Na primeira vez que vi um trailer de Dordogne, eu disse à minha esposa: “Veja que maravilhoso! Não sei como se joga isso, mas eu quero.”. O fato de não se conseguir distinguir as mecânicas de gameplay no trailer geralmente é um indício que estas são superficiais e que o foco está em outra parte. É o caso do jogo do estúdio francês Un Je Ne Sais Quoi, criado em parceria com o grupo Umanimation.
Vida em aquarela
De imediato, podemos perceber que o objetivo da obra está voltado para a contemplação estética e afetiva, apostando seus pontos fortes nos visuais e na história familiar contada em duas linhas narrativas separadas por duas décadas.
O carinho visual é claramente sentido nas pinceladas de aquarela que chamam atenção para uma identidade artística bela e calorosa, expressando por meio da tinta o amor por aquilo representado na tela. É importante frisar que as imagens não são estáticas: cenários e personagens são construídos tridimensionalmente, aplicando as pinturas em diferentes ângulos e camadas de profundidade que dão movimento e nutrem com ainda mais vida os ambientes pintados que percorremos.
O enredo traz Mimi como protagonista, uma mulher de 32 anos que foi demitida de um trabalho que não gostava. Para completar, a avó, Nora, faleceu, deixando para ela uma carta com instruções para que pegue uma caixa de lembranças guardada na casa do interior bucólico de Dordogne (Dordonha, em português), uma região rural no sudoeste da França onde passa o rio de mesmo nome.
Ao chegar ao local, Mimi passa a relembrar as memórias de quando passou o verão naquele lugar, aos 12 anos. As lembranças bloqueadas voltam aos poucos, à medida que ela explora a casa de Nora. Um problema familiar velado fez com que ela passasse 20 anos sem retornar à região e sem ter recordações daquele período.
Essa dinâmica de memória forma a estrutura dos capítulos: controlamos Mimi adulta em 2002, vasculhando a casa, agora desabitada, até que uma reminiscência é despertada e somos transportados para o universo da Mimi criança de 1982, controlando-a em seu cotidiano com a avó.
Interações do dia a dia
A gameplay, como esperado com base nos trailers, é minimalista. Você move Mimi pelos cenários, interage onde aparecem os ícones, busca colecionáveis e realiza algumas ações simples baseadas em movimentos, como mover o cursor até a chave, selecioná-la, conduzi-la à fechadura e girar o analógico para destrancar a porta.
O ato de jogar, ou seja, a parte de interação ativa do jogador, foca em ações corriqueiras, como escovar os dentes, fazer uma refeição e plantar uma flor. Na prática, é um sistema desprovido de desafio, uma palavra que parece não fazer parte do vocabulário de Dordogne. Essa obra favorece muito mais termos como imersão, contemplação, afetividade e envolvimento. Sinceramente? Essa era a promessa maior e não me decepcionei.
Como há pouca liberdade de exploração, para compensar, devemos procurar colecionáveis pelos cenários. Mimi criança pode achar vários adesivos, palavras, fitas cassete e sons capturados pelo gravador, enquanto sua versão adulta se depara com cartas do passado de sua família. Infelizmente, não há possibilidade de selecionar capítulos; quem quiser encontrar os itens que deixou passar deverá jogar do início novamente.
No geral, tenho críticas à implementação das mecânicas. Vejo como um problema o fato de praticamente todas as interações serem guiadas. O jogo sempre diz exatamente o que fazer e, na tela de ação, uma seta indica o que pegar e como mover, um constante lembrete de que estamos diante de um jogo e do quão simplista ele é, em oposição à imersão de ser uma menina aventureira em um verão luminoso. Dordogne até ensaia um puzzle ou outro, mas não nos concede a mesma satisfação que exprime em Mimi, empolgada por suas novas experiências e conquistas.
Minha impressão é que o jogo não confia que seu design seja claro o bastante para que as pessoas o joguem de forma intuitiva, executando ações tão específicas quanto preparar chá e virar a chaleira sobre a caneca.
Páginas quase em branco
Vejamos três exemplos importantes desse mau uso sintomático. Mimi tem um mapa da região, acessível pelo menu do fichário, mas, como a estrutura do jogo é fechada, ele nunca precisa ser usado para a finalidade de localização, servindo mais como uma maneira de nos permitir um vislumbre da região toda.
Em seguida, na câmera fotográfica, não temos nenhum tipo de opções de zoom ou foco, apenas podemos apontar e capturar imagens em momentos planejados pelo jogo. Pior: não temos liberdade para o enquadramento, que é bem limitado vertical e horizontalmente. Às vezes, eu queria apontar só um pouco mais para cima para incluir os balões que voam pela região, por exemplo.
As fotos servem para compor o fichário que Mimi ganha da avó para registrar seu verão juntas. O jogador pode iniciar uma nova página, o que, mais uma vez, é uma mecânica limitada. Consiste apenas em posicionar até quatro itens na folha: uma foto, um adesivo, um poema e um som. Um de cada e pronto, o que considero inexplicável. Também somos impedidos de editar o tamanho para tentar melhor composição.
Dessa forma, a página em branco, assim como a câmera fotográfica, é subutilizada. Sem espaço para criatividade, não vi incentivo real a compor minhas memórias gráficas no fichário. Season (Multi), jogo lançado no começo de 2023, faz um trabalho muito melhor nesse quesito, uma comparação que deixa Dordogne em desvantagem.
Há pequena exceção nos poemas: cada palavra encontrada pelo cenário contém três frases temáticas. Temos, finalmente, a liberdade de combinar esses versos do glossário obtido e agrupá-los em qualquer ordem para formar poesias de três versos. Vi-me realmente tentando criar textos que fizessem sentido com minha leitura do verão de Mimi com Nora e fiquei satisfeito com alguns deles que soaram quase como haicai.
Um rio maravilhoso e estreito
No fim das contas, Mimi se sente uma exploradora aventureira, mas o jogador fica de observador, uma dissonância que, ainda que não estrague o propósito de contemplação e nostalgia, certamente não contribui para aprofundá-lo.
Mesmo sendo essencialmente uma experiência narrativa interativa, sou de opinião de que Dordogne precisou adotar o formato de jogo para alcançar seus objetivos de nos fazer habitar a região interiorana, a nostalgia da infância, as personagens e suas relações. Um filme, história em quadrinhos ou outra mídia de arte visual não teria a mesma intencionalidade cadenciada de fazer Mimi andar por uma aquarela profunda e expressiva que combina cores, luzes e lembranças de maneira envolvente, ainda que de interações de gameplay superficiais.
Prós:
- Os visuais de pinturas de aquarela compostos em planos tridimensionais impressionam e dão muita personalidade à obra;
- Existe uma representação romântica da região rural da França;
- Seguimos Mimi em dois momentos distintos de sua vida, construindo um quebra-cabeça familiar por meio de cartas, gravações e memórias;
- Opções de dublagem em francês e occitano favorecem imergir na ambientação;
- Agradável mecânica de encontrar palavras com versos para compor poemas;
- Textos em português brasileiro.
Contras:
- Superficialidade das mecânicas de gameplay;
- As interações são sempre guiadas, como se o jogo não confiasse na clareza de seu design. Seria bom ter opção de desligar as dicas;
- Falta de liberdade para explorar os locais e encontrar as palavras e adesivos escondidos;
- A criação das páginas do fichário é limitada e não incentiva a criatividade;
- Restrição das composições fotográficas e ausência de opções de zoom e foco;
- Não há opção de seleção de capítulos.
Dordogne — PS4/PS5/XBO/XSX/PC/Switch — Nota: 7.5Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Raquel Nascimento
Análise produzida com cópia digital cedida pela Focus Entertainment