A meu ver, realizar uma serie televisiva de The Last of Us trazia dois riscos. O primeiro era ser uma produção inferior à fonte ou, pior ainda, ao padrão de qualidade das séries da HBO, com as quais certamente seria comparada.
O segundo risco era falhar em enriquecer a história original, sob pena de ser redundante e desnecessária. The Last of Us, o jogo, tem uma cinematografia apurada para seu meio, aumentando as chances da nova versão com pessoas reais ser uma cópia vazia, irrelevante e descartável.
Felizmente, como apontamos antes, a produção da HBO não apenas evitou esses perigos, mas entendeu bem a mudança de ares e usou as possibilidades do novo formato para tirar entraves da gamificação e criar uma identidade que é própria sem deixar de ser, claramente, The Last of Us.
Ao concluir a temporada, acho que o espaço para a mudança foi muito bem aproveitado. Não falo apenas de acontecimentos diferentes, mas de estrutura, apresentação de personagens, matizes das relações e até a visão de mundo imbuída no enredo.
A liberdade de não ter gameplay
Quando se pensa na adaptação de um game para outra mídia, um questionamento válido surge: será que isso funcionará sem o elemento que o define, que é a gameplay? Será essa a causa maior do fracasso de tantas tentativas?
Em 2013, em seu lançamento original, The Last of Us era um jogo de tiro em terceira pessoa que se destacava em todos os aspectos, mas, convenhamos, foi a narrativa que causou o maior impacto e o manteve tão célebre até hoje. A série comprova isso, ao mostrar que a história de Joel e Ellie funciona perfeitamente até sem gameplay. E digo mais: funciona ainda melhor.
A Naughty Dog sabe bem que precisa criar alternância para estabelecer um ritmo adequado em seus jogos. É quase como uma fórmula: primeiro um pouco de narrativa em cutscene; depois, um tempo de exploração para conhecer os arredores, buscar recursos e dar tempo para os personagens interagirem em diálogos que dão o tom desejado para o momento (humor, afetividade, tensão, medo, explicação, etc.); em seguida, trecho de ação atravessando o terreno, enfrentando inimigos ou passando por eles sorrateiramente.
Repita esses elementos com a variedade adequada e você tem a cadência certa para envolver o jogador em uma sensação de progresso pelo jogo. Enfatizar demais um deles pode quebrar o equilíbrio com os demais e fazer com que narrativa ou gameplay entrem em conflito, ofuscando uma à outra.
A série não tem esse problema. Não tem que pensar “puxa, já teve muita conversa, temos que colocar uns tiros agora”. Não tem que criar um grande cenário jogável com casas vazias para o jogador revirar as gavetas e armários em busca de suprimentos propositalmente escassos a fim de aumentar o alívio de encontrá-los. Não depende de variar os tipos de inimigos para manter o combate interessante e desafiador. Não é compelida a lançar ondas de meia dúzia de infectados contra os protagonistas porque, afinal, não é um jogo de ação.
Sendo um jogo, isso significa que aquela realidade é baseada em objetivos especificos e regras internas. Por isso, nós aceitamos que Joel seja capaz de matar 30 saqueadores e 20 infectados por capítulo porque fomos nós mesmos que conseguimos o feito com nossos recursos, estratégias e tentativas.
A série, felizmente, entende muito bem que não precisa disso, usando os pontos fortes a seu favor: narrativa, atores, personagens, paisagens, cinematografia. Uma série em episódios tem que ter seu próprio ritmo, mas pode focar no que mais importa. Se um jogo precisa espalhar a ação ao longo de sua duração, um filme a condensa no momento em que terá mais impacto.
Na série, quantas pessoas Joel mata em tela? Quantos infectados são enfrentados? A contagem de toda a temporada deve equivaler a poucos minutos de segmentos de ação do jogo. Em carne e osso, a dupla só tem uma vida e não pode desperdiçá-la. Por isso, sentimos com maior horror o quanto cada inimigo é perigoso.
A exceção veio no último episódio, quando Joel volta à antiga disposição de matar sem hesitar e os Vagalumes parecem um amontoado de buchas de canhão com fuzis de enfeite, sem conseguir acertar um tiro sequer no coroa que não conhece um único corredor do hospital onde eles têm vivido. Ok, colocar menos Vagalumes ao menos tornaria a cena menos forçada, e menos “videogame”.
Dando vida às personagens
Se os personagens eram os pontos centrais no jogo, a série teve ainda mais oportunidades para concentrar neles. É notável como pessoas reais encarnando aqueles nossos velhos conhecidos em versões pessoais podem dar novas facetas e detalhes e ainda deixar seus personagens totalmente reconhecíveis. Pedro Pascal é outro Joel, Bella Ramsey é outra Ellie, mas ainda parecem os mesmos.
Pascal tem semblante e voz mais serenos, sabendo ser doce quando quer, mas deixando vestígios da intensidade que vem de dentro, como se pudesse explodir a qualquer momento.
Ramsey grita mais, fala mais palavrões, é mais petulante e durona, mas carrega perfeitamente o ar de inocência de quem gosta de piadas sem graça, de falar pelos cotovelos e de brincar com crianças mais novas, transparecendo toda sua fúria, alegria e vulnerabilidade. É uma delinquente amável e carente em sua vivacidade marcante.
Ellie e Riley (Storm Reid) brilham no episódio de flashback de forma tão natural que parecem realmente amigas íntimas com confiança, expectativas, frustrações e conflitos. Assim como Tess permanece como parte de Joel em vários momentos da temporada, uma vez que Riley aparece, ela é como uma parte de Ellie que sempre esteve ali, por trás de um sorriso ou de um olhar distante.
Tess veio em uma forma mais madura e sensata de quem tem domínio de si e sabe como agir em cada situação. Ela é, claramente, o ponto de equilíbrio de Joel e gostei que fizeram dela mais que uma parceira de contrabando de Joel, chegando a se declarar para ele ao dizer em seus momentos finais que “nunca pedi que você se sentisse como eu sinto”.
Uma curiosidade sobre Anna Torv, a atriz no papel de Tess, é que ela já foi Nariko, protagonista de Heavenly Sword (PS3), com direito a dublagem e captura de movimento sob a direção de Andy Serkis. É um daqueles jogos que certamente merecem um remake modernizado. Ops, vamos voltar ao assunto.
A adaptação aproveitou para trazer pessoas que participaram dos jogos, como Merle Dandrige, que reprisa o papel de Marlene, e Troy Baker, que passou de ator de Joel nos jogos a James, o capanga do vilão no penúltimo episódio.
Uma conexão importante está na cena que abre o episódio final e mostra o nascimento de Ellie; Ashley Johnson, atriz que interpreta a garota nos jogos, aparece aqui como Anna, a mãe. O mesmo episódio ainda conta com um easter egg de Laura Bailey, a Abby da Parte II, fazendo uma ponta durante a cirurgia nos momentos finais da temporada, embora esteja de máscara.
Saindo do protagonista
Outro ponto que foi uma grata surpresa foi como a série aproveita para contar outras histórias. Os dois primeiros episódios começam com cenas fechadas, distantes do eixo que acompanha a vida de Joel e, exatamente por isso, são adições valiosas à compreensão da catástrofe em um nível mais amplo.
No primeiro episódio, vemos um debate de televisão em que um cientista fala de como a humanidade não teria solução para uma pandemia de fungos. Foi uma maneira interessante de permitir um pouco de exposição didática logo no começo, para não precisar explicar depois e, ao mesmo tempo, evitar que o expectador novato confunda o contexto com o de apocalipses zumbis.
Já no segundo episódio, a abertura com a cientista na Indonésia confirma a previsão fatalista de que não há saída. Ela pouco fala sobre o assunto, mas a performance tensa da atriz nos transmite exatamente isso. A cena também serve para mostrar como é a infecção, com um corpo tomado por fungos e, chocantemente, as gavinhas, que mais parecem tentáculos vivos, saindo pela boca em busca de novos corpos para se espalhar, preparando-nos para o que acontecerá a Tess menos de uma hora depois.
Comentei mais sobre o comportamento coletivo e simbiótico dos fungos na resenha daquele episódio.
Uma introdução serviu para explicar sem cair na leviandade e, a outra, para sair um pouco dos muros dos Estados Unidos e estabelecer a natureza global do problema. Juntas, formam peças que enriquecem o quebra-cabeça do apocalipse e eu gostaria que tivessem mantido a tendência por toda a temporada, o que não aconteceu.
Felizmente, o terceiro episódio inteiro funciona de maneira parecida ao tirar o protagonismo de Joel e passá-lo a Bill e Frank, uma das maiores mudanças narrativas.
Há vida após o fim do mundo
No meu modo de ver, a mudança mais importante em Bill e Frank não está na caracterização (no jogo, Frank sequer aparece vivo e Bill é um caso perdido), mas na humanização que a história desse casal fornece à série como um todo. O terceiro episódio é, na prática, um longa-metragem spin-off que se afasta da centralização em Joel para narrar uma história paralela que transcorre por 20 anos para mostrar algo que o jogo quase sempre rejeita: como pode haver vida após o fim do mundo.
Não falo de mera sobrevivência, mas de vida em abundância com amor, companheirismo e os pequenos prazeres da música, da culinária, de plantar morangos, de estar em uma casa limpa com plantas bem cuidadas e de receber amigos.
Bill e Frank são dois opostos que, quando se encontram, se complementam em suas lacunas. Bill é um sobrevivencialista perito em muitas áreas práticas, mas não em relações humanas. Após quatro anos fechado em seu pequeno mundo dentro da cerca, ele só se dá conta da angústia de sua solidão ao se encontrar com Frank.
Frank é carismático e quer saborear as pequenas coisas da vida, mas sabe que não sobreviverá muito tempo por conta própria. Ele vê em Bill alguém forte que pode cuidar dele, mas também um reprimido emocionalmente que precisa de afeto, justamente o que Frank tem a oferecer. Juntos, os anos passam.
C. S. Lewis (mais conhecido por As Crônicas de Nárnia) diz o seguinte, em Os Quatro Amores:
A amizade é desnecessária — como a filosofia, como a arte, como o próprio universo (pois Deus não precisava criar). Ela não tem valor de sobrevivência; ela é, antes, uma das coisas que dão valor à sobrevivência.
Eu diria que Ellie concorda com isso. Quando Joel é ferido, no sexto episódio, a garota diz que ele não pode morrer porque ela não terá como sobreviver sozinha. Mais cedo, naquele mesmo episódio, Ellie nem pensou duas vezes entre seguir jornada com Tommy, que daria mais chances de não morrer, ou com Joel, com quem criou um vínculo afetivo que dá sentido à sua sobrevivência. Ela precisa da pessoa de Joel para sentir o valor da sobrevivência, protegida de seu maior medo: ficar sozinha.
Que tipo de sobrevivência essas pessoas teriam sem o amor de um pelo outro? Seria a sede de vingança e morte, como Kathleen, a líder da Zona de Quarentena dos episódios quarto e quinto? O suicídio de perder a única coisa que importa, como Sam e Henry? Ou o desespero do rebanho do nono episódio, ávidos por entregar a responsabilidade pela própria sobrevivência a um líder forte? Ou ainda, o fetiche pela violência desse mesmo líder?
As pinceladas de humanidade dão novas cores pela relação lúdica de Henry e Sam, a vida comunitária em Jackson, a gravidez de Maria e Tommy e pelo desabafo de Joel ao irmão, quando encara seu reflexo no espelho como alguém vulnerável que enfrentou as perdas de Sarah e Tess e não suporta a ideia de passar por elas de novo.
Na série, a mudança afetiva de Joel em relação a Ellie é mais gradual e perceptível e a fragilidade o torna um personagem com mais camadas que atraem a nossa simpatia. No jogo, se ele não fosse o protagonista, provavelmente o acharíamos mais um babaca por quem não queremos torcer.
Ele fala que Ellie é importante como uma possível vacina para a humanidade, mas, na verdade, ela é importante para ele e isso é assustador para alguém que conseguiu viver endurecido por 20 anos, iludindo-se na falácia de que, se não tiver algo de valor, não sofrerá perdas. Ele nem mesmo admitia para si mesmo a relação que tinha com Tess, como podemos ver na conversa com Bill, mas também podemos ver que ele tinha algo ali. Algo que só entendeu quando perdeu.
Ouso ter esperança para The Last of Us Parte II?
O futuro é tão sombrio na série quanto no jogo, mas, com certeza, esta última é menos pessimista ao dar espaço para o florescer de relações humanas e vidas que, mesmo quando chegam ao fim, parecem preenchidas de sentido.
Neil Druckmann fala que suas criações em The Last of Us são sobre amor em um sentido universal, o que é, no mínimo, uma ilusão descabida. The Last of Us Parte II é sobre um ódio tão grande que consome qualquer resquício de autonomia mental e de amor que uma pessoa pode ter.
Foi isso o que me afastou do jogo e é isso que espero que aproveitem a chance de reescrever a história como fizeram com o primeiro game, diminuir o tom do ódio, elaborar emoções através da transparência do roteiro e dos excelentes atores ao invés de resolver tudo em pura violência desenfreada.
Não estou falando em mudar certos acontecimentos chocantes, mas o que eles significam e a selvageria que reverberam. No mínimo, a contagem de corpos será menor e, com isso, o contágio da violência será menos extremo, deixará algum espaço para enxergarmos pessoas embaixo das camadas de sangue.
Talvez a Parte II possa finalmente ter um rumo aceitável, um que diga que, se o ser humano não pode sobreviver ao fungo Cordyceps, ao menos poderá sobreviver a si mesmo sem perder sua humanidade por completo.
Que haja trevas, contanto que também haja luz.
Revisão: Vitor Tibério