Esta é uma série chamada Jogando com Crianças, com foco na experiência com meus filhos Heitor, de 7 anos, e Dante, de 3 anos. O objetivo é prover reflexões e parâmetros para aqueles que querem jogar com crianças – quaisquer crianças: filhos, sobrinhos, irmãos, amigos, etc. – e não sabem como, quando e quais jogos. Toda criança é diferente e não há uma fórmula única. Portanto, tudo aqui vem da construção de minha visão pessoal, combinado?
Caso ainda não tenha visto, já publiquei três textos sobre o tema: uma crônica de Dia dos Pais e duas introduções (aqui e aqui). Como na semana passada, este texto também serve de paralelo a outro publicado em simultâneo no Nintendo Blast.
Jogar juntos é muito significativo
No livro Emotion by design: how games move us, Katherine Isbster afirma que “O ato de jogar socialmente, então, ajuda a atender a uma das mais fundamentais necessidades humanas [a interação social] de maneiras que jogar sozinho (mesmo com NPCs carismáticos) provavelmente não faz.” (a epígrafe também é dela).
Calma, não estou dizendo que multiplayer é melhor (como tuitou a EA este ano) e que o single player vai morrer (como a mesma EA previu, 12 anos atrás), longe disso. O contexto é específico ao campo da socialização: em muitos casos, jogar com ou contra jogadores reais costuma ser preferível a jogar com ou contra o computador.
Os jogos sempre apostaram nesse aspecto; basta ver como o jurássico console Telejogo consistia em um controle para duas pessoas se divertirem em partidas associadas a esportes como futebol e tênis.
Até títulos para um jogador, como Space Invaders (Multi), recorriam à socialização por meio dos high scores: as maiores pontuações permaneciam gravadas na máquina para todos verem, o que criava um senso de comunidade esportiva na qual os frequentadores do arcade local tentavam superar os recordes uns dos outros. É uma forma tímida, mas efetiva de agregar significado a um gameplay solo de jogadores que não se conhecem, mas que passam a ter uma relação indireta por meio do jogo.
Quem é millennial como eu talvez lembre como era incrível dividir um fliperama de Cadillacs and Dinosaurs (Arcade) descendo a pancada em trio. E GoldenEye 007 (N64) em tela dividida para quatro pessoas? Êxtase.
Uma miauravilha de auventura a dois
Um bom exemplo de como a interação social pode enriquecer um game é Cat Quest 2 (Multi). O antecessor, para um jogador, é um jogo humilde e charmoso que eu chamo de "RPG-lite" e se passa em um mundo aberto: tem pontos de experiência por combate e cumprimento de missões, ganho de níveis, atributos básicos influenciados pela troca de equipamentos e história de espada e magia.
O design de nível do mundo é minimalista, mas tem a bênção de ser um jogo curto que fecha seu ciclo antes de a simplicidade se tornar cansativa. O enredo e os textos são bem interessantes e temperados com metalinguagem, trocadilhos e piadinhas de gatos – tenha a boa vontade de ler tudo e fazer vozes diferentes, ok?
Como, então, criar uma sequência que tenha o benefício de ser uma clara evolução, mas evitando os custos de extrapolar a identidade despretensiosa de um jogo 2D produzido por um estúdio de quatro pessoas? Simples: adicione co-op. A cooperação é integrada à história que trata de uma dupla de gato e cão, reis antigos que retornam para solucionar a guerra entre seus povos. Joguei com Heitor e posso imaginá-lo repetindo a experiência com o irmãozinho daqui a um ano ou dois.
Podemos citar até um título para um jogador cujo formato permite participação coletiva: Hidden Through Time (Multi). Sabe os livros de Onde Está Wally? A ideia é a mesma. Temos que encontrar coisas específicas em meio a cenas grandes, abarrotadas de detalhes e de pequenas narrativas implícitas.
A atmosfera é tanto instigante à observação e busca das listas quanto encantadora em seus enormes quadros com animações, design sonoro, algumas interações ao clique e lugares ocultos. Para quem gosta de Wally, é certeza de apreciar Hidden Through Time junto à sua pequena.
“É perigoso ir sozinho! Leve isto.”
Como, em tese, sua habilidade e compreensão do jogo são maiores que as da criança, é provável que você seja a pessoa responsável por cruzar os trechos mais complicados, vencer os oponentes mais difíceis e guiar a dupla (ou grupo).
Como pessoas dependentes, os pequenos precisam saber que há alguém mais capaz que está disponível para assegurar o bem estar deles. Essa segurança, se cultivada positivamente, favorece a própria busca pelo conhecimento, liberdade e independência. Saber que não estamos sós nos dá mais confiança para ir mais longe.
Acontece em Rayman Legends (Multi), por exemplo. Há muitos segmentos tranquilos para os inexperientes, mas aqui e ali estão as fases de design preciso nas quais precisamos correr e nos manter à frente dos perigos, tarefa a ser assumida pelo mais habilidoso.
Sabiamente, é um jogo sem limite de vidas, um convite a tentar quantas vezes for necessário. No multiplayer, o incentivo vai além e adiciona uma dose de equilíbrio. Quando um jogador morre, ao invés de sumir ou aguardar um checkpoint, ele se torna uma bolha flutuante que pode ser resgatada pelos amigos, fazendo-o voltar à ativa, pronto para mais uma tentativa.
Isso leva a um efeito em cadeia: enquanto houver ao menos um jogador vivo, ele pode salvar os demais, que, uma vez restabelecidos, poderão também salvar os que vierem a cair em seguida, em uma continuidade de ajuda recíproca que prolonga a sobrevivência e aumenta as chances de progresso do grupo. Ou seja, todo mundo é responsável pela vida de todo mundo. Dependendo das circunstâncias, até o menos habilidoso poderá salvar o dia.
Dois títulos da linha PlayStation merecem atenção: Little Big Planet 3 (PS4) e Sackboy: Uma Grande Aventura (Multi). Este último, em especial, é uma... ehr... grande aventura carismática, inventiva, um deleite ininterrupto para os olhos, ouvidos e a imaginação, perfeito para jogar com crianças.
Assim como em Rayman Legends, até quatro jogadores podem dividir a tela e multiplicar a diversão trabalhando juntos nos jogos do menino-saco. Ambos têm fases especificamente desenhadas para multijogadores trabalharem em união – após passarem um tempo no guarda-roupa personalizando o visual de seus bonequinhos, é claro. Heitor e Dante correm para experimentar cada roupa nova lançada para Sackboy e eu tenho minhas favoritas.
Construindo tijolo por tijolo
Para quem ainda tem dúvida do que tentar, a série Lego é uma das opções mais abrangentes. Não dá para falar de jogar com crianças sem passar por ela. A gameplay é simples e basta jogar dois títulos para perceber como a fórmula é repetitiva e, muitas vezes, rasa.
O maior incentivo está no fanservice bem feito, pois a Lego consegue andar de mãos dadas com diversas franquias populares, o que implica em um belo leque de opções. Alguns jogos são adaptações diretas de filmes, como O Senhor dos Anéis, Jurassic Park, Harry Potter, Os Incríveis e Star Wars. Outros são novas histórias em universos conhecidos, como as várias incursões com os super-heróis da DC e da Marvel. Há ainda os títulos próprios da empresa de brinquedos, como Ninjago e Lego O Filme.
Os jogos Lego costumam representar muito bem seu material-base de forma leve, criativa e cuidadosa nos detalhes, abundante em referências que parecem estar no lugar certo. A melhor experiência com eles geralmente será aquela do tema com o qual você tem o maior interesse narrativo e relação afetiva. De quebra, compartilhar essa vivência em co-op familiariza a criança com universos fictícios que você (talvez) ama, reforçando, por meio do jogo e do tema, seu laço de afinidade com a criança.
Comunicação é a chave
Ainda segundo Katherine Isbister: "há algo profundamente satisfatório e íntimo em superar um desafio mental e físico com alguém, especialmente se é necessária coordenação estreita." Jogar em cooperação vai além da gameplay. É também uma questão de interação coordenada que reflete a relação, algo que sempre deve envolver muita conversa.
Além de, talvez, ser a mais experiente em jogos, você é a pessoa mais experiente em socialização. Não espere que a criança tenha o seu nível de maturidade e expressão. Sendo o líder, lembre que a melhor maneira de cumprir os objetivos é fazer os outros entenderem a importância do trabalho em equipe e da efetiva participação de cada um.
"E, aonde vai? Ajude aqui!" |
Portanto, o mais experiente guia o jogo e a comunicação. Não quero dizer de uma forma estrita, hierárquica ou unilateral, mas de estímulo ao diálogo, de demonstrar interesse no que ao pupilo sente, pensa e deseja. Isso fomenta a reciprocidade, já que é pela própria comunicação que refinamos nossa competência em nos comunicar, algo essencial em todos os aspectos das relações humanas.
Incentive o menor a tentar, desbravar, arriscar e ousar. É simples: diante de um objetivo, diga para a criança que é a vez dela assumir uma responsabilidade para executá-lo. Pode repartir entre vocês a lista de itens em Hidden Through Time; deixá-lo responsável por mover as plataformas do cenário para abrir caminho na hora certa em Rayman Legends, ou concluir os desafios de bônus para salvar os Teensies da realeza; montar os bloquinhos enquanto você enfrenta os inimigos (ou vice-versa) em jogos de Lego; seguir na frente durante as missões de Cat Quest 2 ou o que mais parecer uma boa ideia.
O ponto é estimular um momento de protagonismo do qual ela pode emergir orgulhosa e mais consciente de sua capacidade e importância para a equipe. A experiência vem passo a passo.
Tudo isso permanece válido mesmo se a situação é invertida e você for a pessoa menos versada em videogames. É a pequena quem vai te ensinar a jogar, mas ainda te cabe o papel de guia. Provoque a comunicação: pergunte o que não entende, diga que ela tenha paciência e te espere, peça ajuda, diga quando vai ajudá-la, manifeste que você quer fazer o próximo passo sozinho para praticar.
Em todos os casos, aproveite o momento. Divirta-se, veja a criança evoluir, atente-se aos detalhes que mostram a passagem do tempo e o amadurecimento. Deixe o jogo ser um ponto de conexão entre você e o pequeno ser humano ao seu lado.
Já escolhi o próximo co-op com meus meninos, o adorável Chicory (Multi) e, quem sabe, também Never Alone (Multi).
No próximo capítulo...
Daqui a uma semana, teremos uma terceira parte em continuação direta desta segunda parte ao abordar alguns jogos cooperativos que não têm nas crianças seu público-alvo, mas que não as excluem. Já no Nintendo Blast, desta vez o tema será como o imaginário e os afetos do videogame que passam de uma geração à outra.
Jogando com crianças
Nintendo Blast
- Dia dos pais com Goof Troop e Mickey to Donald: Magical Quest 3
- Jogando com crianças — parte 1: primeiros passos com Yoshi e Kirby
- Jogando com crianças — parte 2: cooperação e desenvolvimento humano
- Jogando com crianças — parte 3: como a Nintendo é passada de uma geração de jogadores para a outra
- Chrono Trigger completou 28 anos e é uma ótima história para contar às crianças (feat. Donkey Kong Country 2)
- Stardew Valley: Dia dos Pais na fazenda em co-op com a família toda
GameBlast
Revisão: Juliana Paiva Zapparoli