O artigo publicado pelo site Policy Options intitulado “The banality of online toxicity”, em tradução livre “A banalidade da toxicidade online”, conta que a frequência com a qual somos expostos a comportamentos tóxicos em ambientes online nos banalizam ao ponto de serem aceitos como normais. Para a autora, Maite Taboada, isto é preocupante não pelo que revela sobre a internet, mas sim sobre os usuários.
Tipos de comportamentos tóxicos
Jogos online permitem que jogadores distantes e que não se conhecem possam interagir quando ambos estão disponíveis, dispensando a necessidade de agendar jogatinas com amigos, o que mantém o jogo constantemente movimentado. No entanto, certas condições destas interações permitem que comportamentos tóxicos sejam realizados, favorecendo sua continuidade de certa forma.
Os comportamentos tóxicos em jogos podem ser divididos em duas categorias: os que acontecem dentro dos jogos (in game) e os que acontecem em outras plataformas, por conta de acontecimentos relacionados aos jogos.
Os comportamentos tóxicos in game podem estar relacionados com a maneira que os jogadores jogam e como se comunicam com seus oponentes ou parceiros.
Uma expressão de toxicidade é a ressignificação de ações possíveis dentro do jogo para expressar algo em relação aos outros jogadores. O exemplo mais famoso disso é o t-bag. O t-bag consiste em fazer o seu personagem agachar e levantar rapidamente, próximo ao corpo do personagem oponente depois de derrotado, em um ato sexualmente sugestivo.
Quando realizado entre conhecidos, o gesto é interpretado como uma brincadeira inofensiva, mas é utilizado principalmente como uma maneira de humilhar o oponente por este ter sido derrotado, demonstrar dominância e desestabilizá-lo.
Além disso, existem atitudes realizadas exclusivamente para atrapalhar a experiência dos outros jogadores, ou garantir uma vantagem injusta para um deles. Como exemplo podemos citar hardwares e softwares de trapaça (cheat) e aplicativos que prejudicam a conexão, dificultando a jogatina do oponente.
Outras atitudes maliciosas incluem fechar o jogo antes de a partida terminar, para impedir que o oponente receba a premiação pela vitória (rage quit) e denunciar o oponente à plataforma mesmo quando este não violou nenhuma regra.
Tela de rage quit de Mortal Kombat 11 |
O outro tipo de comportamento tóxico online é a partir das ferramentas que os jogos oferecem para os jogadores se comunicarem. Principalmente em jogos nos quais os confrontos são disputados por equipes é comum que sejam disponibilizados chats de texto, de voz, ou mecanismos in game, como um localizador que indique algo importante para os demais jogadores.
Nos jogos nos quais não há nenhuma restrição para o que pode ser falado no chat, é muito comum que jogadores digam ofensas (hatemail), façam ameaças, como de revelar informação pessoal (doxxing), ou até mesmo de ataques físicos, ou reproduzam discurso de ódio.
Muitos jogos limitam a comunicação entre os jogadores, permitindo que eles enviem somente mensagens pré-definidas. Nestes casos, os jogadores costumam enviar a mesma mensagem várias vezes (spam), para incomodar o adversário.
Magic: The Gathering Arena restringe a comunicação entre os jogadores |
Já os comportamentos tóxicos realizados em outras plataformas podem ser mais variados e em muitos casos caracterizam-se como crimes, como o de injúria, calúnia e difamação, bullying, assédio e importunação sexual.
A maior parte destes incidentes acontecem em redes sociais ou aplicativos de mensagens. Os atacantes muitas vezes utilizam perfis falsos, criados unicamente para mandar mensagens privadas, ou deixar recados públicos, no perfil das vítimas. O conteúdo pode variar de uma simples reclamação da maneira que a vítima joga até os crimes citados acima.
Relatos de toxicidade
A maioria dos ataques acontece de maneira pontual, mas muitos jogadores reclamam que já sofreram de perseguição constante de usuários utilizando perfis falsos. Dois públicos particularmente vulneráveis a isto são criadores de conteúdo e minorias, como mulheres, pessoas negras e lgbtqi+.
Anya quando atuou no staff da Evo |
lives e em suas redes sociais recebe diversos comentários agressivos e sexistas.
“Não acontece frequentemente, diria que é de três a quatro vezes por ano, mas algumas pessoas enviam mensagens privadas com ameaças de morte. [...] É sempre o mesmo tipo de argumento, eles perdem e querem dizer as coisas mais odiosas possíveis: Eu vou te encontrar e vou fazer isto com a sua mãe, eu sei onde você vive. Eles não sabem o que estão falando, apenas querem dizer qualquer coisa para me fazer mal.”
A streamer também comenta que sofre diversas formas de assédio, especificamente por ser uma mulher:
“Em eventos presenciais algumas pessoas se aproximam demais, sabe, por ser uma garota. Na última Evo um homem me abraçou por trás, eu não estava vendo-o e ele me apertou forte dizendo que era o aniversário dele e eu tinha que dizer feliz aniversário para ele. Eu não sabia quem ele era, ele era forte e eu consegui sair com dificuldade. Por ser uma mulher é mais comum que pessoas vão tentar se envolver romanticamente com você, ao ponto de você pedir para eles pararem e eles não quererem, tornando-se muito irritante e desconfortável.”
Anya conta que seu desempenho como jogadora profissional também é questionado por ser mulher:
“A coisa mais comum é dizerem que por eu ser uma garota tudo é de graça, tudo é mais fácil. [...] Eu não posso dizer quem é, mas tem uma pessoa, ele é muito bom no jogo (Tekken 7), ele me derrotou consistentemente em torneios, eu realmente desejo que ele tenha uma carreira de sucesso, mas ele tem muito ressentimento contra mim, porque eu tenho tudo isto e ele não. Isto é algo que eu queria mostrar para ele, que eu não estou apenas vencendo torneios, eu estou administrando minhas redes sociais, estou streamando, investindo em viagens com meu próprio dinheiro, fazendo networking e me conectando com pessoas e tudo isto é parte; não é porque eu sou uma mulher, é porque eu fiz tudo isso. Mas ele acha que não, que ele merece tudo isso, e eu, por ser mulher, não.”
A jogadora também observa que mulheres que não sejam famosas dentro da comunidade são mais vulneráveis ao assédio:
“Em eventos presenciais eu sinto que quanto mais famosa você for, mais medo as pessoas terão de fazer alguma coisa com você, por terem medo das consequências, de me tocar e serem cancelados. Dez anos atrás, quando eu tinha 17/18 anos e comecei a competir, o assédio era insuportável. Em competições em outros países, em especial nos Estados Unidos, eu também me sinto mais exposta a isto.”
Anya, porém, conclui que estes comportamentos não vão impedi-la de continuar jogando e competindo:
“As pessoas sempre vão ficar bravas quando perdem e enviar hatemail. Nós temos de ser mentalmente fortes para poder ignorar esses comentários. [...] Eu não sinto ódio em relação a essas pessoas, eu me sinto mal por eles serem tão tóxicos, mas eu deixo a mensagem de lado e sigo em frente.”
Causas e consequências dos comportamentos
Amanda em seu consultório |
e Habilidades Terapêuticas pelo Instituto Continuum, comenta que existem diversas causas para os comportamentos tóxicos nos jogos online, muitas delas ligadas à cultura da sociedade:
“Nós aprendemos muito sobre nós e sobre o mundo a partir de relações que estabelecemos. Uma delas, muito presente na própria linguagem e na sociedade, é a relação entre o melhor e o pior. As pessoas relacionam perder como algo ruim, logo é algo que deve ser evitado e isto pode motivar diversos comportamentos agressivos.”
A terapeuta comenta que isto também pode estar relacionado a preconceitos do indivíduo:
“Esta tendência de olhar para o oponente como se ele fosse alguém que não merecesse vencer, e por conta disso seja aceitável agir de maneira tóxica com ele, mostra uma necessidade das pessoas de se defender. O jogador percebe o oponente como inferior, inclusive por preconceitos como o de gênero, de orientação sexual e etnia, de modo que ser derrotado por alguém que faz parte de grupos como estes, pode ser algo muito humilhante, que ameaça a sua posição, como se ele fosse o “inferior”. Uma maneira que o jogador pode encontrar de defender-se deste ataque é justamente interagir de maneira tóxica com o oponente, a fim de desestabilizá-lo.”
Captura de tela do jogo League of Legends com um dos jogadores enviando ofensas no chat |
Amanda adiciona que um fator que contribui para a continuidade destes comportamentos é como estes podem ser vistos como benéficos para aqueles que estão realizando-os:
“Esses comportamentos que estamos chamando de tóxicos, que incluem violência verbal, humilhar, assediar, desrespeitar, ser racista e ser machista com o outro, dentro de determinados grupos podem passar a sensação de estar no controle, pois as outras pessoas dentro do grupo vão aplaudir esses comportamentos, porque eles também fazem parte desta cultura na qual é normalizado vários tipos de preconceitos e humilhações. É muito importante pensar nas consequências dos atos, pois se para quem realiza determinados comportamentos as consequências forem de aprovação, comemoração e incentivo mesmo que para outras pessoas tragam malefícios, esses comportamentos provavelmente serão mantidos.”
A psicóloga também observa que a exposição frequente a certos comportamentos, mesmo que vistos como inofensivos para quem realiza, pode ser normalizado pela comunidade e tornar a experiência online muito tóxica para alguns usuários. Ela cita como exemplo as constantes abordagens com interesse romântico, ou sexual, que as mulheres que frequentam os jogos online relatam, o que pode gerar sentimentos de insegurança e dúvida em relação às próprias capacidades e ao merecimento do lugar que ocupam.
O distanciamento entre os jogadores, a falta de moderação nas relações entre os jogadores e a competitividade dos jogos são fatores do ambiente online que podem “incentivar” os jogadores a terem estas atitudes tóxicas. Isso consolida uma cultura na qual estes comportamentos são normalizados e quem entra no meio é socializado a aceitá-los e realizá-los como tal. No entanto, Amanda enfatiza que: “Toda cultura é feita por pessoas”.
Revisão: Heloísa D’Assumpção Ballaminut