Análise: Troublemaker (PC) é o disfuncional encontro entre Bully e Like a Dragon

Como um delinquente da ficção, o jogo tem até o coração no lugar, mas se esconde por trás de tanta baderna.

em 26/04/2023

Os primeiros minutos de Troublemaker (PC) certamente fascinam. Não é preciso de muito tempo para perceber que ele nem disfarça o fato de se tratar de um clone de Like a Dragon (anteriormente, Yakuza), o que me fez me sentir em casa de imediato. A principal diferença é que, em vez de se colocar nos pés de um honrado integrante da máfia japonesa, o jogador assume o controle de Budi, um problemático estudante Indonésio em sua nova escola.


A questão é que, depois de pular de escola em escola sem se adequar por conta do temperamento explosivo, Budi finalmente se encontra em uma na qual as gangues são bizarramente estimuladas a se formar e se envolver em combates viscerais nas dependências do colégio. Aparentemente, isso faz parte da política da instituição. Pense em algo próximo a Kill la Kill, mas sem a parte dos uniformes de fibra alienígena que conferem habilidades especiais.

Conceitualmente, Troublemaker se sustenta, porque ele consegue entender o produto que quer ser. Afinal, trazer um valentão como protagonista em um título ambientado em um colégio não é exatamente novidade, uma vez que Bully (PS2) já causava polêmica há quase vinte anos. O problema central é que houve uma notável falta de capacidade técnica para conseguir colocar todas as propostas em prática de uma forma consistente. Isso se estende a várias frentes diferentes de game design.




A primeira inconsistência mais perceptível se dá logo no aspecto visual. Os gráficos não são dos melhores. Eles têm cara de se tratar de assets prontos da própria engine de jogo que foram alterados para se adequar levemente à proposta de Troublemaker. Isso vale também para os shaders e todo o resto que compõe a aparência do jogo, com exceção da identidade visual cartunesca.

Tal identidade visual, por sua vez, não casa de maneira alguma com o estilo de gráfico realista, criando um conjunto disfuncional. Essa parte (que corresponde aos menus, CGs dos personagens, etc) consegue ser até que decente, mas os gráficos propriamente ditos pesam negativamente a ponto de prejudicar até mesmo a competência dessa estética meio anime que as ilustrações trazem, como um todo.

Em termos de história, também é falha porque erra a mão na própria sátira que tenta trazer. O enredo mais se preocupa em fazer piadinha e embutir referências a memes e cultura pop do que realmente em tentar contar alguma coisa à sua audiência. Tudo bem ser uma sátira, o problema é ela ser vazia. Depois de um tempo, eu só me via pulando as cutscenes para avançar no jogo em si.




Aí é quando desembocamos em mais um problema: tradução. De um modo geral, é bastante compreensível, mas conta com algumas construções frasais muito bizarras. Se tem um ponto em que valeria terceirizar o serviço, algo que o estúdio responsável aparentemente não fez para quase absolutamente nada, é justamente esse. A falta de fluidez na leitura atua contra o nosso interesse de ao menos tentar acompanhar a narrativa, já que a tradução se mostrou como mais um fator que justifica o uso do botão de pular os diálogos.

Ainda nesse aspecto, considerando também a falta de familiaridade com nomes e termos indonésios por parte do público ocidental, alguns tratamentos na própria exibição textual poderiam ajudar bastante, destacando (com outra fonte ou cor) palavras ou características importantes. Faltou um pouco de visão de produto no que diz respeito à sua ambição de ser lançado em um mercado internacional.

Troublemaker certamente também teria se beneficiado de outros recursos, como o de controlar o fluxo do diálogo das cutscenes faladas, uma vez que não entendo o idioma e eu bem gostaria de avançar fala por fala por conta própria. Isso se mostra importante porque tais sequências não são totalmente animadas, mas apenas quadros estáticos como os de uma Visual Novel.



Além das paredes invisíveis da escola

A história e o aspecto visual de Troublemaker até poderiam ser relevados se o bruto do gameplay funcionasse na prática, mas infelizmente não é o caso aqui. Como um clone de Like a Dragon, chama a atenção como a franquia da Sega não foi só uma fonte da qual ser bebida, mas praticamente mergulhada. Isso envolve desde como a escola foi utilizada de forma análoga a Kamurocho a até mesmo os combates aleatórios nos corredores ou os letreiros antes de cada luta importante.

Aí, não foi preciso jogar dez minutos para que eu pudesse me sentir em casa. Enquanto a identidade visual só emula o estilo de uma forma bem parecida, conseguindo ter luz própria, os símbolos do mapa que indicam o personagem jogador e outros pontos de interesse são simplesmente idênticos, como se ninguém fosse notar.




Só que os títulos da série Like a Dragon são notavelmente conhecidos por sua expansividade. Um mundo aberto recheado de atividades paralelas a serem cumpridas, minigames a serem jogados e histórias secundárias a serem conhecidas pelo jogador. Todos esses elementos deixavam aquele mundo vivo. Troublemaker, entretanto, cria uma falsa ilusão de ambiente aberto, uma vez que tudo nele é incomodamente fechado e vazio, cheio de restrições banais.

Por que não consigo cortar caminho pelas salas de aula? A quantidade de paredes invisíveis chega a ser levemente frustrante ao longo da navegação pela escola. Isso logo é sanado quando o game abre para percorrer o local com mais liberdade, mas esse momento leva mais tempo do que eu acho que deveria para chegar, principalmente porque antes disso o game se resume a seguir algum personagem e entrar em lutas repetitivas. Não há atividades secundárias que tragam respiro.

Particularmente, eu acho que linearidade não é um problema universal no que diz respeito a videogames. Existem certos jogos que se beneficiam da sequência básica de uma fase atrás da outra e está tudo bem nisso. No More Heroes 2, por exemplo, ofereceu uma experiência de jogo bem superior ao primeiro quando trocou o mundo aberto por um menu entre cada nível a ser enfrentado.




Assim, essa prática de colocar a jogatina sobre trilhos será um problema contextual, como é o caso de Troublemaker, porque Yakuza acaba tendo uma identidade muito própria que diz respeito a todo o seu ecossistema de jogo — e isso inclui um ambiente imersivo, diverso e dinâmico, recheado de atividades que rendem incontáveis horas de jogo adicionais. Sem capacidade de colocar isso em prática, o que você tem é um clone deformado e um produto falho que não conseguiu se ater à essência do que se pretendia.

Para coroar, o combate (que na primeira experiência parecia ter potencial) só se mostra repetitivo e tedioso por sua simplicidade. Ele até funciona, mas chega a ser chato ter que contar sempre com os mesmos movimentos em loop de um jeito bem sem graça. Miram em Yakuza, mas acertam em Dark Souls nesse aspecto de simplesmente decorar o padrão do oponente e tentar lidar com ele utilizando seu próprio padrão. Lutar em Troublemaker, então, logo se torna uma atividade bem morosa devido às lutas recicladas a todo momento, inclusive com os chefões.

Este é, novamente,  outro problema contextual. Repetir bosses ao longo da trama nem sempre é um problema, desde que os próprios oponentes ofereçam experiências de luta bem diferentes entre si a ponto de gerar um contraste e a revisitação ser bem-vinda. Não é o caso aqui, uma vez que todos os rivais são muito parecidos. Paciência, né?




Por fim, a própria curva de progressão tem falhas bem graves. Isso é porque a loja onde compramos os itens e técnicas já disponibiliza todos os desbloqueáveis de uma vez só, o que mata o sentimento de estarmos evoluindo aos poucos. Alguém com muita paciência conseguirá ficar só lutando contra os inimigos aleatórios a ponto de conseguir dinheiro suficiente para desbloquear todas as habilidades especiais logo no começo.

Ter coração no lugar certo não basta

Eu queria mesmo ter uma experiência positiva com Troublemaker. De verdade. Dá para ver que os desenvolvedores tinham o coração no lugar. Também houve ambição, o que é bom para a criatividade. Entretanto, nada disso é suficiente se falta capacidade técnica para executar as ideias de forma apropriada. Dá até um pouco de pena.

Digo, a gente entende o ponto de vista dos desenvolvedores, que só estão dando duro e tentando fazer seu trabalho — o que não tem problema algum. Os caras estão lá se esforçando para colocar um sonho no papel. É bem louvável, o problema é que todo mundo também está nesse mesmo barco e nem todos vão chegar lá sem um furo para afundá-lo.




Nesse caso, acho até que faltou um pouco de noção no que diz respeito a um trabalho competente. Descascar uma empresa milionária é uma coisa, mas a gente fica até sem graça de fazer isso com quem certamente ralou à beça para conseguir botar seu produto à venda. Conseguir vender seu jogo deveria ser motivo de orgulho, mas não dá para ter orgulho disso, infelizmente.

Prós

  • Coração dos desenvolvedores claramente no lugar;
  • Identidade visual estilo anime se destaca positivamente.

Contras

  • Muita linearidade ao longo da campanha;
  • História chata de se acompanhar por problemas tanto narrativos quanto de tradução;
  • Casamento disfuncional da identidade visual com os gráficos do jogo;
  • Combate moroso e simplificado sempre contra os mesmos inimigos;
  • Desequilíbrio na progressão e no senso de evolução;
  • Faltou capacidade técnica para conseguir colocar as propostas em prática.
Troublemaker — PC — Nota: 5.0
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida com cópia digital cedida pela Freedom Games

É jornalista formado pelo Mackenzie e pós-graduado em teoria da comunicação (como se isso significasse alguma coisa) pela Cásper Líbero. Tem um blog particular onde escreve um monte de groselha e também é autor de Comunicação Eletrônica, (mais um) livro que aborda história dos games, mas sob a perspectiva da cultura e da comunicação.
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