Por que não contar mais uma história?
O Senhor dos Anéis dispensa apresentações. Afinal, a saga criada por J. R. R. Tolkien sobre os pequenos hobbits que embarcam em uma jornada perigosa para destruir o Um Anel no coração do vulcão de Mordor é amplamente reconhecida, ao menos pelo nome, assim como sua mitologia elaborada e complexa.
Gollum, por sua vez, é um personagem emblemático que assume uma espécie de função camaleônica, muitas vezes confundindo o público quanto à sua lealdade, já que oscila entre ser amigo e inimigo de acordo com sua dupla personalidade. Enquanto Sméagol é o nome que representa sua personalidade ingênua, tímida e vulnerável, Gollum é a persona obcecada, ardilosa e perversa, dominada pela obsessão pelo Um Anel, seu Precioso.
Desde o período promocional, não foi incomum ler críticas sobre a escolha de um personagem como Gollum para protagonizar um jogo, considerando tal decisão um erro por si só. No entanto, um entusiasta pela obra de Tolkien tende a discordar, pois compreende que até mesmo o mais simples galho de árvore da Terra Média teria uma história para contar e ser explorada. Os fãs estão predispostos a ouvir histórias paralelas que enriquecem ainda mais esse universo já tão elaborado.
A proposta de The Lord of the Rings: Gollum, então, não é ruim. Baseando-se em um excerto do capítulo A Caçada Pelo Anel presente em Contos Inacabados, o jogo conta a história do personagem após perder o Um Anel para Bilbo Bolseiro e ser capturado por Sauron, que o tortura e o libera na crença de que ele levaria seus asseclas àqueles que estão de posse do artefato. No entanto, ele acaba sendo capturado por Aragorn e interrogado pelo mago Gandalf.
Na prática, é uma lacuna no universo que pode ser explorada, algo que a produção da Daedalic Entertainment fez com certo respeito ao material base. No entanto, o problema surge na execução do projeto, pois o produto não atinge o mesmo nível de qualidade técnica da narrativa meticulosa e precisa da obra original.
Parece um jogo de filme, mas sem o filme
A jogabilidade de The Lord of the Rings: Gollum é baseada em um formato que combina elementos de furtividade com plataforma em 3D, algo que era comum no início dos anos 2000, durante a sexta geração de consoles (PlayStation 2, Xbox e GameCube), especialmente nos famigerados jogos baseados em filmes. Isso implica que todo o design do game se assemelha a produções dessa mesma época, o que é considerado consideravelmente ultrapassado em relação às capacidades técnicas básicas apresentadas pelas tecnologias de 2023.
Assim, o jogo se resume a percorrer os ambientes seguindo uma lista de tarefas que nos é fornecida a cada fase, como acompanhar determinado personagem ou coletar certos objetos. Enquanto isso, tentamos nos esgueirar em meio a orcs desatentos e de movimentação previsível, escalamos paredes, nos escondemos nas sombras, resolvemos quebra-cabeças simplórios e nos equilibramos em plataformas que parecem estar ensaboadas. Tudo de uma maneira extremamente linear e óbvia.
O design das fases não é nem um pouco inventivo ou sequer interessante. Além disso, também é notavelmente mal-planejado. Em várias ocasiões, deparei-me com espaços nos quais o tamanho era adequado para que Sméagol passasse, mas, inexplicavelmente, ele era impedido por uma parede invisível. Isso não tinha nenhuma necessidade, bastava diminuir o tamanho do caminho em questão, mas o planejamento parece não ter sido um ponto forte da equipe responsável, como se o departamento de design de fases e o de arte não conversassem entre si.
Claramente um espaço por onde Gollum se esgueiraria sem problemas, mas é impedido por uma parede invisível. |
Além disso, digo com tranquilidade que o maior inimigo do jogador é a câmera. Como de praxe dos títulos do começo dos anos 2000, não é raro nos depararmos com situações em que morremos devido à dificuldade da câmera em acompanhar os movimentos do personagem, isso sem mencionar os bugs que ocasionalmente ocorrem e podem até mesmo exigir que o jogo seja reiniciado. Também é notável a ausência da opção de ajustar a velocidade dos movimentos manuais, o que poderia proporcionar uma experiência mais personalizada e confortável para cada jogador.
Dentre todos os glitches decorrentes de uma péssima otimização, um dos mais recorrentes é a dificuldade em carregar as texturas. Em várias fases, encontrei uma espécie de inferno espinhoso e completamente cinzento, já que as texturas do local simplesmente não carregaram corretamente; em outras ocasiões, elas se apresentam na forma pop-in, quando há o carregamento de uma textura de baixa qualidade primeiro, de forma provisória, para então trocá-la pela “oficial”. Ou seja, o jogo leva o conceito de pop-in a um outro patamar: em vez de aparecerem texturas estouradas, elas sequer carregam.
O aspecto que certamente poderia ser o mais interessante em The Lord of the Rings: Gollum são as sequências em que o jogador atua como mediador entre as duas personalidades ao tomar decisões supostamente cruciais para a história. No entanto, infelizmente não foram encontrados momentos significativos em que parecesse que nossas escolhas nesse aspecto realmente importavam. Isso deixa a impressão de que o destino do personagem sempre será o mesmo, independentemente da opção selecionada.
Nesse aspecto, é como se o respeito pelo material original fosse convertido em um medo de ousar com decisões menos ortodoxas, trazendo uma abordagem bastante superficial para um personagem considerado complexo. Ele não se desenvolve como poderia porque o time por trás sabia, no fundo, que não podia entregar um personagem diferente daquele que se vê na trilogia d’O Senhor dos Anéis, mas isso acaba prejudicando The Lord of the Rings: Gollum sob o viés da criatividade narrativa.
Nota-se que essa mecânica chamou atenção justamente pela forma com que diverge do material de divulgação. A interface apresentada na screenshot conceitual não tem absolutamente nada a ver com a que o produto final ofereceu. No jogo, a interface se resume a uma tela escura com opções apresentadas em uma fonte genérica, o que é uma decepção em comparação com as expectativas geradas pela imagem inicialmente divulgada.
That Gollum game was never going to be great but damn if this isn’t the funniest “alpha footage vs final release” since maybe the first Watch Dogs pic.twitter.com/JRL5I9xhvT
— Lumpy (@LumpyTheCook) May 25, 2023
A parte mais interessante disso é que, sendo um produto baseado na obra de Tolkien, não é realmente necessário complicar para compreender a abordagem visual, uma vez que essa estética já está consolidada há pelo menos vinte anos, considerando os filmes de Peter Jackson como um marco nesse sentido. Não seria necessário reinventar a roda no universo da fantasia, bastava seguir a mesma linha estabelecida anteriormente.
Embora o material promocional também tenha acertado nessa atmosfera, é nítido que o próprio jogo não acompanhou no rebuscado gráfico, que é feio tal qual o personagem principal em questão. Só porque a existência do Gollum é descrita como uma figura desagradável, não significa que todo mundo (ou melhor ainda, todo o mundo) precisasse ser também.
É claro que, para complementar com uma cereja estragada em cima do bolo mofado, há os pacotes DLCs, que se tratam de elementos primariamente estéticos, como reações adicionais para o personagem principal dizer "Meu Precioso" com um simples toque de um botão; e um apêndice enciclopédico com mais informações sobre a mitologia do universo (algo que deveria estar presente no próprio jogo-base). O ponto alto desses conteúdos adicionais é a possibilidade de trocar os diálogos dos elfos para Sindarin, um dos idiomas dessa raça. No entanto, essa ideia interessante acaba se perdendo diante da precariedade do produto em si.
Dentre os problemas, ao menos um debate positivo
Talvez o único aspecto positivo a respeito de Lord of the Rings: Gollum é que ele acabou involuntariamente trazendo à tona um debate na indústria de videogames sobre como os desenvolvedores (que, aqui, inclusive pediram desculpas em relação ao material entregue) infelizmente acabam sendo expostos quando entregam um produto de baixa excelência, mesmo tendo dado duro diante de claras dificuldades na produção de um jogo.
Cito, inclusive, o que falei na minha análise de Troublemaker (PC), em que afirmei que “conseguir vender seu jogo deveria ser motivo de orgulho, mas não dá para ter orgulho disso, infelizmente”. Afinal, ninguém realmente quer ou gosta de tornar público um trabalho sabidamente aquém da própria capacidade de execução.
É claro que os desenvolvedores não vão ter culpa na maior parte das vezes, uma vez que eles acatam ordens de produtores com maior poder de decisão. Ainda assim, será que não houve um executivo de alto escalão que tenha botado as mãos no jogo e percebido que ele não tinha condições de ser lançado?
Nesses casos, todo mundo sai desnecessariamente prejudicado. Isso vai tanto para os desenvolvedores, que ficaram expostos diante dessa sacanagem, quanto para a imagem da empresa, que sai queimada dessa história toda. Não lançar o jogo, muitas vezes, é uma decisão que envolve proteger a própria marca e evitar danos maiores, ainda saindo no prejuízo, mas com perdas menores e controladas.
Afinal, por mais que O Senhor dos Anéis seja uma marca fortíssima e eu tenha defendido a existência de Gollum como mais uma história a ser contada, não é como se a indústria fosse sentir falta de um título com essa proposta. Basta ver Star Wars 1313, por exemplo, que pertence a outra franquia de força (com o perdão do trocadilho) similar, mas foi cancelado e quase nunca é lembrado hoje em dia porque outros produtos melhores surgiram.
Em um mercado de entretenimento tão dinâmico quanto o atual, errar acaba tendo consequências graves. A pior parte é que as empresas aparentam não evoluir a partir dos erros das outras. Quantos Forspokens, Cyberpunks 2077, Babylon’s Falls serão necessários para que a lição seja aprendida?
E assim, não é como se o time de desenvolvimento não tivesse conseguido atestar sua competência nas entrelinhas. É só ver que a experiência oferecida pela trilha sonora ou pela galeria de arte virtual que também estão presentes como DLC é infinitamente mais agradável que a do próprio game.
Queimando no magma da montanha da perdição
Infelizmente, The Lord of the Rings: Gollum (Multi) é um produto não só mal desenvolvido, mas também mal otimizado, uma combinação-bomba para qualquer videogame. Jogá-lo é como estar preso em um título do começo dos anos 2000, época fértil para uma série de jogos licenciados cuja ambição na produção é proporcional à sua questionável capacidade técnica.
Prós
- Trouxe um debate interessante sobre empatia com os desenvolvedores da indústria de games;
- Os diálogos em Sindarin são o fanservice mais digno aqui.
Contras
- Visualmente desagradável, ao menos uns quinze anos atrasado;
- Dificuldade notável em carregar as texturas;
- Design geral de fases sem criatividade alguma, com paredes invisíveis e caminhos lineares;
- O medo de entrar em contradição com a mitologia original prejudicou a criatividade;
- Quebra-cabeças óbvios;
- Ciclo básico de jogo em desacordo com a indústria moderna;
- Aventura sem inspiração alguma na execução;
- Péssima otimização;
- Não chega nem perto do potencial apresentado durante o pré-lançamento;
- Faltou preciosismo com a marca.
The Lord of the Rings: Gollum — PS4/PS5/PC/XBO/XSX — Nota: 2.0Versão utilizada para análise: PC
Revisão: Davi Sousa
Análise produzida com cópia digital cedida pela Daedalic Entertainment