Blast Test

Impressões: Lies of P (Multi): a demo exibe com orgulho um soulslike ao pé da letra

Na cara de pau, Pinóquio copia o estilo “soulsborne” e promete uma entrada competente no gênero.


Desde que foi anunciado, em 2021, Lies of P se destaca pela proposta inusitada: um soulslike de Pinóquio. Isso, aquele boneco de madeira que quer ser um menino de verdade e mente muito, sofrendo as consequências desse hábito. A princípio não ficou claro qual seria o tom real dessa mistura improvável, mas os trailers foram aumentando a confiança de que o título é muito mais que uma piada de mau gosto para chamar atenção e surfar na onda crescente do subgênero capitaneado pela FromSoftware.

Vimos teasers apresentando personagens, um pouco de gameplay, um extenso vídeo de demonstração de 40 minutos e, agora, temos em mãos a demo em si, disponível em todas as plataformas de lançamento (PS4, PS5, Xbox Series e PC). Gosto de como isso reflete a confiança dos sul-coreanos da desenvolvedora Round8 Studio e da publicadora NEOWIZ em seu produto. Eu já estava animado para o jogo e, agora, experimentar algumas horas na versão de PS5 trouxe uma certeza convicta à minha vontade de jogá-lo no lançamento, em 19 de setembro.



A demonstração não mente

A demo de Lies of P é um caso exemplar nesse ramo. Primeiro, é uma amostra para lá de generosa, contendo duas áreas inteiras (divididas em seções menores) e três chefes (sendo um deles um caso menor de duelo com humano, lembrando bastante os Caçadores que enfrentamos em Bloodborne).

Temos acesso ao hub da campanha; a NPCs importantes da história e informações da lore em jornais e folhetos; à armeira, que provê melhorias; aos vendedores de itens e, ainda, a uma sidequest, que nos recompensa com um disco de vinil para ouvir no gramofone do hub uma bela música cantada. Para equipar, acumulamos cinco armas customizáveis diferentes entre si, três trajes para mudar a aparência, dois braços mecânicos e algumas melhorias de personagem.




Tudo está bem embalado em um pacote bonito e muito coeso, uma vez que se trata do início real do jogo e não um capítulo recortado do meio da campanha para dar um gostinho sem contexto. Mesmo assim, o material não representa totalmente o material final, de forma que o progresso na demo não será aproveitado para o jogo completo. Levei cinco horas e meia para chegar ao final, embora mais de uma hora disso tenha sido investida em apanhar dos dois chefões principais.

Quando considero que minha experiência foi livre de bugs e sem problemas no modo performance, só tenho a elogiar o trabalho bem feito em servir ao público algo que parece demonstrar uma qualidade técnica que podemos esperar do jogo em seu lançamento.



Uma cidade de muitas histórias e mentiras ocultas

Você é Pinóquio, é claro, mas o jogo ainda não usa esse nome, chamando de filho ou títere de Geppetto (títere é o boneco controlado pelo titereiro por meio de cordas; talvez marionete fosse uma tradução mais usual). Despertado pelo chamado espiritual de uma mulher, você vagará pelas ruas devastadas da cidade de Krat em busca de respostas. Quem é você? De onde veio? Por que há tantos cadáveres pelas ruas? Por que os títeres autômatos enlouqueceram e atacam tudo o que veem?

Lies of P segue os passos de Bloodborne ao condensar sua construção de mundo na ambientação de uma cidade que será desbravada pelo jogador. Krat tem suas semelhanças com Yharnam na arquitetura por se inspirarem na Europa do século XIX, carregando o legado de eras anteriores. Semelhantemente, ambas as cidades sofreram de um mal coletivo e suas ruas estão infestadas de assassinos ensandecidos à espreita para adicionar mais um rastro de sangue aos que já mancham as ruas.




A situação em Krat parece estar um pouco pior, pois a população enfrenta o Frenesi dos Títeres, que os levou a subitamente atacar a população à qual deveriam servir, e a doença da petrificação, que enrijece e cristaliza o corpo da vítima com escamas, até que esta perca a razão e a vida.

Mesmo que o estilo artístico das duas cidades compartilhem ares da Europa do século XIX, Krat não tem a austeridade mórbida de Yharnam, que carrega uma arquitetura gótica cumulativa de séculos. Nesse aspecto, parece mais algo como vemos na série BioShock: um lugar moderno, vibrante e rico cujas ambições a levaram à total decadência. Há livrarias, restaurantes, cafés e pôsteres de eventos que representam a vida sócio-cultural e que ficou para trás e o futuro promissor que não se realizará.

O primeiro chefe, por exemplo, chama-se Mestre do Desfile, um grande títere construído para alegrar e entreter o povo nos festivais. Corrompido e perigoso, ele é um desafio ao jogador.




Espere aí, como sabemos sobre ele? Lies of P usou um recurso simples que eu sempre desejei que iluminasse a narrativa obscura dos soulslike: contexto prévio para o chefão local. Antes de chegar ao chefe, encontrei um texto que falava dele em seu auge. Enfrentei-o sabendo que aquela era uma máquina outrora benévola que agora precisa ser eliminada.

Além de evitar incorrer no lugar-comum do gênero de entrar em uma sala e de repente surgir um monstro que você não faz ideia de onde veio, isso proporciona antecipação para o encontro inevitável e alimenta a vontade de descobrir o que aconteceu para essa mudança radical no comportamento do grande autômato.



Não se engane, Lies of P tem mistérios, diálogos enigmáticos e fragmentos de lore na descrição de itens, como manda a cartilha. No entanto, minha sensação é que montar as peças é algo muito mais acessível aqui do que em outros casos. O Round8 Studio parece querer que os jogadores possam, de fato, captar o que mais importa na história de Krat e suas facções sem depender de wikis e vídeos explicativos. A clareza do conteúdo ofertado na demo foi o bastante para me deixar intrigado e interessado em entender mais dessa adaptação de Pinóquio.

A alardeada mecânica de mentir para sobreviver é empregada de forma muito simplista nas poucas oportunidades que surgem. Imagino, porém, que terá mais desdobramentos de impacto nas relações com NPCs e, por consequência, nos múltiplos finais.



Alma escura em corpo de boneco

Se Lies of P parece uma cópia de Dark Souls/Bloodborne, é porque é — e isso é algo bom. A impressão de clonagem é muito clara nos menus, nas informações de tela, nos sons e animações de personagens, na maioria das mecânicas de gameplay, na fogueira, lanterna, graça Stargazer que serve como ponto de salvamento e viagem rápida, no local seguro do hub e a NPC que fica ali para aumentar o nível do portador da maldição, cinéreo, bom caçador títere de Geppetto, nas escadas e portas desbloqueáveis como atalhos e também... acho que você já entendeu.

O mérito de Lies of P está mais na execução muito competente da fórmula mágica dos souls do que na inovação, mas isso não quer dizer que esse títere não faça seus ajustes pessoais, a começar pelo combate.



Pinóquio guerreiro, quem acreditaria?

O jogo incentiva a jogar de forma agressiva, enriquecendo a mecânica de Bloodborne que faz o jogador recuperar parte do dano sofrido se contra-atacar rapidamente. Pinóquio depende ainda mais dessa premissa.

Quando usa a defesa, ele ainda recebe dano, mas parte do medidor de vida fica com outra cor, mostrando o quanto pode ser recuperado ao acertar golpes em uma janela de tempo. Acertar inimigos também é a maneira de recuperar as Células Vitais (usadas para cura) quando a última é consumida e de renovar os pontos de ação necessários para usar as Artes das Fábulas, habilidades especiais de cada arma e punho (outro ponto dos souls que é aprimorado aqui).

Com isso, pode ser vantajoso se expor a sofrer dano com bloqueios, pois há chance de recuperar a saúde por causar dano durante as brechas que os inimigos abrem após seus ataques. Provavelmente é essa tendência que gera um dos aspectos mais incômodos do combate: a esquiva é muito curta. Talvez isso seja intencional com a finalidade de valorizar os bloqueios, ou talvez seja apenas má otimização do recurso, mas a consequência dá na mesma para pessoas como eu, que se valem muito mais de esquivas e frames de invencibilidade para sobreviver às monstruosidades que impedem nosso caminho.




A esquiva limitante pode se tornar um problema mais à frente. Os inimigos comuns não oferecem desafio, mas há alguns maiores que deram algum trabalho e até me derrotaram; estes não retornam quando descansamos em um Stargazer, o que admito ter sido um alívio.

Consegui derrotar os dois chefões maiores após tentar muitas vezes. Ambas as lutas têm duas fases e eu ainda era trucidado na segunda mesmo quando já dominava a primeira. Na verdade, no último chefe surge a possibilidade de invocar um espectro NPC para ajudar na peleja (mais uma herança dos souls) e decidi que era necessário recorrer a isso.



Confiança renovada

Lies of P entrega uma demo de respeito, com muito conteúdo e muita vontade de provar que a cara de pau da clonagem pode render boas obras e merecer nossa confiança (ainda espero que ajustem o combate para tornar a esquiva um recurso mais viável). Fui convencido da profundidade da proposta e lamentei o fim da demonstração. Agora, resta esperar mais dois meses para retornar a Krat e desvendar suas ilusões de progresso.
Revisão: Vitor Tibério

Admiro videogame como uma mídia de vasto potencial criativo, artístico e humano. Jogo com os filhos pequenos e a esposa; também adoro metroidvanias, souls e jogos que me surpreendam e cativem, uma satisfação que costumo encontrar nos indies.
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