Entrei em contato com eles via e-mail e tive a oportunidade de realizar uma entrevista para entender um pouco melhor sobre a empresa e seus projetos. O resultado vocês conferem abaixo.
Introdução
GameBlast (GB): A Time Galleon é uma publisher voltada ao mercado específico de visual novels. De que forma surgiu a ideia de investir nesse ramo específico?
Time Galleon (TG): A Time Galleon nasceu de uma junção de muitas coisas, como o desejo de contar histórias, compensar melhor autores que, historicamente, são mal-compensados no espaço editorial e trabalhar com jogos que podem ser desenvolvidos na nossa realidade. Visual novels únicas e atraentes podem ser desenvolvidas com times relativamente pequenos e explorar conceitos narrativos que outros gêneros de jogos teriam mais dificuldade em abordar.
GB: A Time Galleon tem estabelecido parcerias com autores e ilustradores para múltiplos projetos e um dos pilares da sua empresa está relacionado justamente ao respeito à visão de autoria. De que forma vocês trabalham para valorizar esse aspecto no desenvolvimento dos jogos?
TG: Valorizamos a visão autoral dos autores para que os jogos possam ser os mais únicos possíveis. Oferecemos apoio ao autor para executar o projeto, mas as decisões são tomadas de forma humana. Não existe o famoso “conselho de engravatados” preocupado em deixar a obra mais comercial a ponto de descaracterizá-la. Assim, os projetos podem se desenvolver de forma mais orgânica.
GB: Além da questão autoral, a representatividade e a busca por cultivar o hábito de leitura do público são termos que vocês mencionam como pilares da Time Galleon. Como uma empresa brasileira voltada para o mercado de visual novels, como vocês enxergam o mercado (tanto do ponto de vista dos produtos quanto dos consumidores) no momento? De que forma vocês acreditam ser capazes de deixar a sua marca em meio a tantas obras lançadas anualmente e um público tão específico?
TG: Pode não parecer, mas visual novels têm um bom alcance de mercado. Jogos como milk inside a bag of milk e Phoenix Wright contam com mais de 15 mil avaliações no Steam, um número bem alto, mas milk não é um jogo que você vai ver sendo coberto em grandes veículos, porque é nichado. Ou seja, temos um público específico que queremos cativar e fazemos isso oferecendo uma gama vasta de estilos de jogos.
Acreditamos que o foco em autores brasileiros traz um elemento que outros jogos não têm: temos autores, quadrinistas e ilustradores excelentes que ainda não entraram nesse mercado, e podem atingir um público ainda maior nos games.
I Did Not Buy This Ticket
GB: Gostaria de saber um pouco mais sobre os seus projetos atuais. O primeiro título que vocês lançarão é I Did Not Buy This Ticket, uma experiência surreal de terror psicológico sobre uma mulher embarcando em um ônibus com um bilhete que não comprou. Conte-nos mais sobre a ideia, como ela surgiu e quais foram as inspirações por trás dessa história?
Tiago Rech, criador de I Did Not Buy This Ticket: Muitas das primeiras inspirações desse jogo vieram de uma viagem que fiz para São Paulo em 2019, para participar do Firmeza Fest, e acabei tendo que voltar de ônibus. É uma viagem longa, de umas 12 horas e alguns detalhes ficaram na memória: o longo tempo na estrada, uma pessoa fazendo barulhos irritantes no banco de trás. Isso se misturou ao conhecimento das carpideiras, um elemento que ficou na minha cabeça também e que pareceu interessante para se abordar num jogo, algo que dificilmente apareceria fora de uma visual novel ou adventure.
Daí para o resto do jogo foi a exploração de eventos e acontecimentos instigantes e perturbadores que poderiam ir formando a história.
GB: Uma coisa que chama a atenção em I Did Not Buy This Ticket é o seu estilo artístico, que mistura elementos realistas para a representação de seres humanos com cores de forte contraste e vários elementos perturbadores, especialmente em algumas expressões relacionadas ao olhar dos outros. Como vocês chegaram a esse estilo específico?
Lírio Ninotchka, ilustradora do jogo: Alguns fatores delinearam o estilo de Ticket. A ideia principal, trazida pelo Rech, citava esse desejo do jogo ter esse visual surrealista, que a gente percebe muito na [técnica da] colagem. A partir daí, passei a garimpar nas minhas referências elementos que pudessem se adequar a essa técnica e que se parecessem com o meu estilo próprio de ilustração (que tem origem na aquarela). Recortes e muita cor unidos ao enredo do jogo nos trouxeram até esse estilo específico que hoje apresentamos a vocês em I Did Not Buy This Ticket.
Monstrous Love
GB: Monstrous Love é uma história erótica adaptada de um quadrinho de mesmo nome. Como tem sido o processo de adaptar essa história para o formato de visual novel? Quais dificuldades vocês enfrentaram? Foi possível perceber alguma vantagem/diferença no novo formato que não seria possível no outro?
TG: O Monstrous Love é um jogo bem diferente dos outros três, tanto temática quanto mecanicamente.
O processo de adaptação é bastante interessante porque podemos observar as diferenças de uma mídia para outra. Cenas que funcionam perfeitamente no quadrinho ficam um pouco rápidas demais no jogo, por exemplo, e requerem um pouco de extensão para ficarem com um ritmo mais confortável.
Isso também acarreta dificuldades e desafios técnicos. As cenas picantes do jogo envolvem mais interação por parte do jogador e funcionam diferente do sistema de escolhas de diálogo. Nisso precisamos montar a cena de acordo com as possibilidades e limitações da ferramenta, o que gera algum trabalho do lado técnico.
GB: Em se tratando de uma obra para maiores de 18 anos, um detalhe que chama a atenção em Monstrous Love é a forma como a autora pensa a sexualidade. Mesmo em uma olhada rápida pelo seu portfólio de quadrinhos, é perceptível que você representa positivamente a relação da mulher com seu próprio corpo e o erotismo. Qual é a sua perspectiva em relação ao assunto e o que já temos atualmente de representação do prazer feminino na mídia?
Ana Pepper, autora de Monstrous Love: Primeiramente, fico feliz por notar essa positividade! Existe um aspecto insistente em nossa cultura que tende a ver o prazer feminino como algo "pecaminoso" ou digno de culpa. Procuro fazer minha parte para quebrar esse conceito e promover mais bem-estar e autonomia entre as mulheres. Quanto à representação do prazer feminino na mídia, sinto que muitas personagens femininas nos jogos ou quadrinhos que manifestam seus desejos variam entre malignas, burras ou meros objetos sexuais. Embora eu não seja contra nenhum tipo de arquétipo, vale refletirmos sobre isso.
Nowhere Manor
GB: Nowhere Manor é uma história sobre uma boneca criada para ser uma serva. Curiosamente, nesse contexto, o fato de ela adquirir consciência deixa de ser uma benção e se torna uma maldição, já que ela consegue perceber os horrores da situação em que se encontra. Conte-nos um pouco mais dessa história e dos tópicos e temas que você pretende discutir com ela?
Roy, autor de Nowhere Manor: A consciência não começa sendo benção ou não. A interpretação do leitor é que possibilita a qualificação do ocorrido ou, como é percebido no jogo, o sobrevivente em sua glória é quem categoriza a benevolência dos eventos passados dependendo de seus resultados.
O horror da situação é o senso de mortalidade. Essa é a primeira coisa dita no jogo, mas, por ser um temor primário, uma estrutura instintiva de qualquer ser vivo, não se qualifica como um argumento forte o bastante para eleger Liber possuidor de uma alma dentro das regras arbitrárias da mansão; Liber se torna ora um estrangeiro, ora um espelho de culpa, temores, afetos e mentiras.
Antes de possuir uma identidade, Liber é o reflexo de tormentos projetados pelos demais visitantes da mansão, especialmente por estarem lidando com alguém isento dos elementos em que se agarram para constituir suas identidades: passado e desejos. As personagens diferentes abordam temas variados, e, por enquanto posso dizer que um dos conflitos que o jogador de Nowhere Manor vai encontrar com Liber, personagem principal, provém dessa fragmentação de sua realidade: essa distinção de possuir uma consciência, mas absurdamente não possuir um enquadramento dentro das convenções dos demais que a justifique.
GB: Um detalhe aparentemente importante da trama de Nowhere Manor é a estrutura social de anjos e demônios movida a sacrifícios e ambições. Visualmente, é possível perceber um detalhamento que reforça o tom sombrio de ambientes e a expressão enigmática dos personagens. Você poderia descrever um pouco o seu estilo artístico e como essa estrutura social impacta as escolhas de design para os personagens e cenários?
Roy: Anjos e demônios em Nowhere Manor são sociedades que se movem como uma balança regendo duas formas de perceber a “alma”. Ambos se interessam pela mesma essência e a abordam de formas complementares, o que aparece bastante nas escolhas visuais do jogo.
Personagens como os anjos possuem aspectos como a incapacidade por perdão, priorizam o belo como virtude, perdem-se de si mesmos em troca do coletivo perfeito e pregam auto sacrifício como ideal moral. Demônios são consumistas autorreferenciais, aniquiladores do que amam, sabotam-se com ilusões em prol do deleite, e, como humanos, temem o tédio.
O desenho traduz essas distinções para os cenários e as personagens lhes dá personalidade, ,e por possuírem identidades muito fortes no coletivo dentro do que conhecemos como “angélico” e “diabólico”, isso me permite a aplicação de contradições dentro de seus estilos individuais. A estética dos anjos de Nowhere Manor pode ser associada aos estilos rococó, neoclássico, barroco… ainda assim, nas minhas escolhas para a criação de seu universo não existe simetria em seus salões clássicos, seus monumentos não pregam beleza harmônica, existe acúmulo industrial na ornamentação de seus quartos e, quando se tem asas, pouco interesse se dá no tratamento dos ladrilhos do piso…
Você vai ver algumas passarelas metálicas pelos corredores. O mesmo acontece com os demônios, apesar de suas linhas serem mais expressivas dentro do esperado caos endiabrado; eles têm uma organização mais utilitária tanto em seus cômodos quanto nas roupas. Suas estruturas possuem uma fragilidade cinética e muitas vezes com mais cabos e instalações automatizadas do que os pilares coríntios que habitantes da mansão parecem adorar.
Alexandria IV
GB: Alexandria IV é uma história de ficção científica no formato ópera espacial e um dos pontos comentados na sua descrição é a importância da diplomacia e da estratégia. Como esses elementos são refletidos na gameplay desse título?
TG: O jogo conta com situações tensas em que o jogador precisa equilibrar seu relacionamento com diversos personagens. Como líder da estação, é preciso tomar lados e gerenciar recursos com sabedoria. É comum que favorecer um personagem em uma situação faça com que a ira de outro personagem aflore, criando situações tensas na história.
GB: A ideia de Alexandria IV é ser uma visual novel episódica em cinco atos. As decisões tomadas em cada episódio impactará os eventos dos próximos jogos? Imagino que, em caso positivo, isso pode gerar uma grande árvore de possibilidades. De que forma isso é organizado para manter a estrutura da história?
TG: No momento, a história do Alexandria IV se fecha no próprio jogo. O jogo conta com cinco atos, que funcionam como os episódios de uma temporada de seriado. Cada um tem sua própria trama, mas também avança o arco maior da história, com o episódio final sendo o final da temporada.
Véu da Verdade é um universo vasto, que conta com livros e RPGs. Não excluímos a possibilidade de uma sequência no futuro!
Considerações finais
GB: Além do PC, vocês mencionaram em nota à imprensa que pretendem lançar os seus títulos nos consoles e nos sistemas mobile. Em quais sistemas vocês estão de olho para esses lançamentos? Confesso que, no que acompanho do mercado, é até uma expectativa ousada, pois vejo muitas desenvolvedoras evitando outras plataformas pelos custos envolvidos. Muitas recorrem ao financiamento coletivo para viabilizar esses projetos. É algo que vocês têm em mente para o futuro próximo?
TG: Temos em mente o mercado de consoles em geral para ampliar o alcance dos jogos. Já fazemos parte do ID@Xbox e estamos portando o [I Did Not Buy This] Ticket para o console e também temos prestado atenção na compatibilidade com o Steam Deck — certos formatos de vídeo não são compatíveis com ele. Também temos alguns casos únicos — Monstrous Love, por exemplo, não pode ser comercializado nessas plataformas, e deve ficar pelo PC.
Financiamento coletivo não é algo que planejamos para portar jogos, mas não descartamos para viabilizar algum projeto futuro.
GB: Além dos jogos planejados para 2023, vocês têm outros projetos já em andamento? Durante a CCXP 2019, um dos nossos redatores havia conversado com o Pablo Abraham sobre A Bandeira do Elefante e da Arara: Três Reinos, projeto que infelizmente não bateu a meta no Catarse. Esse título ainda faz parte das metas de vocês ou acabou sendo inviabilizado?
TG: O Três Reinos, da forma como existia, é um projeto mais difícil de viabilizar no momento. Era um jogo bastante grande que contava com três roteiristas e que teria um período de desenvolvimento bastante grande.
Um desses roteiristas era o Tiago Rech, que hoje é Lead Storyteller na Time Galleon. Um dos grandes objetivos dele é ambientar mais jogos no Brasil, e ele ainda gostaria de criar algo no universo da Bandeira. Talvez. Quem sabe?
GB: Fiquem à vontade para deixar um recadinho aos leitores sobre vocês, as suas propostas e os jogos que estão desenvolvendo.
TG: Visitem e sigam nossa página no Steam, https://store.steampowered.com/publisher/TimeGalleon/, e coloquem nossos jogos na lista de desejos! Ajuda MUITO! Vocês também podem nos acompanhar em todas as redes, e nosso @ é o mesmo sempre: @timegalleon.
Lembramos que nosso primeiro jogo, o I DID NOT BUY THIS TICKET, lança em breve, em 13 de abril, e toda resenha colocada no Steam também ajuda o jogo a alcançar um público maior :)
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli