Como já apontamos na análise de Vitor M. Costa, no ano passado, Citizen Sleeper é um RPG narrativo que se destaca pela escrita bem-feita e pelo aprofundamento psicológico e social de suas histórias ramificadas que formam vida na enorme estação espacial chamada Olho de Erlin (Erlin’s Eye).
Exceto pelas ilustrações e a parte sonora, tudo foi feito por uma só pessoa, Gareth Damian Martin, cujo bom trabalho foi reconhecido com quatro indicações no BAFTA Game Awards 2023 e uma no The Game Awards 2022. O jogo já havia sido bem recebido pela crítica e pelo público, o que permitiu a Gareth retomar histórias previamente planejadas, mas que tiveram que ficar de fora da produção original.
O fluxo, o refúgio e o expurgo
A adição foi lançada em três episódios: primeiro veio FLUX, lançado em julho; depois foi REFUGE, em outubro; finalmente, o episódio PURGE foi liberado recentemente, em 30 de março, tornando Citizen Sleeper uma obra completa.
Na verdade, como só o joguei agora, com todo o pacote pronto, não tenho como deixar de pensar que, sem esses episódios, ficaria uma sensação de que o jogo estava inacabado, precisando de algo mais para finalizá-lo.
Citizen Sleeper tem vários finais, é claro, mas todos dizem respeito ao destino de Sleeper, enquanto a trilogia de episódios finais aborda o Olho como um todo. E mais: a história assume uma escala que envolve todo o sistema planetário, suas culturas e sua história como propriedade corporativa, desde antes até depois do colapso de Solheim. Com isso, os DLCs não trazem apenas um mais do mesmo narrativo, e propiciam novas percepções e um novo formato.
Se a campanha base parecia uma árvore ramificada em histórias isoladas que são fragmentos para entender a vida no Olho e o único elo em comum é o envolvimento de Sleeper, os episódios extras seguem uma linha coesa em que tudo e todos giram em torno do problema inicial: a chegada de uma flotilha de refugiados vindos de outro lugar daquele sistema planetário.
As três partes funcionam em continuidade, cumprindo papéis distintos de introdução, desenvolvimento e conclusão. Ao chegar à região de Greenway na campanha base, o jogo avisa que o episódio FLUX pode ser iniciado, um fio que se desenrola em paralelo às demais histórias. Vistas como um todo, elas servem de um excelente terceiro ato definitivo a Citizen Sleeper.
Universo em expansão
Nessa introdução, a flotilha chega ao Olho e é barrada de entrar. As naves ficam contidas em um cordão de isolamento em um dos extremos do aro externo, onde acontece quase todas as interações dos DLCs, e são vigiadas em quarentena imposta por decisão do conselho de Havenage, que administra a estação. Vivenciamos essa situação ao conhecermos Peake e Eshe, astronautas que não fazem parte da flotilha, mas tentam ajudá-la provendo recursos e elaborando planos de urgência.
Mantendo a qualidade da construção psicológica, social e política do restante do jogo original, o tema de refugiados e migração em massa é abordado de muitos ângulos, tecendo uma rede complexa que nos envolve a partir dos novos personagens apresentados.
Entre as novas caras estão, é claro, os próprios membros da flotilha, que conhecemos a partir do segundo episódio, REFUGE. Alguns rostos conhecidos reaparecem no episódio final, PURGE, para encerrar seus arcos de maneira mais definida. Esse tipo de conexão realça o pertencimento dos DLCs à história principal e o senso de unidade que a obra como um todo constrói.
Ao infinito, mas não muito além
No entanto, as atividades do mundo não têm a mesma coesão com o final, o que resulta em algumas contradições, como uma ação que narrativamente não seria mais possível, mas continua como uma atividade disponível para gerar dinheiro. Isso acontece pouco, mas, em um jogo feito de detalhes, as pequenas incoerências podem arranhar a imersão.
Além disso, os novos eventos levam a desdobramentos importantes para todo o Olho, então senti que faltou desenvolver como isso impacta na vida na estação. Você terá uma noção do todo porque a narrativa indireta sustenta bem esse aspecto, mas eu queria ter visto na prática do jogo; ou seja, nos textos que descrevem as atividades e nos diálogos com os NPCs.
Como já disse, essas histórias só foram possíveis após o lançamento original de Citizen Sleeper e seria injusto esperar uma reescrita tão profunda em um jogo desenvolvido por uma pessoa só. O que temos nos episódios adicionais enriquece o jogo o suficiente para valer a pena ser revisitado por aqueles que só jogaram a campanha base anteriormente. Eu creio até que é essencial para fechar os ciclos cotidianos que movem o eixo principal.
Não entrarei em mais detalhes para evitar spoilers, mas reforçarei que a trama segue para diferentes rumos que marcam a história do Olho como um todo, chegando a um ponto-final nesse romance que é um jogo - ou jogo que é romance?
Falando em repetição, a gameplay aqui permanece a mesma, sem mudanças ou acréscimos. Comece cada ciclo com até cinco dados, escolha bem em quais ações vai utilizá-los, leia as longas cenas em prosa ao cumprir objetivos, gerencie sua saúde e bens e descanse para encerrar o ciclo.
Algumas missões (Drives) têm limite de tempo e, como são indicadas para trechos avançados do jogo, têm objetivos mais longos e requerem resultados mais eficientes. Por isso, quando surgirem missões com prazo definido, recomendo dedicar-se inteiramente a elas para otimizar o desenlace e, claro, obter pontos de melhoria por concluir missões. Por sinal, os DLCs também servem para fornecer mais pontos e tentar maximizar as habilidades de seu Sleeper.
Na vastidão escura, o Olho de Erlin continua a girar
Os três episódios, vistos como o todo unificado que são, completam Citizen Sleeper e dão um final digno e profundo a uma história feita de fragmentos de outras histórias, tal qual uma série de televisão que se encerra na coesão de um longa-metragem.
Ao enriquecer ainda mais a narrativa de ficção científica daquele universo, o clímax reafirma o jogo como uma reflexão literária sobre quem somos, como vivemos em sociedade e a quem escolhemos nos conectar. O epílogo daquelas vidas é belamente narrado para nós na despedida de um jogo notável e cativante que nos envolve em sua melancólica doçura até a última frase.
Prós
- Os três DLCs são gratuitos;
- Novas personagens interessantes com personalidades e histórias distintas;
- Estrutura narrativa com uma trama única de proporções maiores que as histórias isoladas da campanha base;
- A história se conecta ao que veio antes e amarra as pontas soltas;
- Expansão do contexto sobre o mundo fora da estação.
Contras
- Faltou aprofundar como as crises levantadas nos episódios afetam a vida e a política no Olho;
- Alguns eventos significativos não afetam o leque de ações possíveis no restante da estação, gerando incongruências;
- Sem novidades nos sistemas de RPG e gameplay.
Citizen Sleeper: Episódios FLUX, REFUGE e PURGEPS4/PS5/XBO/XSX/PC/Switch - Nota: 8.5Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli