Em 2008, o EA Redwood Shores surpreendeu com um survival horror tão intenso, que o estúdio foi rebatizado de Visceral Games. Dead Space tinha gráficos de nova geração, uma atmosfera sinistra impecável e subvertia a lógica dos jogos de tiro ao substituir a vantagem do headshot pela tática do desmembramento das monstruosidades que tentam destroçar o jogador.
Agora, o Motive Studio trouxe de volta o antigo Dead Space a um novo patamar tecnológico, mantendo todas as suas características marcantes e mais um pouco. Esta análise concentrará no remake como uma obra própria, enquanto a inevitável comparação com o original e a pertinência dessa renovação serão temas para uma discussão a ser publicada na sexta-feira (10).
No espaço...
Antes de tudo, Dead Space é um jogo de horror cósmico e ficção científica. No próprio nome do coitado do herói há homenagens à sci-fi em referência aos autores Isaac Asimov (Fundação; Eu, Robô) e Arthur C. Clarke (2001: Uma Odisseia no Espaço). A mãe dele, por sinal, leva o nome de uma autora importante do gênero, Octavia Butler (Kindred, Filhos de Sangue e Outras Histórias). Também não faltam inspirações em filmes, como Alien, O Enigma do Horizonte, Solaris, 2001: Uma Odisseia no Espaço e O Enigma de Outro Mundo.
A ficção científica está presente mais obviamente no futuro das viagens espaciais, mas também pelo contexto no qual a Terra teve seus recursos esgotados pela humanidade, que se viu compelida a colonizar outros planetas. Importante nessa exploração sideral foi a USG Ishimura, uma gigantesca nave de mineração capaz de partir pedaços de planetas e que, mesmo após décadas em ação, ainda não foi superada.
No entanto, a comunicação com a Ishimura foi perdida e um pequeno time foi enviado para realizar os reparos. Entre eles está o protagonista, o engenheiro Isaac Clarke. Equipado com a armadura e ferramentas de sua profissão, ele percorrerá uma variedade de setores por toda a nave solucionando uma enxurrada de problemas técnicos que parecem nunca ter fim. Até eu achei cansativo.
A estrutura é, na maior parte, linear, embora tente fingir abertura em seu design labiríntico com conexões e bifurcações. A maioria dos rumos diferentes fica trancada até o momento em que a história ordena que o jogador prossiga para lá. Mesmo que seja possível retornar aos locais já trilhados, há pouco ou nenhum incentivo para revisitar e explorar essas áreas mais a fundo por iniciativa própria. O melhor é seguir o fluxo estabelecido, que já é lento por si só.
Nem os cartões de acesso que destrancam baús e portas servem de estímulo suficiente para se dar o trabalho do retorno, uma vez que o conteúdo deles, em muitos casos, é tão aleatório e irrisório quanto qualquer baú sem tranca. Acabam servindo como uma maneira de impedir que o jogador pegue todos os recursos de uma vez, a fim de guardar alguns para o retorno em capítulo posterior.
O jogo até tenta aplicar recompensas por backtracking por meio de missões opcionais, mas estas são superficiais e só podem ser realizadas em momentos específicos, justamente porque a maior parte do acesso é bloqueado. Até o menu de missões tenta evitar que o jogador tente explorar por conta própria, avisando quando o caminho até aquela missão ainda não está disponível. Assim, até o conteúdo opcional acaba acomodado ao ritmo da campanha principal.
No fim das contas, a dinâmica se desenrola nos seguintes passos: tem um diálogo que mostra a equipe formulando um objetivo e depois detectando um empecilho para, então, Isaac usar o sistema de transporte para chegar ao setor da Ishimura onde ele poderá solucionar o problema. A repetição dessa fórmula, assim como a repetição dos corredores metálicos da nave, beira o cansaço e me passou a sensação de que o jogo é mais longo que o necessário, estendendo a sobrevida artificialmente.
Dead Space se empenha em contextualizar os equipamentos de Isaac. Apenas o Rifle de Pulso é uma arma de verdade; as demais são ferramentas de trabalho usadas em mineração e, por isso, potencialmente letais. Os poderes de estase (suspender o movimento) e de telecinese (mover coisas sem tocar nelas) também são parte da equipagem profissional dos trabalhadores da Ishimura que lidam com cargas pesadas e perigosas. Ainda bem que a loja de suprimentos foi poupada das falhas que o resto da nave sofreu.
Isaac precisará de tudo que puder encontrar, pois, ainda na abertura, as coisas dão errado e ele terá que lutar pela vida em meio a numerosos cadáveres e monstros, enquanto descobre cada vez mais as proporções da catástrofe e a insanidade que há por trás dela. É aqui que entram a Unitologia, o Marcador e o horror cósmico.
...ninguém pode te ouvir gritar
Horror cósmico é uma vertente de histórias em que o medo brota do desconhecido de uma maneira tão desproporcional ao entendimento humano, que só pode levar à loucura ou à fuga para a tranquilidade da ignorância. Ou, nas palavras do patrono do horror, o escritor H. P. Lovecraft:
"Uma certa atmosfera inexplicável e empolgante de pavor de forças externas desconhecidas precisa estar presente; e deve haver um indício daquela mais terrível concepção do cérebro humano – uma suspensão ou derrota maligna e particular daquelas leis fixas da Natureza que são nossa única salvaguarda contra os assaltos do caos e dos demônios dos espaços insondáveis." (O horror sobrenatural em literatura)
Essa descrição combina com Dead Space. O mistério nefasto está além dos limites da compreensão e seu epicentro é o Marcador, um monólito alienígena venerado pela influente igreja da Unitologia. O sinal transmitido pelo Marcador leva à paranoia, alucinações e agressividade extrema, culminando em tanta violência, que o jogo tem até opções de ativar alertas para quando uma cena perturbadora vai acontecer ou até mesmo cobrir essas partes. A lista de atrocidades é longa, como pode ver na imagem abaixo.
Os variados tipos de Necromorfos, abominações distorcidas e infectadas por algo incompreensível, são a manifestação do horror corporal em Dead Space e incluem até bebês em seu meio, mas não são a única fonte do pavor nefasto. Afinal, eles são resistentes, mas podem ser derrotados pelo arsenal de Isaac. O que realmente assombra é captar os vestígios de que eles são apenas parte de um mal maior que movimenta cultistas fanáticos em prol de algum objetivo desconhecido e odioso. Que tipo de esperança pode haver contra algo que se entranha, contamina e pode estar em toda parte?
Falando em toda parte, essa é a definição do design de posicionamento dos Necromorfos: eles podem vir de qualquer lugar. Das paredes, do teto, do chão, por trás de você; estão sempre prontos para te assustar de repente, alimentando a paranoia de que quase nenhum recinto de Dead Space pode ser considerado seguro.
Os inimigos são pré-programados, claro, mas, adicionalmente, há um sistema de eventos possíveis para reforçar a insegurança. Não sei se é aleatório, mas serve para fazer surgir inimigos em lugares que não estavam antes, garantindo novos sustos.
Isso é justificado pelo sistema de ventilação da Ishimura, que serve de via de acesso para os Necromorfos transitarem pela nave em busca de mais vítimas. Dessa forma, qualquer exaustor de ventilação é uma potencial porta para aberrações perigosas, mantendo o jogador na tensão e desconfiança de sua própria vulnerabilidade.
Atmosfera alienígena
Muitos elementos convergem para formar a atmosfera opressiva que amplifica a morbidez de Dead Space. A campanha alterna corredores apertados e escuros a vastos salões industriais mergulhados em tons doentios de vermelho e amarelo. As tecnologias gráficas dão um show, especialmente com o belo e lúgubre jogo de luzes difusas e sombras profundas que tingem a armadura de Isaac e aumentam a sensação de presença naquele inferno metálico cortado por névoa, chamas, eletricidade e partículas suspensas.
A imersão também está presente na interface de jogo em seus elementos diegéticos: a barra de vida é o sistema de luzes da espinha dorsal da armadura de Isaac, o número de munição é projetado sobre as próprias armas e, de forma muito elegante, os menus, mapas, seleção de armas, textos, inventários e audiologs são mostrados em tempo real como hologramas acionados diante dos olhos do protagonista, que até acompanha com a cabeça o movimento de navegar pelos itens, como se olhasse diretamente para cada ponto da lista.
O design de som é outro aspecto marcante, com poucos momentos de silêncio real. Várias camadas se sobrepõem para formar uma atmosfera sonora densa, quase tangível. Os passos do herói ressoam em meio aos ruídos de maquinário, gritos, gemidos, ecos, sons distantes que o jogador não consegue discernir se estão se aproximando ou não. Até a respiração ofegante de Isaac é ouvida quando ele corre por muito tempo. O que é isso? Ouça. São vozes sussurrando coisas terríveis dentro da mente do infeliz?
Problemas na Ishimura
Na versão base do jogo, o horror maior está na péssima resolução. Não, não é exagero ou implicância, o visual era descaradamente granulado e pixelado. Felizmente, logo nos primeiros dias, o patch 1.03 solucionou a questão completamente e a boa resolução fez a beleza saltar aos olhos até com o modo performance ativado.
Na maior parte do tempo, Dead Space é fluido e visualmente impressionante, com cara de nova geração, mas há exceções, como os modelos dos poucos personagens e a simplicidade das animações faciais que destoam do primor técnico geral.
Outro ponto de menor sucesso é a física de “boneca de pano” (ragdoll physics), que deixa os corpos dos inimigos leves ao ponto de grandes massas de carne rolarem pelo chão quando Isaac encosta nelas, como se feitas de algo leve, como tecido.
Isso provavelmente foi necessário para atingir eficiência na mecânica de telecinese com a qual você pode mover objetos a distância e até arremessá-los com força. Como efeito colateral, os numerosos objetos e pedaços de inimigos espalhados por toda parte podem acabar parecendo balões inflados e apresentar glitches de espasmos, potencialmente quebrando a imersão atmosférica que o jogo tem tanto afinco em produzir.
Também é importante mencionar a dificuldade, pois morri muito mais do que esperava no nível Normal. Isaac é pesado e bem menos ágil que praticamente todos os Necromorfos, forçando o confronto direto em várias situações, como emboscadas em corredores apertados.
A escassez de recursos é opressiva e garante o rótulo de survival horror. Em mais de uma vez me vi sem qualquer item de cura e raramente estive com a saúde completa, o que me instigou a pensar em estratégias para usar os perigos ambientais a meu favor e me levou a recarregar o salvamento com uma frequência maior que gostaria.
É claro que isso não representa um problema do jogo e não entrará na lista de contras. Isso pode ser ajustado a qualquer momento pela opção de diminuir para a dificuldade Fácil e, assim, diminuir o dano recebido e aumentar o infligido sem alterar a quantidade de inimigos ou sua inteligência artificial. Se escolhi manter na Normal, foi por teimosia. Para os mais exigentes, há também a possibilidade de aumentar o desafio.
Torne-nos completos
Ainda que escorregue em algumas questões técnicas e a repetição o faça parecer mais longo que o necessário, o saldo de Dead Space é bastante atraente: atmosfera imersiva, história sinistra, gráficos detalhados, ação intensa e muitos sustos elevam a qualidade da experiência para quem quer revisitar o jogo ou conhecê-lo pela primeira vez.
Prós
- Atmosfera de horror impecável.
- Ótimos efeitos de iluminação e sombra.
- Boa história de horror cósmico, embora seja contada principalmente pelos logs de texto e áudio.
- Narrativa aprimorada.
- Textos localizados em português brasileiro.
- Combate focado em desmembramento incentiva a mirar com intencionalidade.
- Trechos de gravidade zero ajudam a variar a gameplay.
Contras
- Estrutura de progressão repetitiva dá sensação de prolongamento artificial.
- O visual dos corredores é repetitivo.
- Física ragdoll exagerada e com bugs.
- A pouca agilidade de movimento impacta na dificuldade.
Dead Space – PS5/XSX/PC – 8.0Versão utilizada para análise: PS5
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli
Análise realizada com cópia digital cedida pela Eletronic Arts