The Last of Us (Multi) é um grande exemplo dessa corrente que deixa cada vez mais tênue a linha que separa jogo e filme, misturando os elementos em busca de uma coesão orgânica intermídias de um jogo que você assiste e um filme que você joga.
Nem todos gostam disso e acusam os criadores de fazerem “filminhos” em vez de jogos, argumentando que uma definição anula a outra. Certamente, não é simples dosar o quanto se deve tirar o controle do jogador para, no lugar disso, dar a ele a imersão narrativa que vem da empatia e envolvimento com os personagens e a história. É uma proposta com altos e baixos que vem amadurecendo com os anos e a experiência cumulativa da indústria.
Destinado a virar filme
Criada pelo estúdio Naughty Dog, a saga de um homem traumatizado e sua jovem protegida tentando sobreviver em meio ao apocalipse de contágio fúngico tinha tudo para dar um bom filme. Melhor ainda: uma boa série, com tempo de fita para explorar os diversos aspectos que esse cenário e seus personagens têm a oferecer.
A princípio, The Last of Us seria adaptado para um filme, o que mostrou-se uma redução indesejável e, depois, uma série de TV foi viabilizada. Só o capítulo introdutório já é em si um longa-metragem, e seus 85 minutos apenas corroboram que a mudança do projeto foi para melhor. Um filme teria no máximo a soma da duração dos dois primeiros episódios, o que resultaria em pressa, muitos cortes e menor caracterização do mundo e dos personagens.
Eu diria que demorou até um projeto desses acontecer, mas não sem motivo. Afinal, paira sobre os videogames a maldição da adaptação que condena à mediocridade a maioria das tentativas de transpor jogos para live-action, como se essas produções tivessem crise de identidade, divididas entre as peculiaridades de seus formatos de origem e de destino.
Agora, os tempos estão mudando e as esperanças de vermos nossos jogos favoritos em carne e osso de primeira qualidade se renovam. The Last of Us se tornou uma série com um bom começo, o que não deve ser uma surpresa.
Um bom começo para algo maior
Digo “bom”, sem hipérboles, porque acho que o começo do próprio jogo, embora não seja ruim, está longe de ser seu ponto alto. Boa parte do game consiste em travessias por terrenos diversos. Entra por um túnel aqui, atravessa uma casa ali, sai por uma janela, puxa uma tábua, passa por um telhado e por aí vai.
Muitas vezes, isso parece acontecer para diminuir o passo e permitir que os personagens tenham momentos menos agitados para conversar e os jogadores possam prestar atenção neles. Acho o começo do jogo lento, uma apresentação necessária e gradual, mas ainda contida.
Um filme, por outro lado, conduz o fluxo narrativo e a atenção do espectador em um ritmo diferente, mais maleável para o produtor, que tem o controle do tempo e do olhar. Ainda assim, o resultado do primeiro episódio é igualmente contido por seu caráter introdutório.
Ah, quando falo do começo do jogo, não me refiro à introdução com o passado de Joel e sua filha Sarah. Essa parte marcou profundamente quando joguei em 2013 e a série não fica devendo em nada; na verdade, até dá mais do que o esperado ao estender o tempo de tela do antigo Joel e a adorável filha Sarah.
Assim como o restante do episódio, a parte da trama que se passa em 2003 é, em essência, a mesma de sua contraparte jogável, contando com diálogos e tomadas semelhantes. A nova versão vai além com ajustes, nuances e acréscimos, como quando são mostradas certas cenas apenas implícitas no jogo. Essa sobrevida ao mundo pré-contágio amplia a noção da perda que sabemos ser inevitável, um luto antecipado.
A decadência humana
A maior beleza visual de The Last of Us está nos panoramas da jornada, mas o primeiro episódio ainda está trancafiado na Zona de Quarentena de Boston. Nesse começo urbano, somos apresentados aos característicos prédios baixos de tijolos vermelhos, aos corredores mofados e quartos sujos de pintura desgastada, à escassez e ao conflito.
Após o surto dos fungos, a luta pela sobrevivência ocupou o lugar da produção, serviços, reformas, aparências, asseio e, também, da civilidade e empatia. É realmente uma selva urbana que, de certa forma, usa a desolação externa e concreta para ilustrar a decadência dos atributos abstratos que dão sentido à palavra humanidade. É uma arquitetura da negação que consome tudo o que havia antes no corpo da cidade e na alma das pessoas.
Não é à toa que, após escapar do surto local de zumbis, Joel e Sarah são novamente atacados, mas por um soldado saudável, alguém que acha que tem o domínio de si, mas, no fundo, acata as ordens questionáveis de algo maior que ele e ergue a arma contra pai e filha. Não é apenas a infecção de fungos que deforma o humano em zumbi; a sociedade já estava pronta para se deixar controlar pela pulsão devoradora.
Os Estados Unidos se fragmentam, as cidades se distanciam na pouca comunicação e os indivíduos são reduzidos a seus medos e fomes. No país da guerra como espetáculo e propaganda, os grupos paramilitares tentam impor a ordem do uniforme, das armas e da força para justificar sua existência. Ninguém sai, ninguém entra; uma unidade sustentada pela ilusão de coesão sob a mira do fuzil.
Qual é a barreira que separa a pessoa comum do devorador? Será a mesma que traça a fronteira entre a força e a distopia? Essa decadência está no próprio Joel, amargurado e distante, que cruzou a linha, engoliu o devorador e agora o carrega consigo, sem se importar.
A série ao menos ameniza o vazio violento do protagonista, dando-lhe pequenos relances de afeto. Basta ver a diferença entre a reação dele ao ver o rosto espancado de Tess no jogo e no primeiro episódio. Aliás, a própria relação da dupla de contrabandistas tem novos tons agridoces.
Os últimos de nós
A Tess da atriz Anna Torv é mais próxima de uma pessoa comum. Ela é durona, sem dúvidas, mas ainda tem noção do perigo. Sabe a hora de avançar e a de recuar, bem como a influência que exerce sobre seu parceiro Joel. Nenhum dos dois aqui é uma máquina de guerra, já que, diferente do game, a série não precisa lançar ondas após ondas de inimigos para serem abatidos às centenas. Eles se viram como podem e são bons nisso.
Para viver Joel, Pedro Pascal reprisa aqui seu papel vivido em The Mandalorian de “contrabandista durão que precisa levar carga humana e acabará se tornando figura paterna”. Joel, porém, além de ter a vantagem de sempre mostrar o rosto em tela, não tem a leveza quase ingênua de Mando, um personagem com mais tendência ao papel de herói. Pascal me fez enxergar Joel nele logo de cara.
Tal qual Sarah, uma jovem encantadoramente "normal" na interpretação de Nico Parker, Ellie também se beneficiou do tempo extra e recebeu mais atenção no primeiro episódio com cenas novas, sendo mostrada ainda em cativeiro com uma personalidade direta, agressiva e cínica, mais para uma delinquente do que para uma garota na qual ainda resta alguma inocência.
Não tivemos muito dela neste começo; teremos que esperar para ver como a personagem se desenvolverá e como a atriz Bella Ramsey provará que é mais do que um meme portador de frases de efeito em Game of Thrones.
O começo do fim
Em alguns momentos até dá para esquecer que é uma história de apocalipse zumbi. Eles estão na parte inicial do surto em sua forma tradicional de cadáveres com o queixo escorrendo sangue. Basta verem outro alvo para largarem a comida e correr bruscamente atrás do prato novo, com caretas de bocas escancaradas e ruídos ásperos saindo da garganta. O de sempre, o que é até um pouco tosco.
Dos zumbis cobertos de fungos vemos muito pouco, apenas um corpo estampado na parede como um alto-relevo, já em estado muito avançado de contaminação. Devem ter deixado esses perigos para o episódio seguinte, já que, no primeiro, o homem é o lobo do próprio homem.
Para finalizar, ainda devo mencionar a bela abertura bem ao estilo de Game of Thrones, em que a câmera se move para acompanhar algo em crescimento. Aqui, porém, são ramificações de fungos que se espalham pela superfície e se erguem no formato de plantas, ao som do dedilhado de violão vindo diretamente dos jogos.
Não pretendo escrever uma resenha semanal de cada episódio, mas espero ao menos fazer um balanço geral ao fim da temporada, pois gostei o bastante para crer que a hipérbole terá sua vez e o “bom” alcançará a excelência esperada.
Atualização (26/01/23, 09:00): veja aqui a análise do segundo episódio, "Infectados".
Revisão: Vitor Tibério