Poucas desenvolvedoras conseguem equilibrar a produção de games em gêneros diferentes. A Don’t Nod é uma das que conseguiram realizar bem essa tarefa. Basta lembrar que seus próximos lançamentos giram em torno de Jusant, um game contemplativo de escalar montanhas, e Banishers, um action-rpg de época.
Entretanto, essa mudança de foco pode entregar certa inconstância nos títulos. Acredito que é o que explica Harmony: Fall of Reverie, uma visual novel que quer contar muita coisa, mas não fala nada de realmente impactante. Apesar de ter visuais belíssimos, um ótimo trabalho de dublagem e uma música soberana, o enredo, que é o principal aspecto de uma VN, não entrega uma história que realmente recompense o jogador, além de não ter nenhuma localização em português, algo tão importante em jogos de narrativa.
Entre dois mundos
Harmony nos apresenta a história de Polly, uma mulher que retorna à ilha de Atina, local no qual cresceu, depois de passar anos no exterior. Ela voltou no intuito de encontrar sua mãe que está desaparecida. No meio disso, acaba encontrando no quarto da sua mãe um colar que a leva para Reverie, uma terra além do mundo material.
Em Reverie, Polly descobre que é uma espécie de oráculo chamada Harmony, e lá é apresentada às Aspirations, seres quase divinos que influenciam a humanidade. Eles são Glória, Alegria, Poder, Caos, União e Verdade. Tomei a liberdade de traduzir os nomes já que são autoexplicativos. Cada uma dessas entidades tem suas próprias motivações, trejeitos e personalidade.
Ao mesmo tempo, em Atina, uma megacorporação chamada Mono Konzern cerca o direito e liberdade da população enquanto controla o comércio e vida locais com punho (capitalista) de ferro. Algo que talvez tenha relação com Reverie e o desaparecimento da mãe de Polly.
Ah, o famoso joguinho de escolha
Sempre que falamos de jogos de escolha é impossível não lembrar de títulos como a série The Walking Dead da Telltale Games, Detroit: Become Human (PC/PS4), Until Dawn (PS4), entre outros. A principal diferença é que aqui estamos falando de uma visual novel, gênero conhecido por seu foco estrutural no enredo, mas que nem sempre dá a oportunidade ao jogador de escolher os destinos de seus personagens.
Harmony se propõe a ser uma visual novel altamente interativa. Com um sistema completo de escolhas que criam novas ramificações, fecha outras oportunidades e traça um caminho diferente para cada jogador. Existe um mapa imenso que o jogador deve navegar entre uma fala e outra, o que quebra bastante o ritmo dos diálogos para ser sincero.
Mas a maior pegadinha, e a mais famosa em jogos de escolha, é que boa parte das divergências que as escolhas criam não são lá tão divergentes assim. Não é como em Detroit, em que suas escolhas podem significar uma revolução armada ou um protesto pacífico, ou como em Until Dawn, em que você pode acabar matando todos os personagens se jogar mal. Em Harmony, as escolhas desencadeiam finais extremamente distintos, mas que só realmente importam depois do fim da história principal. Em boa parte as experiências seguem similares de jogador para jogador.
Poder ao povo ou aos deuses?
Fica nítido desde o início que o objetivo da obra é amarrar as intrigas do mundo imaterial de Reverie com os efeitos colaterais no mundo material em Atina, e como esses dois lados da mesma moeda se influenciam. Além de alguns microdramas, que até tem seus pontos altos, a história gira em torno do velho “povo vs corporação”. É neste núcleo que Harmony tem mais equilíbrio.
O componente do socialismo é disseminado por toda a trama: na forma a qual os personagens atribuem boa parte de seus problemas ao capitalismo, a ênfase no controle da MK em toda a ilha e na exploração salarial tem sido cada vez mais agressiva. É até citado o desejo da população de eliminar a possibilidade de existência do lucro na ilha, se voltando para a produção e suprimento locais.
Entretanto, ao juntar a história do material, com as intrigas místicas de Reverie, a história perde foco, e não sabe para onde quer ir, tendo como consequências de seus atos uma gama de opções que te dão telas de ending diferentes apenas. No fim você sente que esteve em uma viagem de trem que segue em linha reta, trocando de assento, e apenas no final escolhe em qual estação quer descer.
Vale destacar que o game tem um lado político bem ativo, não só em suas entrelinhas anticapitalistas. Mas é comum temas como homossexualidade, relações abertas e poliamor serem abordadas com naturalidade. Boa parte dos personagens são tratados com pronome neutro, o que pode confundir os iniciantes no inglês. Obviamente, isso vai agradar os jogadores mais progressistas e desagradar os conservadores.
Para além das críticas ao roteiro, o projeto encontra força em suas demais especificidades. A arte dos locais, design dos personagens e dublagem são pontos de altíssima qualidade. Principalmente quando nos atentamos à música do jogo, que é tão sutil mas carrega tanta beleza. Não é de se espantar a qualidade, visto que é Lena Raine que está por trás da trilha, compositora famosa por seus trabalhos em Celeste e Guild Wars 2.
Uma experiência nichada
Harmony: Fall of Reverie é uma obra que facilmente vai agradar um público específico, e desagradar fortemente outros. Sua qualidade nos aspectos técnicos citados no texto é inegável, mas seu coração, que é o enredo, pulsa fraco. Os menos exigentes com escolhas e consequências talvez consigam apreciar a viagem com mais tranquilidade.
Prós
- Design de personagens criativo com visuais distintos;
- Trilha original impecável com músicas que dão o tom certo para as cenas;
- Ótima dublagem original que auxilia a construção de cada personagem.
Contras
- Sistema de escolhas inchado e pouco impactante;
- Ritmo lento;
- Sem tradução para o português;
- História que vai perdendo foco e força com o tempo.
Harmony: Fall of Reverie — PC/PS5/Xbox Series/ Switch — Nota 6.0Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Don't Nod Entertainment