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Análise: [I] Doesn't Exist (PC): uma aventura textual que esconde temas profundos em suas entrelinhas

Embora curta, a jornada para além da porta nos deixa pensando por horas.


Uma aventura textual envolve interagir com elementos narrativos por meio de comandos digitados, como "caminhar para a direita" ou "ler o bilhete". O gênero surgiu na década de 1960 e conseguiu se manter em evidência até meados de 1990, quando começou a perder força para outros tipos de jogos com maior apelo visual.


Mesmo que jogos baseados em texto sejam difíceis de encontrar atualmente, vez ou outra eles pipocam como produtos independentes, como é o caso de [I] Doesn't Exist, da produtora DreadXP. IDE, como os desenvolvedores abreviam a obra, a princípio, parece uma aventura simples que remete aos títulos textuais de outrora, especialmente nos gráficos, mas vai muito além de "pegar a chave" e "abrir a porta".

/iniciar jogo

Quando iniciamos IDE, a primeira tela que vemos é uma simulação que evoca a sensação de estarmos ligando um PC baseado em DOS. Após esse primeiro contato, caímos em um tutorial ditado por um cogumelo e somos apresentados ao nosso avatar — um bonequinho bem simples que é referido pelo NPC fúngico por "isto" (it, em inglês) e descrito como algo inútil e que só funciona sob comandos.

Nesta tela em preto-e-branco, nos familiarizamos com o básico do jogo ao precisarmos explorar o cenário, pegar uma chave, colocá-la dentro de um cofre e sair pela porta. É a partir deste momento que o jogo ganha novos ares e temos a impressão de que finalmente sairemos em uma jornada textual.


O nosso avatar, outrora um bonequinho pixelado, agora assume uma silhueta mais humana, mesmo que os gráficos ainda simulem os 8-bits. Nossa missão neste novo mundo — uma floresta que poderia ser considerada normal se não fosse por seus elementos surreais, como um compasso e um relógio que cresceram no tronco de árvores — é abrir o cofre, reaver a chave e destrancar a porta.

Para isso, precisamos andar para a esquerda e para a direita, interagir com os elementos do cenário, recolher e usar itens na hora certa. Em teoria, tudo é muito simples, requerendo apenas digitar comandos compostos por um verbo e um objeto — a única ressalva é que IDE não possui suporte ao português ou a outros idiomas, fazendo com que o jogador precise ter conhecimento em inglês para aproveitar o jogo.

/abrir a porta

Uma vez em posse da chave, podemos finalmente abrir a porta e sair da floresta. É neste momento que a aventura, antes textual, toma outro rumo: nosso avatar ganha consciência própria e decide se rebelar contra nós, dizendo que não quer mais receber ordens de ninguém.

Como resultado, começamos a conversar com o bonequinho, que está no meio de uma crise existencial. No entanto, o cogumelo não está nada contente com a consciência do avatar e começa a interferir em suas decisões, usando o próprio jogador como intermediador; sendo assim, IDE deixa de ser uma simples aventura textual em sua essência e passa a trazer diversos temas, como depressão, ansiedade e sensação de não pertencimento.


Por exemplo, em dado momento, precisamos encarar um labirinto que não traz nada além de perguntas projetadas para colocar o jogador em xeque em relação a elas; seguir um ou outro caminho pode até fazer com que demos voltas em círculos ou cheguemos a um beco sem saída, precisando voltar para escolher outra direção, mas, no geral, a saída é sempre a mesma.

De toda maneira, o resultado está longe de ser igual: por mais que tentemos sempre reproduzir os mesmos caminhos, dependendo do andamento da conversa com o avatar (e com o cogumelo também, vale ressaltar). Pessoas mais atentas logo perceberão toda a simbologia por trás do jogo como um todo, mas não cabe a mim dar spoilers e estragar esta experiência introspectiva.

Outra diferença interessante que a DreadXP incluiu nesta porção para além da porta, que simula uma aventura em primeira pessoa, foi o uso do mouse, nos permitindo rotacionar a câmera para ler os textos gravados nas paredes e no chão, além das saídas de certas áreas e interação com alguns elementos dos cenários.

/verificar inconsistências

IDE é um jogo extremamente curto, tanto que, em quatro horas, eu já havia completado quatro campanhas. Mesmo em sua brevidade, determinadas interações geram reações inusitadas, como a possibilidade de nomear o avatar; todavia, fora algumas vagas pistas dadas nas 11 conquistas presentes no Steam, o jogo não nos dá indicativos de quando tomar uma ação diferente.

Nessas quatro campanhas que completei, fui capaz de desbloquear 7 dessas conquistas, mas a que mais me intrigou por sua descrição ainda não alcancei. Desse modo, tentativa e erro é uma constante em IDE, e não digo isso apenas pela presença de troféus.

Por ser um jogo disponibilizado apenas em inglês, existe a questão da barreira linguística, que prejudica ainda mais esse fator de tentativa e erro. Mesmo que eu tenha fluência no idioma em questão, a impressão que tive foi de que o jogo não consegue computar sentenças mais complexas, retornando diálogos como "não entendi o que você quis dizer" durante certas interações com o cogumelo e o avatar.


Além disso, não sei se proposital (como parte da experiência) ou acidentalmente (em decorrência de bugs), senti que o aplicativo travou em diferentes pontos durante minhas campanhas após digitar comandos e mensagens, a ponto de eu esperar por minutos para ver se alguma coisa acontecia. Diante desses impasses, fui obrigada a sair do jogo, mas, curiosamente, fui capaz de abrir o menu e escolher a opção de voltar à tela inicial — por isso, acredito que certos códigos precisam ser revistos pelos desenvolvedores.

Neste contexto, nem sempre a opção de contar apenas com salvamento automático é uma boa ideia, já que um travamento, como os que presenciei, pode nos obrigar a rever porções inteiras de diálogos já passados. Não chega a ser uma situação tão incômoda, já que podemos aproveitá-la para tentar inserir comandos diferentes sem a necessidade de iniciar uma nova campanha per se, mas, de uma forma ou de outra, a imersão é quebrada dessa maneira.

Outro ponto que quero salientar é que IDE é um jogo cuja ressonância varia de jogador para jogador. Isso quer dizer que pessoas que sofrem de transtornos mentais, como depressão e ansiedade, podem estar mais suscetíveis a efeitos colaterais dos temas abordados na campanha — e falo isso por experiência. Certamente, trata-se de um jogo não aconselhável a todos os públicos, que esconde alguns gatilhos em suas entrelinhas, mas isso não o torna ruim ou maléfico de forma alguma.

Ressalvas à parte, quero elogiar a ambientação proporcionada por este indie, em especial a trilha sonora, que ajuda e muito a construir a imersão proposta. Os gráficos também são cativantes à sua maneira, exaltando a simplicidade dos títulos nos quais IDE foi inspirado, e a narrativa instiga a curiosidade para chegar até o final.


/concluir análise

[I] Doesn't Exist cumpre seu papel como uma aventura textual imersiva e que traz temas importantes, mesmo que nas entrelinhas, capaz de atiçar a curiosidade dos jogadores que param para prestar atenção nos detalhes  e nas simbologias presentes neste indie da DreadXP. Mesmo que curta, a campanha cativa com sua atmosfera bem-construída e narrativa sólida, com destaque para mudança na jogabilidade em determinados pontos, e traz, no sistema de conquistas do Steam, indícios, mesmo que vagos, de experimentações que podem ser feitas durante a jogatina.

No entanto, a falta de localização para outros idiomas pode ser um empecilho para muitos, já que o jogo só está disponível em inglês, e a abordagem de certos temas sensíveis pode servir de gatilho para pessoas que sofrem de transtornos mentais como depressão e ansiedade. Alguns travamentos ocasionais também foram encontrados durante as minhas campanhas, forçando-me a reiniciar o aplicativo do último ponto salvo automaticamente.

Ademais, para quem estiver a fim de (re)viver a experiência de jogar uma aventura textual, mesmo que com alguns pontos demandando tentativa e erro, [I] Doesn't Exist proporciona uma experiência sólida e moderna dentro do gênero.

Prós

  • Trama bem-construída que instiga a curiosidade de jogadores mais atentos a simbologias e detalhes durante a campanha;
  • Total imersão, em especial proporcionada pela trilha sonora;
  • Gráficos charmosos que evocam a simplicidade dos jogos textuais de outrora;
  • Abordagem de temas sensíveis e profundos nas entrelinhas;
  • O sistema de conquistas do Steam indicia experimentações que podem ser feitas ao longo da campanha;
  • A mudança na jogabilidade em certos pontos traz um ar de modernidade ao gênero jogo textual.

Contras

  • Aparentemente, o jogo não computa comandos complexos, fazendo com que algumas interações sejam baseadas em tentativa e erro;
  • Certos acontecimentos narrativos podem servir como gatilho para pessoas mais sensíveis, em especial as que sofrem de transtornos mentais;
  • Bugs ocasionais que forçam o reinício do aplicativo e quebram a imersão;
  • Curtíssima duração;
  • O jogo não dá indícios de ações que podem ativar eventos diferentes, bem como as descrições das conquistas são vagas nesse sentido;
  • Disponível apenas em inglês, gerando uma barreira linguística para quem não domina o idioma.
[I] Doesn't Exist — PC — Nota: 7.5
[Atualização em 15/09/2023 - 18h50]
A DreadXP confirmou que os idiomas espanhol, italiano, francês e alemão serão adicionados ao jogo.
Revisão: Thais Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela DreadXP

Também conhecida como Lilac, é fã de jogos de plataforma no geral, especialmente os da era 16-bits, com gosto adquirido por RPGs e visual novels ao longo dos anos. Fora os games, não dispensa livros e quadrinhos. Prefere ser chamada por Ju e não consegue viver sem música. Sempre de olho nas redes sociais, mas raramente postando nelas. Icon por 0range0ceans
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