Elden Ring foi aclamado como jogo do ano em 2022 em diversas premiações e não foi sem motivo. Construído como um soulslike de mundo aberto que deu liberdade aos jogadores e refinou o que o gênero tem de melhor a oferecer, o título alcançou 20 milhões de cópias vendidas dentro de seu primeiro ano.
Esse público massivo reflete como a crescente influência do design da FromSoftware na indústria alcançou uma presença muito maior entre os jogadores, em uma passagem clara para o mainstream. Outro indicador de relevância cultural foi a inclusão do diretor Hidetaka Miyazaki na lista da revista TIME com as 100 pessoas mais influentes de 2023.
Enquanto aguardamos A Sombra da Térvore, a expansão ainda sem data de lançamento, podemos nos entreter com outros derivados do GOTY do ano passado. Em setembro, serão lançados no Brasil os dois volumes de artbooks do jogo, uma vez que Elden Ring foi a marca escolhida pela editora Panini como porta de entrada para esse nicho editorial praticamente inexistente por aqui.
A editora italiana já lançou em nosso país outra obra sobre a saga das Terras Intermédias: o mangá Elden Ring: O Caminho para Térvore, cujo segundo volume tem previsão de lançamento ainda para este mês de agosto.
O lançamento ocorre gratuitamente de forma digital, mas apenas os dois primeiros capítulos e os dois mais recentes ficam disponíveis. Depois, como de praxe nos mangás, cerca de nove capítulos são compilados em um volume impresso.
A seguir, vamos conhecer melhor o primeiro volume, que tem 176 páginas e custa R$ 37,90 no preço de capa. O acabamento é o básico da editora, sem orelhas e com papel offwhite. A edição conta ainda com oito páginas coloridas em papel couchê, referentes à cena de abertura do jogo. Ah, e acompanha um marcador de página de brinde.
Um Maculado sem renome nem donzela
A adaptação para mangá é estranha. Deliberadamente estranha, para ser mais específico. A vontade de subverter as expectativas está explícita no título do primeiro capítulo, que diz ao leitor: “Você achou que isto aqui seria sério, né?”.
Não, não há nada sério na versão em quadrinhos de Elden Ring, que debanda completamente para a comédia sem nenhuma pretensão de solenidade. Boa parte do humor gira em torno do protagonista, o Maculado Aseo, e são recorrentes as piadas sobre a bunda dele. Não se engane com a armadura da capa: ele fica de tanguinha por todo o primeiro volume.
Aseo é ignorante e incompetente, mas ei, não devemos culpá-lo. Todos nós fomos assim em nossa primeira experiência com um soulslike da FromSoftware, não é verdade? Por isso, o fato do improvável herói não saber de onde veio nem o que está fazendo nas Terras Intermédias dialoga diretamente com a forma que ficamos perdidos diante da narrativa intencionalmente críptica do estilo.
Vários outros aspectos dos videogames são alvo de brincadeiras, como a subida de nível, o recebimento de itens especiais, a confiança em NPCs altamente suspeitos e o combate a chefões brutamontes.
A comicidade é muito presente nas caretas do protagonista, uma marca expressionista comum em mangás, mas outros também estão sujeitos ao deboche, que não perdoa nem Ranni. A classificação indicativa é 16 anos, igual ao do jogo, mas as piadas não descem o nível abaixo da bunda de Aseo e as cenas não ficam mais pesadas que o hobby de Godrick de fazer enxertos de partes humanas.
Através da névoa, nas Terras Intermédias
A trama se concentra na primeira área do jogo, Limgrave, um campo coroado pelo Castelo Tempesvéu. Melina, a donzela improvisada para o Maculado, está muito mais presente nas páginas do mangá do que no jogo, participando constantemente das desventuras de Aseo e sempre com um olhar de reprovação. Ela não confia nem um pouco no escolhido e não faz questão de esconder suas dúvidas sobre a mínima capacidade do coitado.
Muitos outros NPCs dão as caras pelas páginas do primeiro volume, incluindo Patches, o canalha favorito de todo mundo, presente desde os primórdios de Demon’s Souls (PS3). O caminho para Tempesvéu também traz o suspeito Farré da Máscara Branca; o cavaleiro opressor de novatos, Sentinela da Árvore; o mercador Kalé; a doce Roderika e o imponente Margit.
Há até um capítulo dedicado a Blaidd, o homem-lobo com quem o protagonista divide uma missão secundária, o que já serve para apresentar Ranni, a importantíssima bruxa queridinha, e o trio de lobos espectrais que ajudam em combate. O volume inicial termina com a aparição de Rogier, o feiticeiro, antes do embate contra Godrick.
Ou seja, dá para ver que a adaptação se apropria muito bem de seu material de referência no quesito de conteúdo, o que podemos ver também na arte detalhista e atmosférica. O quesito do tom narrativo é o que deixa tudo, no mínimo, duvidoso. Conteúdo e tom, portanto, não estão em total acordo, causando uma estranheza que, por mais que pareça intencional, não necessariamente funciona sempre.
As folhas contam que a seriedade foi partida
Eu penso que a escolha em fazer palhaçada com Elden Ring deu-se para evitar o risco de criar algo com a aparência de uma história canônica. A fragmentação obscura dos jogos da FromSoftware não permite formar um cânone de verdade e favorece a necessidade permanente de interpretação especulativa, deixando a obra aberta. Logo, uma adaptação direta para quadrinhos seria vista como uma chave para solucionar os enigmas. Porém, uma reimaginação que leva tudo na cachorrada exclui essa hipótese de pronto.
Com certeza, a ideia é legítima como paródia, mas minha dúvida principal é por quanto tempo a piada conseguirá surtir efeito. Pelo que vi dos capítulos atuais, o terceiro volume não encerra a parte da Academia de Raya Lucaria e sua rainha Rennala, levando a crer que há ainda muito pano para manga para uma publicação longa.
Sem o efeito surpresa do primeiro capítulo, a comédia precisará continuar buscando o inesperado para manter o interesse e a graça, o que já leva para o campo da subjetividade. Eu não hesito em pensar que seria melhor que Elden Ring tivesse uma adaptação séria, mesmo que fosse feita de histórias paralelas não canônicas, como as HQs de Bloodborne fizeram de forma muito competente com Yahrnam e os Caçadores.
Está tudo pronto ali na página: a arte detalhada para dar o clima, a publicação longa para narrar com profundidade, as principais falas do jogo e a fiel representação das Terras Intermédias. A soma de todos esses elementos me fazem sentir que é um desperdício que O Caminho para Térvore tenha escolhido uma trilha potencialmente menos sustentável por depender de se manter engraçada.
O caminho ainda será longo
Se o mangá realmente leva ao riso, vai depender do leitor. Várias ideias falam diretamente a quem jogou Elden Ring, o que pode se revelar como um problema: agradar a esse público cria a sensação de piada interna, possivelmente irrelevante a quem não é familiarizado com aquele mundo e seus sistemas.
Portanto, o primeiro volume de Elden Ring: O Caminho para Térvore não serve como porta de entrada para quem não conhece o jogo. Também não serve para quem jogou e quer entender mais do que aconteceu na longa campanha. Serve como paródia para revisitar a história de Marika e sua família de semideuses e, talvez, rir um pouco enquanto passeia por páginas que retratam bem os ambientes e as caras familiares.
Para mim, a sensação de reconhecimento foi agradável o bastante para me dar vontade de comprar o segundo volume e acompanhar um pouco mais a saga de Aseo que, mesmo sem saber, deve se tornar Lorde Prístino.
Resenha produzida com cópia adquirida pelo redator e imagens dos dois primeiros capítulos digitais gratuitos
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli