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Análise: Roadwarden é um fascinante RPG com texto extremamente bem escrito e imersivo

Com um mundo rico de questões sociais, ambientais e fantásticas, este é um perfeito exemplo do potencial imersivo dos videogames em ficção interativa.


Criado por Aureus, desenvolvido pela Moral Anxiety Studio e publicado pela Assemble Entertainment, Roadwarden é um RPG de texto e uma aventura de ficção interativa ambientado em fantasia medieval. Com ênfase em mistério e imersão no ambiente rural, o jogador assume o papel de um “guardião das estradas” ou “Roadwarden”, alguém com a tarefa de proteger as rotas comerciais de uma remota e perigosa península enquanto investiga o desaparecimento de um Roadwarden anterior que esteve na mesma região.

Uma narrativa imersiva de mistério e exploração em um mundo rico e cheio de detalhes

Escrito por Aureus e editado por Lisa Olsen, o enredo do jogo se desenvolve em um contexto fantástico medieval com um clima solitário, tenebroso e naturalmente hostil. A história se passa em uma península pantanosa com rudes caminhos de terra abraçados por árvores e construções rurais. Em processo de colonização, toda essa região fica do outro lado dos muros de uma grande cidade protegida de monstros e dos diversos problemas dos moradores de fora.

O jogador controla Leto (ou outro nome que se queira dar a ele), um recém-chegado Roadwarden cuja função é a de proteger a estrada e estabelecer comércio na região, contribuindo para o processo de colonização daquele local. O cargo de “Roadwarden” pode ser entendido como o de uma espécie de “guardião das estradas”, mas sua função não é apenas de cuidar dos caminhos em si, mas também fornecer direta ou indiretamente diversos serviços de suporte para os habitantes da região.


Esses serviços prestados pelo Roadwarden se traduzem em quests dentro do jogo. Trata-se de missões muito diversas, como tirar uma árvore do caminho da estrada, socorrer alguém desamparado, matar monstros que ameaçam habitantes locais ou procurar objetos perdidos. Algumas dessas missões são principais, mas a maioria delas é opcional. Em paralelo, o protagonista também foi incumbido de investigar o paradeiro de Asterion, o Roadwarden anterior.

Seguindo a tradição dos RPGs de mesa ou tabletop Role-playing game (TTRPG), em Roadwarden o jogador determina o passado do protagonista com base em algumas escolhas que descrevem suas proficiências e aptidões. No meu caso, por exemplo, escolhi para o personagem uma formação acadêmica, que o proporcionou conhecimento para usar em várias circunstâncias de sua jornada. Essa formação oferece também a capacidade de ler e mexer com alquimia.


Escolhas como essa resultam em variações nas condições iniciais de sua jornada, por exemplo, nos itens que você carrega. Além dessa, outras escolhas posteriores também determinarão outros aspectos do passado do protagonista, o que pode interferir em suas condições atuais. É importante destacar que Roadwarden possui uma grande riqueza de escolhas de diálogo, proporcionando uma robusta ficção interativa, especialmente do ponto de vista da exploração, uma vez que um mesmo problema pode ser resolvido de diversas formas, dependendo da aptidão de seu personagem.

A história possui uma resolução bem satisfatória, tanto para o trabalho do jogador quanto para a investigação sobre o antigo Roadwarden. Contudo, as variações de suas escolhas não interferem tanto no final do jogo, infelizmente. Há algumas pequenas mudanças na percepção deixada por seu Roadwarden, mas a maior motivação para você querer interagir bastante nesse mundo ou eventualmente rejogá-lo está em descobrir mais sobre os mistérios da redondeza e as subtramas contidas em quests opcionais.


Nem sempre é fácil distinguir uma missão principal de uma missão opcional, mas o jogo explora muito essa ambiguidade a fim de fazer o jogador pensar sobre o que ele precisa fazer para descobrir mais sobre o Roadwarden desaparecido. Ao mesmo tempo, a pluralidade de serviços a se prestar enriquece a gameplay e abre portas para o fascinante contexto ficcional desse game.

Apesar de ter interações com mecânicas de RPG, o contexto parece o prato principal da experiência de leitura. O jogo é muito bem escrito, especialmente detalhista em relação à descrição de cenário, às vezes até demais. Isso prejudica um pouco o ritmo da narrativa. Por outro lado, as descrições aguçam a imaginação e dão intensidade e impacto nas decisões do jogador. Conforme o narrador descreve o cenário, e o protagonista anda por ele, muitas vezes a ilustração vai aparecendo pedaço a pedaço (confira no GIF abaixo).


Outro ponto forte são as linhas de diálogo. Os personagens podem não ser muito marcantes, mas eles possuem diferentes sotaques e são construídos de forma ambígua, com diversos interesses, e sempre coerentes no ecossistema daquela região pantanosa e misteriosa. Não há vilões ou heróis, mas personagens difíceis de ler e um pouco imprevisíveis. Os humanos da redondeza tendem a ser amistosos com o cargo de Roadwarden pois sabem que é um trabalho difícil, o que não à toa rende uma boa remuneração e aposentadoria cedo. Por outro lado, alguns deles desconfiam de você e de seus serviços.

No mais, há criaturas fantásticas como os golens, que não são necessariamente  inimigas. Enquanto isso, por outro lado, há criaturas  hostis e animais silvestres para ser caçados. Além da fauna e da população, também é interessante notar cultos religiosos e outros aspectos culturais. À medida em que você investiga sobre o antigo Roadwarden, você é levado a locais misteriosos da península que guardam surpresas sobre o mundo do jogo, inclusive sobre a colônia que o enviou para esse trabalho.

Uma gameplay simples, mas customizável e bem engajante

O level design de Roadwarden lembra um tanto o de RPGs com foco narrativo, como Disco Elysium. A ideia é proporcionar uma jornada em local restrito que se expande aos poucos, com um mapa não muito grande, à medida em que o jogador progride na sua exploração e também no fluxo da história. Ao mesmo tempo, esse espaço também sofre modificações com o passar dos dias e com a alternância entre o dia e a noite.

No modo “normal” (Standard), você tem 40 dias para completar o jogo, mas também pode optar por um modo mais desafiador com menos dias, ou mesmo um modo casual, sem tempo limite. Infelizmente não é possível alterar a dificuldade no meio do jogo, você terá de reiniciar a história caso não consiga terminá-la no tempo estipulado, portanto escolha com cuidado.


A temporalidade não funciona em tempo real, mas conforme escolhas. Durante o dia, você pode explorar locais novos ou viajar para aqueles pontos do mapa que você já descobriu. Essas viagens custam tempo que pode ser pouco, como 30 minutos, ou muitas horas, dependendo do quão longe você terá de se deslocar. À noite há pouco o que se fazer. Normalmente o mais indicado é dormir. Durante a noite, seu protagonista refletirá sobre suas experiências, o que pode ajudá-lo a se orientar no dia seguinte ou trazer novas questões para a sua aventura.

Além de cuidar do problema dos outros, você também precisa cuidar de si mesmo. Seu status abrange vitalidade, fome, aparência e armadura. Essas quatro variáveis são representadas por ícones respectivamente de coração, pão, estrela e armadura que ficam no lado direito da tela. Além desses elementos, você também precisa levar em conta sono, dinheiro, eventuais ferimentos e gerenciamento de itens do inventário, como corda, poção, armas, cavalo, amuleto, espólios de caça e muitas outras coisas.


Sua intervenção ficcional é de dois tipos, sendo que a primeira é de escolhas de fala ou de ações que estão sujeitas a uma rolagem de dados, como em um TTRPG. Infelizmente as variáveis e o cálculo dessa mecânica não são muito claros, mas presumivelmente o jogador pode ter mais chance de sucesso se estiver com status melhores ou melhor equipado. Um ataque com um machado mais forte, por exemplo, tende a ser mais eficaz do que o machado comum com o qual você começa a aventura.

Falo sobre um ataque ser “mais eficaz” e não sobre “causar mais dano”, pois as esporádicas batalhas não estão no foco desse game e não possuem um sistema de combate específico; o desenrolar das lutas se dá de modo literário apenas. O mesmo se pode dizer sobre a exploração de cenário. Apesar de haver ilustrações de fundo, não é possível interagir com elas, o que é uma pena. Penso que elas poderiam ser úteis para alguns puzzles ou intervenções dentro desse mundo ficcional.

O segundo tipo de intervenção ficcional é o de escolhas de fala ou ações objetivas que não estão sujeitas a dados, e ao invés disso são ações imediatas executadas assim que escolhidas pelo jogador. Essas são a maior parte das escolhas oferecidas pelo game e são responsáveis principalmente por reger o desenvolvimento dos personagens e a investigação sobre o Roadwarden anterior desaparecido.

Cabe observar ainda que há intervenções ficcionais nas quais você precisa escrever ativamente algo à sua escolha. Por exemplo, você pode perguntar a algum personagem se ele tem informações sobre o assunto “Asterion” ao escrever isso na caixa de texto. Nesses casos, você pode escrever o que quiser, mas precisará escrever as palavras certas (em inglês) para obter respostas ou mesmo para resolver puzzles, como é o caso de um altar em que você precisa sacrificar itens específicos.

Um audiovisual elegante, retrô e imersivo bastante adequado para sua narrativa

Feito com o motor Ren'Py, geralmente usado por desenvolvedores independentes para a criação de jogos de visual novel, Roadwarden aproveita para exibir belas ilustrações de cenário que dão um bom pano de fundo para a imaginação do jogador ao mesmo tempo em que o ajudam a se localizar no mapa do game. Essa última função é realmente muito útil, pois um dos pontos mais problemáticos dos primeiros text-adventures é a ausência de mapas in-game.

Para além das funções práticas, as ilustrações também dispõe de forte harmonia com o tom do texto e estilo de gameplay. Aureus optou por uma pixel art com uma restrita paleta de cores com tons castanhos que propiciam um clima retrô. Entretanto, há uma técnica detalhada e realista para os cenários. Raras são as criaturas ilustradas, algumas exceções são uma aranha enorme em um casebre abandonado e alguns golens em um vilarejo.


Na tendência inversa de Citizen Sleeper, outro notável RPG de aventura de 2022, o autor optou por dar minúcia aos cenários, e não aos personagens. Essa foi uma escolha certa, pois o prato principal de Roadwarden está em seu mundo. Sua pixel art captura o estado solitário em que o protagonista se encontra, bem como o clima sombrio dos estreitos caminhos da península e o aspecto ruinoso, terriço, místico, rústico e rural de um ambiente que está na fronteira entre a civilização e a natureza e entre o natural e o sobrenatural.

Outro ponto alto do game é sua direção de som. Complementando o estado estático e quase monocromático dos cenários, os sons “colorem” suas paisagens com grunhidos e sons de insetos, de pássaros e do balanço das árvores. Embora o design de som seja pouco dinâmico e não responda a ações particulares, sua sonoridade natural foi escolhida especificamente para cada parte do mapa, trazendo elementos únicos para cada local. Confira um pouco do resultado no trecho de vídeo abaixo.


Enquanto que esses sons contribuem para tornar a imaginação contextual do jogador mais viva e imersiva, há também uma trilha sonora original (OST) com uma boa variedade de faixas. As peças originais foram compostas por Nicholas Roder, Felix Watson e Finn Bennet, mas há também outras músicas adicionais na OST. Os timbres predominantes são de cordas (especialmente violão) e um pouco de piano.

Com ênfase em tons menores e um ritmo quase sempre lento ou pelo menos moderado (em contexto de combate), as composições possuem melodias pouco marcantes e pouco ornamentadas, e são construídas com uma harmonia triste, sombria e contemplativa ou levemente dramática (em combate), às vezes em estilo monofônico (com uma única linha melódica). Essas escolhas para a composição são perfeitas para a música capturar discretamente a atmosfera do ambiente e se complementar com a riqueza sonora dos efeitos sonoros, ao mesmo tempo sem criar distração durante a leitura. Confira abaixo a playlist da trilha.

Um dos mundos mais imersivos e instigantes para se visitar em um RPG

Embora com uma proposta audiovisual modesta e uma narrativa que poderia ter maior fluidez, profundidade e complexidade em sua interação ficcional, Roadwarden possui uma arte charmosa e adequada, uma direção de som imersiva e sem sombra de dúvidas um dos textos mais bem escritos em RPG, com especial ênfase para a expressividade e a riqueza social e natural de seu mundo. O jogo é altamente recomendado para qualquer fã de RPG com foco textual e também amantes de literatura fantástica séria e interativa.

Prós

  • Texto muito bem escrito, com sotaques, personagens ambíguos e sobretudo minucioso e reflexivo a respeito do mundo e dos cenários do game;
  • Mecânicas acessíveis e intuitivas de RPG de mesa que dão uma razoável customização e um forte fator de engajamento para a narrativa, especialmente em opções de diálogo;
  • Level design com um mapa claro e uma exploração instigante e recompensadora para o aprofundamento do contexto da trama e para a rotina de sobrevivência do protagonista;
  • Ilustrações com um estilo elegante e retrô que combinam com a proposta do game, bem como com uma apropriada ambientação sombria e desolada para seus cenários;
  • Design de som excelente para a imersão dos cenários e uma trilha sonora expressiva e leve que acompanha bem a leitura e o tom da narrativa.

Contras

  • Às vezes o excesso de descrição prejudica um pouco o ritmo da narrativa;
  • Os elementos de RPG poderiam ser mais complexos e profundos para ditar o drama de alguns combates e decisões, bem como para dar maior variação ao desfecho da história;
  • As variáveis e a probabilidade para ações em diálogo e em combate são pouco transparentes;
  • Não é possível redefinir a dificuldade do game, você precisará reiniciar a história se não conseguir terminá-la no prazo da dificuldade escolhida;
  • Ilustrações estáticas simples e pouco aproveitadas para a gameplay;
  • As composições musicais são simples e pouco memoráveis.
Roadwarden — PC — Nota: 8.5
Revisão: Juliana Piombo dos Santos
Análise produzida por cópia adquirida pelo próprio redator

Doutorando em Filosofia que passa seu tempo livre com piano, livros, PC e portáteis. No Twitter, também é conhecido como Vivi. Interessa-se especialmente por narrativas de ficção científica, realismo mágico e alta fantasia política, e aprecia mecânicas de puzzle, stealth, estratégia e RPG. Seu histórico de análises pode ser conferido no OpenCritic e suas reflexões sobre RPG e game design encontram-se na SUPERJUMP (textos em inglês), bem como no Podcast do Vivi e em seu canal no YouTube.
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