirmou que os idiomas espanhol, italiano, francês e alemão serão adicionados ao jogo.
Revisão: Thais Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela DreadXP